Para poder iniciar um texto sob este título é necessário pedir licença. Considere-se esta solicitada a todo público feminino.
Atenho-me aqui ao papel de difusor de ideias; divulgador de uma temática que entendo ser extremamente relevante. Todo o texto será construído com base fiel nas leituras apontadas ao fim, preocupando-se metodicamente com a transmissão da visão dos autores alistados. Pretendo enfrentar de modo sucinto as seguintes questões: qual o impacto que o pensamento feminista teve e está tendo sobre a Criminologia nas últimas décadas? Que formas de resistência este impacto tem enfrentado? Que contribuições a Criminologia Feminista trouxe ao pensamento criminológico crítico e que relação deverão guardar no futuro? A Mulher no Olhar Criminológico As mulheres figuraram de diferentes maneiras no polo de sujeito dos estudos criminológicos no decorrer da história. Dois marcos importantes precisam ser apontados. Um primeiro, escolhido com o propósito de estabelecer uma demarcação inicial de análise, foi o período iniciado com a produção do Malleus Maleficarum, no séc. XV A mulher foi ali retratada como especialmente propensa ao crime, à imoralidade, à heresia. Esse discurso pretendia se fundamentar numa suposta inferioridade biológica feminina e numa propensão “natural” da mulher a deixar-se seduzir e cair da fé[1]. Diante desse pressuposto, havia necessidade de criação de mecanismos penais e processuais diferenciados, tanto com propósitos preventivos quanto com propósitos corretivos/purificadores. Anitua estuda os motivos subjacentes, de controle de poder por parte da Igreja, que ensejaram esta seletividade nos castigos a serem aplicados às mulheres nesta época.[2] Avançando no tempo, um estudo cuidadoso sobre a mulher como objeto de preocupação da política-criminal vai revelar as práticas moralizantes que interessavam à ascensão da classe burguesa ao poder, com todo seu aparato de vigilância e normalização. Porém, ainda que fundamentais esses aspectos, destaca-se aqui um outro momento, que terá ainda maior impacto sobre a criminalização seletiva da mulher: o aparecimento da Escola Positivista. Com Cesare Lombroso, Enrico Ferri e outros, surge uma nova forma de discurso que vê na mulher fatores biológicos e psicológicos causadores de propensão a determinados crimes. Anitua escreve sobre o fato de que esse discurso funciona como mera atualização do discurso medieval, aperfeiçoado com o cientificismo típico da época em que foi produzido. Resume assim o pensamento criminológico desta corrente:
Percebe-se claramente que os pressupostos com que se trabalha nesta época, a despeito do rigor científico sobre o qual se sustentam, apenas refundam o pensamento manifestado décadas antes. Neste ponto, importa destacar uma crítica trazida pelo pensamento feminista, apontando que, de modo geral, todo discurso científico que aflora neste período vinha fortemente marcado por um androcentrismo. Nas palavras de Carmen Hein de Campos:
Superada a fase etiológica da Criminologia, que como se viu apenas se “preocupou” com a mulher no sentido de estigmatiza-la e coloca-la como objeto de estudo de determinados tipos de criminalidade, chega-se ao momento da virada criminológica. Como é de conhecimento geral, neste momento são renunciados os estudos voltados a identificar o criminoso ou as causas do crime, concentrando-se então nos complexos processos de criminalização primária e secundária. A Criminologia Feminista passa a contribuir de forma relevante com a Criminologia Crítica, principalmente a partir da década de oitenta. Essa contribuição se deu, de modo destacado, no tocante ao desvelamento da perspectiva feminista sobre as relações de poder e violência. Mais uma vez na lição de Carmen Hein de Campos:
Esta percepção opera uma nova alteração, ou ampliação, de paradigma de estudo para Criminologia Crítica. Ocorre, porém, que a mulher não se beneficia desta alteração de paradigma como deveria, sendo deixada de lado em grande parte dos estudos que se voltaram para o etiquetamento e estigmatização de grupos vulneráveis. Quais os motivos? Em que níveis de saber se deu essa resistência ao aporte do pensamento feminista à Criminologia Crítica? Resistência Criminológica ao pensamento feminista Revelando um problema basilar que explica a falta de conhecimento e discussão da criminologia feminista no Brasil, Carmen Hein de Campos explica:
Há assim uma resistência acadêmica ao debate neste campo. Porém, ela parece ser reflexo de uma resistência anterior, enraizada de forma profunda na própria produção teórica que embasou a Criminologia Crítica. Conforme elucida mais uma vez Carmen Hein de Campos:
A Criminologia Feminista demonstra o entrincheirado entrave científico que opera, em relação às mulheres, uma dupla exclusão: numa face contrai as oportunidades de estas ocuparem o lugar de pesquisadoras, de produtoras de conhecimento científico. Noutra, exclui sistematicamente do questionamento central das ciências sociais as relações de poder fundadas numa diferenciação dicotômica culturalmente fabricada, de subjugação feminina (quer sejam estes questionamentos trabalhados através do histórico do patriarcado, das percepções marxistas ou dos enunciados pós-estruturalistas)[8]. Demonstrado, de forma breve, os principais desafios enfrentados pela Criminologia Feminista em trazer ao debate científico suas demandas, é salutar revelar agora de que modo esta influi no desenvolvimento dos estudos criminológico do nosso século. Contribuições da Criminologia Feminista e seu Futuro Para podermos compreender os objetivos traçados por algumas das frentes da Criminologia Feminista (obviamente existem várias frentes não hegemônicas, mas com visões que permitem a categorização unificada) é preciso partir do conhecimento de uma diferença de estratégias existente dentro desse movimento. Essa diferenciação acontece em relação a possibilidade de uso do direito penal como mecanismo legítimo para o alcance de algumas das demandas da criminologia feminista, principalmente no tocante aos meios pelos quais seria possível reduzir a violência contra mulher. A professora Vera Andrade, por exemplo, representa um grupo que entende que o direito penal, sendo marcadamente um violador de direitos, não pode oferecer uma ferramenta adequada para luta contra violência de gênero e garantia de direitos às mulheres.[9] Há, no entanto, quem entenda que apenas o sistema penal pode, na atualidade, conferir um mínimo de resposta ao cenário de violência de gênero em que vivemos. Esse recrudescimento é visto como meio de politizar a questão feminista, operando a criminalização de condutas a função simbólica do direito penal neste caso. Elena Larrauri explica:
Para além desta questão, que divide opiniões, a Criminologia Feminista traz duas grandes contribuições para o futuro dos estudos criminológicos como um todo (escolhidas dentre muitas): a primeira deles diz respeito ao papel que vem desempenhando em ampliar o espectro de visão sociológico sobre o os processos de segregação e criminalização. Neste sentido:
Além disso, a Criminologia Feminista (e o pensamento feminista de modo geral) contribuem com uma das mais definitivas rupturas no que diz respeito a criação de categorias universalizantes no campo das ciências sociais. Faz isso com especial vigor com respeito aos sujeitos sobre os quais se busca formar conhecimento científico. Explicando esse ponto, mais uma vez recorremos ao magistério de Carmen Hein de Campos:
Para finalizar, que fique claro que o abordado aqui apenas arranha a superfície do que já foi produzido pela Criminologia Feminista. Há muito o que deve ser conhecido e estudado por aquele que deseja enriquecer sua pesquisa em estudos criminológicos. Conforme aduz Baratta, a “Criminologia Crítica e a Criminologia Feminista não podem ser duas coisas diversas; devem, necessariamente, construir uma única”[13]. Paulo R Incott Jr Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia pela AbdConst Direitor Executivo do Sala de Aula Criminal Referências: [1] CHAI, Cássius Guimarães. PASSOS, Kennya Regyna Mesquita. Gênero e Pensamento Criminológico: Perspectivas a Partir de uma Epistemologia Feminista. Revista de Criminologias e Políticas Criminais. Curitiba, v. 2, n. 2, Jul-Dez 2016. p. 137 [2] ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008. [3] ANITUA, Gabriel Ignacio. In: CHAI, Cássius Guimarães. PASSOS, Kennya Regyna Mesquita. Op cit, p. 141 [4] CAMPOS, Carmen Hein de. Teoria Crítica Feminista e Crítica à(s) Criminologia(s): estudo para uma perspectiva feminista em criminologia no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências Criminais. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2013. [5] Idem [6] Idem [7] CAMPOS, Carmem Hein de. O Discurso Feminista Criminalizante no Brasil: limites e possibilidades. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis,1998. p. 51 [8] CHAI, Cássius Guimarães. PASSOS, Kennya Regyna Mesquita. Gênero e Pensamento Criminológico: Perspectivas a Partir de uma Epistemologia Feminista. Revista de Criminologias e Políticas Criminais. Curitiba, v. 2, n. 2, Jul-Dez 2016, p. 135 [9] CAMPOS, Carmen Hein de (org). Criminologia e Feminismo. Editora Sulina: Porto Alegre, 1999. p. 16 [10] LARRAURI, Elena. In: CHAI, Cássius Guimarães. PASSOS, Kennya Regyna Mesquita. Gênero e Pensamento Criminológico: Perspectivas a Partir de uma Epistemologia Feminista. Revista de Criminologias e Políticas Criminais. Curitiba, v. 2, n. 2, Jul-Dez 2016, p. 146 [11] CHAI, Cássius Guimarães. PASSOS, Kennya Regyna Mesquita. Gênero e Pensamento Criminológico: Perspectivas a Partir de uma Epistemologia Feminista. Revista de Criminologias e Políticas Criminais. Curitiba, v. 2, n. 2, Jul-Dez 2016, p. 148 [12] CAMPOS, Carmen Hein de. Teoria Crítica Feminista e Crítica à(s) Criminologia(s): estudo para uma perspectiva feminista em criminologia no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências Criminais. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2013. [13] CAMPOS, Carmen Hein de (org). Criminologia e Feminismo. Editora Sulina: Porto Alegre, 1999. p. 43 Comments are closed.
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