III. Criminologia e epistemologia: 3.1. Michael-Adler Report (1932): Em alguma medida, a Criminologia depara-se com os mesmos problemas epistemológicos presentes no âmbito das demais ciências humanas: a íntima imbricação entre sujeito e objeto, dificuldades na identificação de causalidades lineares, inviabilidade de testes empíricos e de mecanismos de controle das hipóteses teóricas. Ao mesmo tempo, todavia, também conta com problemas específicos decorrentes da sua natural interdisciplinaridade e por conta de uma proliferação de teorias explicativas sobre o alegado problema criminal. Ao que releva, é importante ter em conta o chamado Michael-Adler Report, de 1932 – bem equacionado por Adolfo Ceretti -, estudo patrocinado pela Universidade de Columbia e destinado ao Bureau of Social Hygiene of New York City. Em apertada síntese, naquele ano, Jerome Michael, um advogado e professor da Columbia University Law School, e Mortimer J. Adler, um professor de Filosofia na Universidade de Chicago, escreveram um relatório devastador sobre o estado da Criminologia, naquele começo de século. Esse estudo foi publicado, no ano seguinte (1933) sob o título de Crime, Law and Social Science.[1] Ambos concluíram que a Criminologia careceria de verdadeiro estatuto científico. Segundo a síntese de John Laub,[2] Michael-Adler argumentaram que (i) a pesquisa criminológica teria sido, até então, fútil. O trabalho dos criminólogos não teria resultado em proposições científicas sobre o fenômeno do crime; (ii) a inutilidade das pesquisas empíricas decorreria da inaptidão dos criminólogos. Logo, o desenvolvimento da ciência demandaria importação de teóricos de outros campos (propugnavam a consolidação de um instituto composto por um lógico, um matemático, estatístico, físico teórico, físico experimental, economista e um criminólogo que ainda não houvesse se engajado com a pesquisa criminológica, a fim de que não tivesse seus vícios)[3] e (iii) os métodos até então empregados pela Criminologia deveriam ser abandonados. Por seu turno, Adolfo Ceretti apresenta outras proposições daquele relatório. Para Michael-Adler os dados não quantitativos seriam capciosos (localidade em que os crimes ocorreriam, case-histories etc.); já os quantitativos, ainda que úteis, não estariam sendo empregados corretamente pelos criminólogos, por desprezarem o estudo da covariância: “Os dados quantitativos calculam a correlação existente entre um ou mais fatores com a criminalidade, ou com a reincidência, ou com qualquer forma específica de criminalidade. Mas estes índices de correlações entre os diversos fatores, geralmente expressados através da comparação da media ou percentual, não explicam que tipo de relações existe entre os diversos fatores, e não esclarecem, tampouco, a relação funcional entre a criminologia e determinados fatores.” [4] Ambos também criticaram o uso de estatísticas descritivas. “Os resultados das investigações demonstram que cada fator que pode estar de qualquer modo associado com um comportamento delitivo também pode estar associado com um comportamento não delitivo, e que aquele comportamento delitivo se dá inclusive diante da ausência do fator ao qual resulta geralmente relacionado.” [5] Michael e Adler impugnaram, então, a Criminologia dos idos de 1930, por não permitir diferenciar o criminoso do não criminoso, a partir de uma sólida análise etiológica. Concebiam os criminólogos como pessoas preocupadas com o estudo das causas dos crimes, mas frustrados com os resultados com suas pesquisas.[6] Ambos lamentavam, ao mesmo tempo, a ausência de um verdadeiro método científico nessa disciplina: um método capaz de produzir asserções verdadeiras, gerais, explicativas da ocorrência do delito.[7] Diziam que os dados deveriam ser seguros e precisos (objetividade e acurácia), que a investigação deveria aplicar técnicas de observação e medição, com obtenção de dados exatos. Por fim, as observações deveriam ser submetidas a um processo de inferência. “Se os dados observados são quantitativos, os processos de inferência consistem sempre em cálculos estatísticos, em sentido estrito, ou matemático. Mas estes cálculos nunca são unicamente estatísticos ou matemáticos, pelo fato de que devem ser interpretados sobre a base dos significados assinalados às variáveis que têm sido utilizadas. Em outras palavras, os processos de inferência empregados no método científico dependem também de alguma teoria.” [8] Argumentavam, ademais, que a pretensa complexidade dos eventos sociais, humanos, não seria fator impeditivo de uma análise objetiva: “A grande complexidade que se atribui aos fenômenos sociais deve ser imputada somente à falta de uma análise objetiva”[9] Conquanto a criminologia fosse uma ciência autônoma, seu desenvolvimento seria dependente do progresso da psicologia e da sociologia[10], e aí estaria o seu maior problema, porquanto Psicologia e Sociologia ainda não se comportariam como verdadeiras ciências, na opinião lançada naquele relatório. Logo, como facilmente se constata, Michael e Adler adotavam concepções positivistas: supunham a viabilidade de uma ciência neutra, fundada na observação dos fatos e na formulação de inferências indutivas a partir da constatação de reiterações e uniformidades. Vale dizer: esposavam aquele “conjunto de regras e de critérios de juízo que se referem ao conhecimento humano: indicam-nos quais conteúdos implícitos em nossas afirmações acerca do mundo merecem ser chamadas de saber... Se trata, então, de uma postura normativa, que regula o uso de termos como conhecimento, ciência, informação.” [11] Supunham que o mundo fosse um conjunto de fatos observáveis: não haveria maior distinção entre a aparência e a essência, devotando pouca atenção para a questão do discurso e do poder. Imaginavam, ademais, ser possível a aplicação de um único método para as ciências humanas e as exatas (a causalidade seria um problema de probabilidade, daí a importância da estatística nesse âmbito). [12] Cumpre destacar também o seguinte:
O relatório Michael-Adler atingia, assim, o estatuto científico da Criminologia e os brios dos criminólogos, rotulados como inaptos para a descoberta das verdadeiras causas dos delitos. Não por outro motivo, já em 1933, Edwin Sutherland providenciou uma resposta à análise de ambos: alegou que haveria grande contradição nos fundamentos daquele relatório (o que atribuía ao pouco conhecimento que os seus autores teriam de Criminologia). Michael e Adler teriam reconhecido que uma ciência não poderia nascer da mera observação empírica, carecendo também da formulação de hipóteses/conjecturas que deveriam orientar a seleção do material a ser examinado, [14] e isso os criminólogos já vinham fazendo há tempos. Edwin Sutherland alegou que a Criminologia estaria em vias, naquele tempo, de descobrir o princípio etiológico de base que explicaria a ocorrência de todos os desvios (o que indicava certo otimismo da sua parte). Buscava, portanto, uma Pedra de Roseta que permitisse a compreensão e, fundado nisso, também a inibição dos comportamentos delitivos – engineering model. Partia, para tanto, das reflexões epistemológicas de Dewey, sustentando que a ciência seria feita com a formulação de conjeturas e com a submissão das hipóteses à crítica pública (concepção compartilhada, no tópico, por Karl Popper). Esposava enfim, uma concepção etiológica.[15] Essa questão já suscita, em si, um conjunto de perplexidades. Como afirmava Max Weber, as condutas humanas estão submetidas ao que o sociólogo alemão denominava de multicausalidade e correspondente causalidade adequada (ou probabilidade objetiva).[16] Dificilmente um evento pode ser atribuído a uma única causa; e não se pode também desconsiderar a capacidade do sujeito reagir ao meio, desta ou daquela forma. [17] Por outro lado, ao contrário do que ocorre no âmbito da Física, o cientista social também é parte daquilo que estuda: a própria viabilidade do conhecimento é, enquanto manifestação humana, objeto de pesquisa social. Mencione-se novamente, por fim, o conhecido Teorema de Thomas – o da profecia que se autorrealiza: aquilo que as pessoas reconhecem como verdadeiro, é verdadeiro quanto às suas consequências (caso um economista de renome internacional sustente que haverá retração nas bolsas de valores de determinado país, a sua predição pode causar esse resultado, sendo, ao mesmo tempo, observação e causa. Ora, para John Laub, a teoria da associação diferencial teria nascido justamente como tentativa, por parte de Sutherland, de elaborar uma teoria geral das causas do crime, por força das críticas daquele relatório. [18] Tempos depois, Sutherland teria reconhecido razão a algumas das observações formulada por ambos. O fato é que, não obstante decorridos cerca de 80 anos desde a publicação daquele relatório, suas provocações continuam instigando a Criminologia. Não que não se tenha avançado (não é essa a questão). Antes, o problema está na ausência de uma preocupação mais densa, por parte dos criminólogos, a respeito da epistemologia dessa ciência: questões como métodos de pesquisa, causalidade, critérios para avaliação das asserções etc. acabam sendo aproveitadas a partir de teorias sociológicas, importadas e, não raro, também descontextualizadas. [19] Sem dúvida que não se pode, em pleno século XXI, ter a ilusão de que a ciência seja neutra. Ao contrário, é sabido atualmente que os cientistas examinam analiticamente determinados recortes de mundo, esposando premissas indemonstráveis (como o postulado da identidade, da não contradição, a suposição da logicidade do mundo etc.), a partir também de posturas ideológicas. Basta ter em conta o postulado da assimetria dos enunciados universais, desenvolvido por David Hume, para se constatar que a ciência também envolve o indizível (para Freud e Ernst Cassierer, situar-se-ia no âmbito dos mitos). 3.2. Breves considerações sobre a epistemologia da criminologia: Com já se mencionou, o problema fundamental da Criminologia, no que toca ao seu estatuto epistemológico,[20] parece decorrer da sua natureza interdisciplinar. Apropria-se de metodologias que, na sua origem, não dizem respeito propriamente à questão do desvio, de vítimas ou da rotulação penal. Por outro lado, tem seus interesses pautados pelo Direito Penal, partindo da definição legal de crime (que apenas a Criminologia Crítica coloca em questão). A Criminologia já buscou a delimitação de um conceito material de delinquente (concepção lombrosiana). Por outro lado, também já ensaiou a construção de um conceito material de desvio: seja com a concepção moralista de Garófalo, seja a própria concepção proletária de desvio, [21] seja, por fim, com o modelo de Alessandro Baratta/Schwedinger definindo o desvio como a violação de uma específica lista de direitos fundamentais. [22] A isso também se acrescentam os debates a respeito da própria (im)pertinência do tema ‘causalidade’ nesse âmbito, para concepções que concentram a atenção no controle social (no caráter correcionalista e disciplinar da sociedade). Logo, há uma substancial diferença entre uma concepção etiológica do crime, e correspondente tentativa de identificar e controlar suas causas em prol de uma política correcionalista, e uma concepção crítica da criminalização (e correspondente crítica às estruturas sociais reais subjacentes à retórica biopolítica). Basta recordar que a concepção positivista partia da ingênua suposição de que os selecionados pelo sistema de justiça criminal - os acusados, presos, condenados - fossem o retrato fiel do desviante; olvidando, com isso, o estudo das cifras negras e douradas, para além do considerável grau, sem dúvida, de julgamentos errôneos (por força das metarregras). A evolução da criminologia etiológica levou ao reconhecimento de um variado leque de pretensas causas de comportamentos delitivos: fatores sociais, econômicos, culturais e psicológicos. Evoluiu-se, todavia, para a constatação de que o crime seria cometido por pessoas normais, saudáveis, sendo manifestação de racionalidade: emprego de meios ilícitos para obtenção de fins socialmente valorizados, como se vê da concepção de Merton sobre o comportamento delitivo; ainda que também albergue outras questões (como a do comportamento ritualista, e.g.). Ora, com a Criminologia Crítica, a ruptura com o paradigma positivista-etiológico implicou também a necessidade de novos métodos. Importa dizer: a transição de um método empirista, fundado na análise de probabilidades e estatísticas, para um método hermenêutico-dialético (ou, conforme o caso, o método da arqueologia foucaultiana), orientado a desvelar as estruturas de poder subjacentes à criminalização.[23] Aplicou-se, portanto, a dialética material para a leitura dos fenômenos criminais, enquanto manifestação de uma estrutura social conflituosa, fundada em uma violência estrutural de base, da qual a sanção criminal é mera projeção. Caminhou-se, pois, para a filosofia política, com progressivo abandono do modelo de engenharia social. Flavio Antônio da Cruz Doutor em Direito do Estado Bacharelando em matemática Referências: [1] LAUB, John H. Edwin H. Sutherland and the Michael-Adler Report: searching for the soul of Criminology seventy years later. Disponível na internet: <ttp://www.crim.umd.edu/faculty/userfiles/27/laub2006.pdf>. Acesso em 01.01.2012. [2] LAUB, John H. Edwin H. Sutherland and the Michael-Adler Report, p. 237. [3] LAUB, John H. Obra citada, p. 236 [4] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 33-34. [5] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 34. É importante ter em conta, todavia, a categoria desenvolvida por Vincenzo Ruggiero, a denominada ‘causalidade dos contrários’, já mencionada acima, em nota. [6] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 36. [7] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 36 [8] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 37 [9] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 41. [10] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 41. [11] KOLAKOWSKI apud CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 47. [12] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 49 e 50 [13] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 32. [14] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 53. [15] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 29. [16] “Para começar perguntamos (...) como a atribuição de um resultado concreto a uma causa única é (...) exequível (...) em princípio, dado que na realidade é sempre uma infinidade de fatores causais que produz o evento único e que virtualmente todos esses (...) fatores causais são indispensáveis para a consecução do resultado.” WEBER apud RINGER, Fritz. A metodolodia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. Trad. Gilson C. dos Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 75. [17] A respeito de um conceito de liberdade, carregado de determinismo, confira-se SEARLE, John R. Liberdade e neurobiologia. Trad. Constância M. E. Morel. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 41-72. [18] LAUB, John H. Edwin H. Sutherland and the Michael-Adler Report, p. 239: “The central point here is that it appears that differential association theory was created in response to the Michael-Adler report. In arriving at the theory, Sutherland sought to identify a paradigm for the field of criminology.” [19] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 180 e 182. [20] CERETTI, Adolfo. Obra citada, p. 103. [21] YOUNG, Jock. Criminologia da classe trabalhadora in TAYLOR, Ian et al. Criminologia crítica. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980, p. 105-112 [22] BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos in BARATTA, Alessandro. Criminología y sistema penal: compilación in memorian. Buenos Aires: IBdef, 2004, p. 337-356. Em que pese a autoridade e a concepção conhecidamente minimalista de Baratta sobre a intervenção penal, o fato é que, levado a seus extremos, essa definição de comportamento desviante pode legitimar e também ampliar a repressão penal. [23] Percebe-se que, para Karl Popper, referida concepção da Criminologia Crítica corre o risco de se tornar verificacionista, por não permitir suficiente controle empírico das asserções sobre fatos. Em outras palavras, em alguma medida, as críticas lançadas por Popper contra o Historicismo poderiam ser também aplicadas nesse âmbito. Cumpre recordar, todavia, que – conquanto ele próprio não se definisse como positivista – é indiscutível que a concepção de ciência do filósofo austríaco veiculava uma concepção muito restrita do que seria ciência (no que é plenamente superado pela concepção de verdade presente na obra GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6ª ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. RJ: Vozes, 1997). A respeito do conteúdo da ideologia e do método dialético, leia-se MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia, p.307-323. Comments are closed.
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