Artigo de Isabela Simões Bueno no sala de aula criminal, vale a leitura! '' Não por acaso, séculos após o fim do regime colonialista e a abolição da escravidão em território brasileiro, pesquisadoras e pesquisadores do fenômeno do encarceramento em massa denunciam que o alvo preferencial do poder punitivo do Estado persiste sendo a população negra e economicamente vulnerável: o mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias[4] informa que 66,31% da população carcerária é composta por indivíduos autodeclarados pretos ou pardos. Atesta-se, sob este prisma, que o critério racial permanece sendo de extrema relevância para os processos de criminalização secundária e para a seletividade penal''. Por Isabela Simões Bueno "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros"
(George Orwell, "A Revolução dos Bichos") 1. O Estado de Coisas Inconstitucional Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal declarou o sistema carcerário nacional como um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), em virtude das constantes violações dos direitos fundamentais dos encarcerados e da inércia do Estado na resolução dos inúmeros problemas vivenciados diariamente pela população carcerária. Para a aplicação do instituto do ECI à situação do cárcere no Brasil, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (ADPF 347), ação de controle de constitucionalidade ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL na data supracitada, trouxe como embasamento principal a demonstração de um “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária” (BRASIL, 2015). Juntamente ao reconhecimento da figura do ECI, o ajuizamento da ADPF 347 também objetivou a adoção de providências estruturais por parte da União, dos estados e do Distrito Federal, considerando as constantes lesões aos preceitos fundamentais dos encarcerados. De acordo com Magalhães (2019, p. 17), tais lesões são responsáveis tanto pela sistemática violação dos direitos humanos no sistema carcerário quanto pelo agravamento exponencial desta situação, de sorte que a adoção e a discussão a respeito de políticas públicas que visam reverter e conter os danos constitui-se como o ponto nevrálgico do documento. Malgrado o rol de deveres legais e constitucionais do Estado para com os cidadãos brasileiros, no que concerne tanto aos direitos humanos quanto aos procedimentos de execução penal, a declaração pelo Supremo Tribunal Federal do referido Estado de Coisas Inconstitucional ressalta a discrepância entre as normas jurídicas e a realidade do cárcere no país. Desde a superlotação de celas – que já chega a 166%[1] – até a inutilização de recursos disponíveis por parte do Poder Executivo e do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN)[2], resta evidente a inobservância a princípios constitucionais cruciais para a efetivação do ideal dos direitos humanos, tais quais a dignidade da pessoa humana e a garantia ao mínimo existencial. O panorama destacado pela ADPF 347 traz consigo o questionamento acerca do alcance da própria categoria de “pessoa humana”: as constantes irregularidades no âmbito da execução penal, bem como a inércia do Estado para com a efetiva promoção de transformações no sistema prisional, parecem representar um obstáculo de difícil superação para que possamos considerar que a aplicabilidade dos direitos humanos se dá de maneira efetiva à população carcerária. Neste sentido, o que tornaria os indivíduos encarcerados menos “humanos” que os demais cidadãos brasileiros, de sorte que a violação sistemática de seus direitos esteja longe de ser considerada como pauta prioritária em nosso Estado Democrático de Direito? 2. A construção do Humano e seus direitos Boaventura de Souza Santos (2019, p. 15) salienta que a categoria dos direitos humanos é construída como "produto singular da história e da cultura ocidental que deve ser universalizado enquanto bem humano incondicional". Conforme narra a tradição ocidental[3], o conjunto de direitos básicos englobados sob a alcunha de direitos humanos foi sistematizado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada e ratificada na França em 1789 como consequência dos processos revolucionários iluministas. Ao versar sobre a hegemonia de documentos como a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como o alicerce de uma concepção fundamentalmente eurocêntrica na história dos direitos humanos, o autor defende que Esta narrativa linear resulta do viés introduzido por uma leitura da história da frente para trás [...] Esta linearidade não é plausível, dado que em cada momento histórico estiveram em competição diferentes ideias de dignidade humana, e a vitória de uma delas, no caso os direitos humanos, é um resultado contingente que pode ser explicado a posteriori, mas que não poderia ser deterministicamente previsto. (SANTOS, 2019, p. 15) Importante ressaltar que os preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade traduzidos pelos documentos de inspiração iluminista, em que pese terem servido como princípio norteador dos processos constituintes de diversos Estados em escala global, pouco ou nada se assemelham à realidade do Brasil no século XXI – em especial no cenário do sistema prisional. Se os direitos humanos e garantias fundamentais recepcionados pela Constituição Federal almejam promover um modo de existência mais digno às cidadãs e cidadãos brasileiros, o Estado de Coisas Inconstitucional no qual se encontra o cárcere parece fazer saltar aos olhos um contexto radicalmente distinto. Nesse contexto, no lugar da liberdade, da igualdade e da fraternidade, perpetuam-se dinâmicas de encarceramento em massa, discursos de inimizade e reproduções da lógica sistemática decorrente da escravização e da criminalização da pobreza. De mesma sorte, o discurso do populismo penal e seus adeptos brada: “direitos humanos para humanos direitos”. Como é sabido, tal bordão é comumente utilizado para defender a restrição da aplicação dos princípios constitucionais concernentes aos direitos humanos e excluir de sua pretensa universalidade os indivíduos que não preenchem os requisitos de “humanos direitos” e, por conseguinte, não poderiam ser qualificados como sujeitos de direito. Para além da evidente carga moralista e maniqueísta trazida por esta frase e outras análogas, a ausência de políticas públicas efetivas e a escassez de discussões que visam modificar positivamente o cenário do sistema prisional ressaltam a materialidade e os efeitos concretos sofridos pela população carcerária. 2. A zona do não-ser Parece haver, portanto, algo de “não-humano” na condição relegada aos encarcerados: uma zona do não-ser (FANON, 2008) criada pela divisão entre aqueles que podem ser titulares de direitos humanos e garantias constitucionais e aqueles outros que, ainda hoje, décadas após a promulgação de nossa Magna Carta e anos após o julgamento da ADPF 347, são apartados da sociedade em uma situação fática inconstitucional. Frantz Fanon denomina de zona do não-ser o campo habitado pelos povos negros, oriundo do contexto da colonização e da escravização: ela seria uma "região extraordinariamente estéril e árida" na qual encontram-se aqueles cuja humanidade é negada pela lógica da modernidade/colonialidade. Nesse sentido, "o homem negro não é um homem" (FANON, 2008, p. 26) – ao menos não o homem tutelado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A partir da terminologia de Fanon, Nelson Maldonado-Torres (2016) compreende a desigualdade humana a partir da linha ontológica estabelecida pela distinção entre a zona do ser e a zona do não-ser. Para o autor: O "fato da desigualdade humana" é uma forma de expressar o convencimento de europeus acerca de seu pertencimento a um modelo superior de humanidade do qual outros sujeitos e comunidades inferiores não participam. Este aparente "fato" faz com que a colonização do não europeu suponha não somente a exploração, senão também a desumanização dos colonizados, o que cria um novo fato que começa a se cristalizar sobre todo colonizado: "o fato da desumanização". (MALDONADO-TORRES, 2016, p. 84) Destarte, através da criação de diferenças e hierarquias entre os colonizadores europeus e os demais povos, notoriamente os africanos e os indígenas, a desumanização torna-se um poderoso mecanismo que objetiva tornar o corpo do colonizado suscetível ao sofrimento e à indignidade, sem que estas ações sejam consideradas violações aos direitos humanos (SANTOS, 2019, p. 12). Em virtude desta divisão, nem mesmo a total aniquilação desses corpos por meio da morte parece merecer luto (BUTLER, 2004); afirmação esta que permite a compreensão da decorrência de ações necropolíticas que até a contemporaneidade incidem com maior predominância sobre corpos negros e periféricos. Não por acaso, séculos após o fim do regime colonialista e a abolição da escravidão em território brasileiro, pesquisadoras e pesquisadores do fenômeno do encarceramento em massa denunciam que o alvo preferencial do poder punitivo do Estado persiste sendo a população negra e economicamente vulnerável: o mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias[4] informa que 66,31% da população carcerária é composta por indivíduos autodeclarados pretos ou pardos. Atesta-se, sob este prisma, que o critério racial permanece sendo de extrema relevância para os processos de criminalização secundária e para a seletividade penal. Por conseguinte, o sistema de justiça criminal representa hoje (e, na realidade, desde sua concepção e implementação) um poderoso instrumento de reprodução e perpetuação das relações de colonialidade, de sorte a excluir do convívio social os indesejáveis. Através dos processos de criminalização e das dinâmicas de precarização e violação de garantias fundamentais, compreende-se que a zona do não-ser, ao transferir-se da plantation para o cárcere, representa a privação ao gozo dos direitos humanos e à própria humanização por parte dos encarcerados. 3. Conclusão Produzir novos olhares sobre os direitos humanos, as garantias fundamentais e o sistema prisional brasileiro na esteira do pensamento decolonial significa, antes de tudo, reconhecer que a universalidade pretendida por meio da implementação dos valores oriundos do pensamento iluminista e eurocêntrico, no seio da modernidade, não se estende a todas as populações. Conforme ressaltado por Santos (2019, p. 18), esta mudança de perspectiva permite identificar que “as mesmas ações que, vistas da perspectiva de outras concepções de dignidade humana, eram ações de opressão ou dominação, foram reconfiguradas como ações emancipatórias se levadas a cabo em nome dos direitos humanos”. Ao passo que os direitos humanos servem apenas aos humanos direitos, repensar a dignidade da pessoa humana sob outras óticas e perspectivas faz-se urgente para que seja possível tutelar as garantias fundamentais expressas pelo texto constitucional de maneira mais igualitária. Trata-se, em suma, de descobrir a humanidade dos habitantes das zonas do não-ser, uma vez que sua permanência em um Estado de Coisas Inconstitucional demonstra que, se todos os cidadãos são sujeitos de direito, alguns o são em maior medida que outros. REFERÊNCIAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. ADPF nº 347. PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE. Relator: Ministro Marco Aurélio. 09 de setembro de 2015. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560>. Acesso: 08 de outubro de 2020. BUTLER, Judith. Precarious Life: The powers of mourning and violence. Nova York: Verso Books, 2004. CABRAL, Thiago. Estado de Coisas Inconstitucional: análise do julgamento da ADPF 347. Canal Ciências Criminais. 26 de junho de 2019. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/analise-do-julgamento-da-adpf-347/>. Acesso: 09 de outubro de 2020. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA, 2008. GROVOGUI, Siba N. Mind, body, and gut! Elements of a postcolonial human rights discourse. In: JONES, Branwen Gruffydd (Ed.). Decolonizing international relations. Plymouth: Rowman and Littlefield Publishers, 2006. p. 179-196. JAMES, Cyril Lionel Robert. The black jacobins: Toussaint l’ouverture and the San Domingo Revolution. Nova York: Vintage Books, 1963. KNIGHT, Franklin W. The Haitian Revolution and the notion of human rights. Journal of the Historical Society, v. 5 n. 3, setembro de 2005. pp. 391-416. MAGALHÃES, Breno Baía. A incrível doutrina de um caso só: análise do Estado de Coisas Inconstitucional na ADPF 347. Revista do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 14, n. 3, 2019, p. 1-36. MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, janeiro/abril de 2016, pp. 75-97. SANTOS, Boaventura de Sousa; MARTINS, Bruno Sena. O pluriverso dos direitos humanos: A diversidade das lutas pela dignidade. São Paulo, Autêntica, 2019. ISABELA SIMÕES BUENO Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política, e bolsista CAPES. Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). NOTAS: [1] Dados provenientes do estudo “Sistema Prisional em Números”, divulgado em agosto de 2019 pelo Conselho Nacional do Ministério Público. O estudo pode ser acessado em: https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros (Acesso: 30/09/2020) [2] A estimativa fornecida durante a sustentação oral referente à APDF 347 é de que o contingenciamento de recursos reservados à melhora do sistema penitenciário é de R$2,2 bilhões; valor este disponibilizado ao FUNPEN, porém não utilizado (CABRAL, 2019). [3] A perspectiva decolonial e crítica enfatiza a relevância de processos que não integram o cânone ocidental – dentre eles, notoriamente, a Revolução Haitiana – para a construção dos ideais traduzidos pela categoria dos direitos humanos (GROVOGUI, 2006; JAMES, 1963; KNIGHT, 2005). [4] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – período de janeiro a junho de 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen/sisdepen >(Acesso: 15 de outubro de 2020).
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