Um dos temas de maior controvérsia do Direito Internacional dos Direitos Humanos é o chamado particularismo cultural face à universalidade dos direitos humanos. Esse tema tem sido objeto de longos debates inconclusos tanto no âmbito acadêmico quanto nos foros internacionais.[1]
As diferenças entre as civilizações há muito tempo já haviam sido observadas, mas “submergiram sob o pano homogeneizador da igualdade cristã”.[2]Surge então a crítica à universalidade dos direitos humanos, através do argumento de que não somos todos iguais, mas sim, que somos seres diferenciados pela cultura e por comportamentos sociais.[3] A cultura torna-se, portanto, um conceito basilar para os direitos humanos.[4]E parece impossível tratar desse embate sem antes tratar do conceito de cultura. E nessa tarefa, a antropologia se mostra como um instrumento importante e eficaz para dirimir as dúvidas sobre esse tema. Para Clifford GEERTZ, um dos objetivos da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. [5]A antropologia tem tentado encontrar uma via na “qual a cultura e a variabilidade cultural possam ser mais levadas em conta do que concebidas como capricho ou preconceito”.[6]Tenta sustentar a ideia de que “a diversidade de costumes no tempo e no espaço não é simplesmente uma questão de indumentária ou aparência”, mas é uma característica da humanidade, tão variada em sua essência e expressão. [7] Cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual se deve procurar conhecer para que suas práticas façam sentido. Os costumes, concepções e as transformações pelas quais as sociedades passaram, fazem sentido para os agrupamentos humanos que as vivem, são resultado de sua história e se relacionam com as condições materiais de sua existência.[8] Dessa maneira, o estudo da cultura contribui no combate ao preconceito e oferece uma base teórica forte para o respeito e dignidade nas relações humanas. Ao se discutir sobre cultura temos sempre que ter em mente a humanidade em toda a complexa multiplicidade de formas de existência e as características que o unem e diferenciam as sociedades. A cultura expressa a “humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos”.[9] No final do século XVIII “o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo”.[10]O antropólogo britânico Edward Tylor, sintetizou os dois termos no vocábulo inglês Culture, que diz respeito a todo complexo de “conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade"[11]. Esse conceito abrangia “todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos”.[12] Estudos feitos no século XIX procuravam hierarquizar todas as culturas humanas. Segundo essas pesquisas, “a humanidade passaria por etapas sucessivas de evolução social que a conduziria desde um estágio primordial onde se iniciaria a distinção da espécie humana de outras espécies animais até a civilização tal como conhecida na Europa ocidental de então”.[13]Essa concepção de evolução por estágios tratava-se de: uma visão européia da humanidade, uma visão que utilizava concepções européias para construir a escala evolutiva, e que além do mais servia aos propósitos de legitimar o processo que se vivia de expansão e consolidação do domínio dos principais países capitalistas sobre os povos do mundo. A classificação dessas culturas em escalas hierarquizadas era impossível, dada a multiplicidade de critérios culturais.[14] Há que se ter em mente que, “enquanto a ciência social dos países capitalistas centrais elaborava teorias relativistas da cultura, sua civilização avançava implacavelmente, conquistando e destruindo povos e nações, tendo como instrumento uma capacidade de produção material que não é nem um pouco relativa”.[15]Ademais: tais esforços de classificação de culturas não implicavam apenas a justificação do domínio das sociedades capitalistas centrais, que naqueles esquemas globais apareciam no topo da humanidade, sobre o resto do mundo. Ideias racistas também se associaram àqueles esforços; muitas vezes os povos não europeus foram considerados inferiores, e isso era usado como justificativa para seu domínio e exploração.[16] Estudos posteriores permitiram que essas falsas noções sobre a cultura fossem desconstruídas, demonstrando que não “existe relação necessária entre características físicas de grupos humanos e suas formas culturais, nem tampouco a multiplicidade das culturas implica quebra da unidade biológica da espécie humana”.[17]Para Roque LARAIA, “o perigo desses tipos de explicações é que facilmente associam-se com tipos de discriminações raciais e sociais, numa tentativa de justificar as diferenças sociais”.[18] As culturas e sociedades se relacionam de modo desigual. São desigualdades de poder em vários sentidos (econômico, social, político, cultural), que hierarquizam de fato os povos e nações, e não há como refletir sobre cultura ignorando essas desigualdades, é mister reconhecê-las e buscar sua superação.[19]Não há superioridade ou inferioridade entre as culturas ou traços culturais ou lei natural que diga que as características de uma cultura a fazem superior a outras. O que existe são processos históricos que estabelecem marcas verdadeiras e concretas entre as culturas.[20] São as investigações históricas que fornecem os instrumentos para descobrir a origem de determinado traço cultural e para interpretar o lugar deste num dado conjunto sociocultural. Ou seja, “cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. A partir daí a explicação evolucionista da cultura só tem sentido quando ocorre em termos de uma abordagem multilinear”.[21] Dulce PIACENTINI observa que “não obstante a existência de diversas culturas, a busca por uma natureza humana comum ou por elementos comuns a todas as culturas é uma constante. A ideia de que há coisas sobre as quais todos concordam esteve presente no Iluminismo”.[22]O ser humano é comum em suas funções biológicas e fisiológicas, mas embora essas funções sejam comuns a toda humanidade, a forma de satisfazê-las varia de uma cultura para outra.[23] O antropólogo Clifford GEERTZ afirma que o conceito de cultura defendido por ele é essencialmente semiótico, e que acredita, assim como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, e por isso, assume a cultura como sendo essas teias, parte então, de uma ciência interpretativa, à procura de significados.[24]Dessa forma, a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas.[25]Por sua vez, José Luiz dos SANTOS define cultura como: uma dimensão do processo social, da vida de uma sociedade. (...) Não se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e não se pode dizer que ela exista em alguns contextos e não em outros. Cultura é uma construção histórica, seja como concepção, seja como dimensão do processo social. Ou seja, a cultura não é algo natural, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo da vida humana.[26] Portanto, o ser humano é o resultado do meio cultural em que foi socializado, é “herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam”.[27]Sendo assim, “a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento, através de um processo que hoje chamamos de endoculturação”.[28] A endoculturação é o processo de aprendizado no seio de cada cultura que torna os seres diversos entre si. É justamente esse processo diferenciado, essa especialização produzida pela cultura que impossibilita a existência de uma categoria humana universal e isonômica.[29] A nossa herança cultural, também desenvolvida através das gerações anteriores, nos condiciona “a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade”.[30]Esse fenômeno denominado etnocentrismo, “é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.[31]É, portanto, a dificuldade de pensar a diferença, é o sentimento de estranheza, medo, hostilidade em relação ao outro.[32] Para Anthony GIDDENS, “a cultura refere-se às formas de vida dos membros de uma sociedade ou de grupos dentro da sociedade”.[33]Isso inclui as vestimentas, os costumes matrimoniais, a organização familiar, a religião, os hábitos alimentares, seus padrões de trabalho etc. Clifford GEERTZ vai além e entende a cultura como um mecanismo de controle, como sistemas simbólicos, e explica que: a cultura é melhor vista não como complexos com padrões concretos de comportamento — costumes, usos, tradições, feixes de hábitos —, como tem sido caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle — planos, receitas, regras, instruções (que os engenheiros de computação chamam "programas") — para governar o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento.[34] Argumenta ainda que um dos fatos mais interessantes sobre o ser humano é que “todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.[35]Aponta que:
Tais símbolos são dados, na sua maioria, ou seja, o individuo já os encontra em uso corrente na comunidade quando nasce e estes mesmos símbolos permanecem em circulação após a sua morte, eventualmente com acréscimos, subtrações ou alterações dos quais este indivíduo pode ou não participar. Durante a sua vida, “ele se utiliza deles, ou de alguns deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das vezes espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito: para fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais ele vive, para auto orientar-se”[37] A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, dispõe sobre a questão da cultura no artigo 1°: a cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.[38] No mesmo sentido a Declaração do México sobre as Políticas Culturais defende que:
Portanto entende-se que as culturas são híbridas, pois, todas contêm em si fragmentos de outras culturas, ao qual se misturaram tanto histórica como territorialmente, e dessa forma, não há cultura em estado puro. Além disso, as culturas têm caráter dinâmico, ou seja, estão em constante mudança.[40] Não existe natureza humana independente da cultura. Os seres humanos sem cultura não seriam os bons selvagens do primitivismo iluminista, mas seriam “monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos”.[41]O nosso sistema nervoso central cresceu em interação com a cultura e é incapaz de dirigir nosso comportamento sem a orientação fornecida pelas fontes culturais, que são um fundo acumulado de símbolos significantes.[42] Em resumo, se não for dirigido por padrões culturais, que são, em resumo, sistemas organizados de símbolos significantes, o comportamento humano seria ingovernável, um caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, portanto, “a cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela , a principal base de sua especificidade.[43] A partir da conceituação do que é cultura e da explanação sobre como esta se projeta e influencia o meio social, cabe agora adentrar do embate entre o universalismo e o relativismo cultural dos diretos humanos. A concepção universal dos direitos humanos consagrada pela Declaração Universal de 1948 sofre ainda hoje fortes resistências dos adeptos do movimento do relativismo cultural. O debate entre a doutrina universalista e relativista retoma dilema sobre o alcance das normas de direitos humanos, se estas têm um alcance e sentido universal ou são culturalmente relativas.[44] E embate entre universalismo e relativismo cultural passa pelo problema da fundamentação dos direitos humanos. Há quem entenda que estes não são passíveis de fundamentação, pois isso depende de juízos valorativos e relativos, e portanto, são impossíveis de serem racionalmente conhecidos. Para outros, a exemplo de Norberto Bobbio, o problema da fundamentação dos direitos humanos é secundário e que já teria sido resolvido com a Declaração de 1948, o primordial nesse momento seria assegurar a sua efetividade.[45] As diferenças de poder e as lutas pelo poder militar e econômico são uma das fontes de conflito entre o Ocidente e o resto do mundo. A diferença da cultura é uma segunda forma de conflito. A civilização ocidental é uma “civilização universal” “ajustada a todos os homens”.[46]A dificuldade está no fato de que não existe aceitação universal dos direitos humanos, sob o argumento de que os povos têm direito a própria cultura e por consequência, a concepção de direitos e dignidade humana pode variar; o que autoriza a aceitação seletiva destes direitos.[47] Os direitos humanos se formaram a partir de múltiplos entendimentos e perspectivas, por vezes conflituosos, e que foram universalizados como valores reinterpretados, contextualizados e adaptados de diferentes maneiras em todo o mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos enfatiza a tradição ocidental de direitos individuais, contudo, deve-se reconhecer que as coletividades também são titulares de direitos. Direitos que variam a partir da forma com que determinada cultura se relaciona com o restante dos indivíduos.[48] A concepção universalista reflete um período histórico e filosófico próprio à cultura europeia, que é estranho as demais civilizações que passavam por experiências históricas e culturais distintas. Devemos lembrar que a maioria dos países asiáticos e africanos eram colônias ou estavam em processo de independência quando a Declaração de 1948 foi assinada, não contribuindo assim, para a sua confecção.[49] Os relativistas apontam para a base jusnaturalista dos direitos humanos e do universalismo cultural. Argumentam que na Declaração de 1948 os Estados Signatários não formularam os direitos elencados a partir de um compromisso assumido, mas esta já trouxe direitos elencados, reconhecendo direitos inerentes ao ser humano e buscando promovê-los.[50]Essa base jusnaturalista tem como pressuposto a universalidade e imutabilidade dos direitos do ser humano. É possível notar que os instrumentos internacionais de direitos humanos são claramente universalistas, pois buscam assegurar a proteção universal dos direitos humanos que são inerentes à todos os indivíduos.[51] Ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja um direito fundamental previsto na Declaração Universal, nenhuma concessão é feita às “peculiaridades culturais” quando há risco de violação a direitos humanos. Para os universalistas o fundamento dos direitos humanos é a dignidade, sendo assim, qualquer afronta ao chamado “mínimo ético irredutível”, ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos.[52] Estes pressupostos servem de base para os relativistas, que argumentam que os direitos humanos carregam em si alguns prejuízos que os tornam, portanto uma “construção etnocêntrica”. Os direitos humanos são inseparáveis do pensamento iluminista, por isso, não deixam de ser o produto de uma sociedade em particular em um tempo específico. Neste caso, a Europa do pós Segunda Guerra Mundial, e são, portanto, uma construção ocidental com aplicabilidade limitada e pretensão de universalidade.[53]Esta corrente de pensamento afirma que existe uma ampla variedade de sistemas morais e legais não ocidentais e, portanto, os direitos humanos entram em conflito com estes sistemas culturais. Afirmam, então, que qualquer teoria sobre os direitos humanos devem levar em conta esta diversidade.[54] Para os relativistas, a pretensão de universalidade trazida por estes documentos internacionais simboliza uma forma de imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas próprias crenças. A noção de universalidade dos direitos humanos é entendida como uma noção construída pelo modelo ocidental, e, portanto, a ideia de universalidade induz à destruição da diversidade cultural.[55] Os defensores dos direitos humanos argumentam que, mesmo com o seu embasamento ocidental, esta noção é universalmente aplicável e que é possível construir um consenso através do diálogo intercultural. O peso moral dos direitos humanos advém justamente da sua universalidade presumida, que se baseia na ideia de que os direitos humanos são inerentes a todos independente de características subjetivas para além da cultura, raça, sexo ou religião. Por estarem fundamentados na condição humana, tais direitos são inalienáveis e universais.[56] Os relativistas apontam que “a noção de direito está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade”.[57]Cada cultura, portanto, possui seu próprio “discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade”[58], em resumo, o pluralismo cultural e a incomensurável diversidade de sistemas morais existentes impede qualquer tipo de acordo como a aplicabilidade universal normas de direitos humanos.[59] A título de exemplo, caberia mencionar a adoção da prática da clitorectomia por muitas sociedades da cultura não ocidental.[60]Essa prática está arraigada em muitas sociedades e é um tema que está no centro do embate entre universalismo e relativismo, principalmente no tocante aos direitos humanos das mulheres. Retomando o raciocínio, na ótica relativista há o primado do coletivismo, que tem como o ponto de partida a coletividade, onde o indivíduo é percebido como parte integrante da sociedade. Ao contrário, na ótica universalista, o que se tem é o primado do individualismo, onde o ponto de partida é o individuo, em sua liberdade e autonomia, para que, então, este possa ser pensado dentro de uma coletividade.[61] Os universalistas contra argumentam alegando que a posição relativista tenta justificar graves casos de violações dos direitos humanos. E com base no argumento do relativismo cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional, e “que a existência de normas universais pertinentes ao valor da dignidade humana constitui exigência do mundo contemporâneo”.[62] Argumentam que se diversos Estados optaram por ratificar instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, é porque consentiram em respeitar tais direitos, dessa forma, não podem se isentar do controle da comunidade internacional na hipótese de violação destes.[63] Boaventura de Sousa SANTOS, afirma que esse embate entre as duas correntes é prejudicial para os direitos humanos pois, enquanto estes direitos forem concebidos como universais, tenderão a operar de cima para baixo, sendo um instrumento de “choque de civilizações”. Para poder operar de baixo para cima, de uma forma contra hegemônica os direitos humanos devem ser recontextualizados através de um diálogo intercultural.[64] Sabe-se que os direitos humanos não são universais na sua aplicação. A universalidade é uma questão específica da cultura ocidental, assentado sobre um conjunto de pressupostos ocidentais. O debate sobre universalismo e relativismo cultural é prejudicial para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Contra o universalismo, há que se propor diálogos entre as culturas, e contra o relativismo, “há que se desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação”.[65] Desde o período colonial até os dias de hoje, a mercantilização sempre tentou unificar gostos, comportamentos, ações e pretensões com o objetivo de maximizar os seus lucros. Isto levou, não só a linearidade e a homogeneidade cultural e o etnocentrismo, mas também a geração de dicotomias, tal qual “desenvolvido e subdesenvolvido”, tradicional e moderno, “atualizado e atrasado”, entre outros.[66]Isso se projetou também no âmbito cultural, pois, todas as culturas tendem a considerar seus valores máximos como os mais abrangentes, contudo, apenas a cultura ocidental passou a formulá-los como universais. Por isso mesmo a questão da universalidade é uma questão particular, específica da cultura ocidental.[67] Todas as práticas sociais que tem a ver com os direitos não devem ser consideradas como resultado de um trabalho acidental ou ocasional de indivíduos ou grupos isolados, mas sim um como parte de um processo mais amplo de relações sociais, políticas, teóricas e produtivas.[68] E de fato, grande parte da cultura ocidental tem se espalhado pelo mundo. Contudo, os conceitos ocidentais de individualismo, liberdade, liberalismo, igualdade, constitucionalismo, direitos humanos, primado da lei, livre mercado, democracia, separação entre Estado e Igreja, diferem profundamente dos prevalecentes em outras civilizações. São conceitos que frequentemente tem pouca ou nenhuma ressonância em outras culturas.[69] O pensamento moderno-liberal sempre tratou de vender as realidades como imodificáveis e que, a única possibilidade era aplicá-las, tal qual como são, sem repensar seus fundamentos e significados.[70]Os esforços ocidentais para propagar tais ideias produz inicialmente uma reação contra o “imperialismo dos direitos humanos”, pois a própria noção de uma “civilização universal” é uma ideia ocidental, que esta imediatamente em choque com o particularismo de grande parte das outras sociedades.[71] As culturas possuem concepções de dignidade humana, algumas mais amplas que outras, mas nem todas concebem em termos de direitos humanos. Ademais, todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade. A incompletude provém da própria pluralidade, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga, haveria apenas uma cultura.[72] O embate entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos, é portanto, uma discussão bastante acalorada e que parece longe de ser findada. Aumentar a compreensão da incompletude cultural é uma tarefa crucial para a construção de uma concepção pacífica dos direitos humanos. É preciso entender que o direito à cultura também é um direito humano. Entretanto, há que se pensar em formas de exercer a cultura sem lesar a integridade de outros indivíduos, mas sempre tendo em mente a diversidade de entendimentos e conceitos nos agrupamentos humanos. Há que se repensar a teoria dos direitos humanos de forma crítica, dando visibilidade a questões que atingem de forma particular atores e direitos “secundários”, e para que esse conceito não carregue apenas e tão somente valores ocidentais pautados no capitalismo e nos interesses de poucos. É necessário recontextualizar os direitos humanos, pois estes não estão prontos ou acabados, mas estão em constante mudança, pois se trata de um conceito dinâmico. LARISSA TOMAZONI Mestranda em Direito pelo Uninter Pós graduanda em Gênero e Sexualidade Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil Pesquisadora do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do Grupo de estudos Jurisdição Constitucional Comparada: método, modelos e diálogos (Uninter) Advogada no escritório Boeing e Tomazoni E-mail: [email protected]. [1]CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. V.3.p.301-303. [2]FACHIN, Melina Girardi. Verso e anverso dos fundamentos contemporâneos dos direitos humanos e dos direitos fundamentais: da localidade do nós à universalidade do outro. São Paulo, 2008. 199f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas. Pontifícia universidade católica de São Paulo PUC-SP.p.73. [3]Ibidem, p.72. [4]Idem. [5]GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.p.10. [6]Ibidem, p.27. [7]Idem. [8]SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 6.ed.Brasiliense: São Paulo, 1987.p.2. [9]Ibidem, p.1. [10]LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.14.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.p.25. [11]Idem. [12]Idem. [13]SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 6.ed.Brasiliense: São Paulo, 1987.p.6. [14]Idem. [15]Ibidem, p.8-9. [16]Ibidem, p.7. [17]Idem. [18]LARAIA, Roque de Barros. Op.cit.,p.44. [19]SANTOS, José Luiz dos. Op.cit.,p.9. [20]Ibidem, p.8-9. [21]LARAIA, Roque de Barros. Op.cit.,p.36. [22]PIACENTINI, Dulce de Queiroz. Direitos humanos e interculturalismo: análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Florianópolis, 2007. 176f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas. Universidade Federal do Paraná.p.73. [23]LARAIA, Roque de Barros. Op.cit.,p.108. [24]GEERTZ, Clifford. Op.cit.,p.4. [25]Ibidem, p.8-9. [26]SANTOS, José Luiz dos. Op.cit.,p.31. [27]LARAIA, Roque de Barros. Op.cit.,p.45. [28]Ibidem, p.20-21. [29]FACHIN, Melina Girardi.Op.cit.,p.74. [30] LARAIA, Roque de Barros. Op.cit.,p.67. [31]ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo?. 5.ed. São Paulo:Brasiliense,1988.p.5. [32]Idem. [33]GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.p.38. [34]GEERTZ, Clifford. Op.cit.,32-33. [35]Ibidem, p.33. [36]Idem. [37]Idem. [38]Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 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