DA LEI SECA DE 1920 NOS EUA A POLÍTICA DE DROGAS BRASILEIRA: O FRACASSO SECULAR DO PROIBICIONISMO7/23/2021 Débora Góes no sala de aula criminal, refletindo sobre a política de drogas brasileira, vale a leitura! ''O surgimento da teoria do lebeling approach, ou teoria do etiquetamento, cujo objeto de estudo é o processo de criminalização, e que tem como objetivo demonstrar de que forma a seletividade penal opera nas etapas de elaboração de leis e sua consequente aplicação no plano fático, fomentou o surgimento da criminologia crítica''. Por Débora Góes 1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo abordar a política de drogas e o proibicionismo de certas substâncias, como a maconha e a cocaína, tidas como ilícitas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, traça-se um paralelo entre a criminalização das drogas atualmente no Brasil e o proibicionismo do álcool nos Estados Unidos durante a década de 1920, com a instituição da Lei Seca. O ano de 1920 marcou o início de uma nova era na história americana. Após o fim da primeira guerra mundial em 1918, os EUA se estabeleceram como potência mundial; o cinema se consolidou, a literatura se despiu, a moda se modernizou e a música se difundiu, dando início ao período conhecido como “loucos anos 20”. A década de 20 foi marcada por intensas mudanças no plano econômico, social e cultural, cenário esse que perdurou até a queda da bolsa de valores em 1929. Durante esse período surgiram novos padrões de consumo, bem como a ascensão de uma nova classe média que ansiava pela modernidade e realização material. A era do Jazz, foi marcada pela rebeldia dos jovens pertencentes a classe média/alta da sociedade; esses, buscavam romper com os padrões tradicionais anteriormente impostos em prol de valores difundidos pelo próprio grupo do qual faziam parte, formando subculturas alheias à sociedade conservadora da época. Esses jovens encontravam o prazer no efêmero, satisfazendo suas vontades no álcool, drogas e bens materiais; almejavam por liberdade e por uma nova identidade, distinta daquela designada por convenções sociais tradicionais. A atmosfera de festas noturnas, cabarés, álcool e jazz era conflitante com os valores da classe conservadora que detinham o poder político e social na época. Sendo assim, os comportamentos libertários que rompiam com esses ideais eram vistos como desviantes, pois feriam os valores religiosos e morais dos grupos conservadores influentes na sociedade e na política. Nesse cenário, houve uma série de reações sociais com o objetivo de sancionar as condutas consideradas degradantes. Desse modo, em uma tentativa de fortalecer os ideais puritanos, consolidar as ideias de produtividade no trabalho, bem como sancionar grupos imigrantes vistos como indesejáveis, em 17 de janeiro de 1920 foi promulgada a 18º Emenda à Constituição Americana, instaurando o que ficou conhecida como Lei Seca. A Lei Seca tinha como alvo o álcool, proibindo a produção, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, de modo que o álcool passou de uma substância lícita para ilícita apenas pela elaboração de uma lei, sem qualquer respaldo na ciência ou em dados concretos capazes de justificar racionalmente essa escolha. A lei foi um fracasso jurídico, político e social, pois era ineficaz. A emenda constitucional tinha como objetivo diminuir o consumo de álcool e aumentar a produtividade na indústria; entretanto tal objetivo não foi alcançado, muito pelo contrário, acarretou diversas consequências negativas, dentre elas o aumento da criminalidade, o surgimento de bares clandestinos e o consumo de bebida de péssima qualidade. Nesse cenário, surge a figura dos Gângsters que lucravam com o contrabando e venda ilegal de bebidas alcoólicas, dentre eles o lendário Al Capone. Assim, o proibicionismo do álcool provocou o surgimento do comércio ilegal, agravado pela total ausência de regras governamentais que regulassem a produção, distribuição ou consumo. A Lei Seca foi revogada em 1933 pelo presidente americano Franklin Roosevelt, por meio da promulgação da 21º Emenda Constitucional, uma vez que após a crise de 1929 o governo viu no comércio de bebidas uma fonte de empregos e receita para o governo. Desse modo, o álcool foi novamente colocado no rol de drogas lícitas pelo ordenamento jurídico americano. Ou seja, o que era crime passou a não ser mais crime por uma determinação legal fortemente influenciada por fatores econômicos. Sendo assim, é possível questionar, como algo que era visto como nocivo a sociedade passou a ser considerado como algo bom em outro momento? Pode-se concluir que o problema não reside na conduta que está sendo criminalizada, mas sim nas pessoas que a praticam e que são vistas como indesejáveis pelos grupos que possuem o poder para elaboração de leis e sua aplicação. Conclui-se que o crime é uma construção social influenciada pelos grupos dominantes em dado momento, podendo tal assertiva ser comprovada ao analisar a Lei Seca Americana de 1920 e o cenário em que se encontra a política brasileira de drogas, sob o olhar da criminologia crítica inaugurada por Alessandro Baratta. A criminologia crítica pode ser vista como uma contraposição às escolas criminológicas anteriores, dentre elas a escola positiva que concebia o comportamento desviante do indivíduo como sendo o resultado de desvios em sua biologia, intrinsecamente ligados à sua natureza. O surgimento da teoria do lebeling approach, ou teoria do etiquetamento, cujo objeto de estudo é o processo de criminalização, e que tem como objetivo demonstrar de que forma a seletividade penal opera nas etapas de elaboração de leis e sua consequente aplicação no plano fático, fomentou o surgimento da criminologia crítica. A criminologia vista sob um viés crítico surge com Alessandro Baratta, tendo como enfoque a sociedade e a desigualdade em suas estruturas de poder. Desse modo, enxerga o crime como uma construção social que tem como objetivo, mesmo que implicitamente, garantir a manutenção do poder a partir da criminalização de determinadas condutas. O processo de criminalização é o resultado da arbitrariedade política existente entre as classes mais favorecidas sobre as classes dominadas. Sendo assim, tal processo parte de duas vertentes: inicialmente ocorre a seleção dos bens que serão tutelados e protegidos pelo direito penal e a descrição dos comportamentos que serão considerados como desviantes nos tipos penais, e por fim, ocorre a seleção dos indivíduos que serão alvo de tais normas penais. Segundo Baratta: “a criminalidade é um ‘bem negativo’ distribuído desigualmente conforme a hierarquia de interesses fixada no sistema sócio econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos” (BARATTA, 1982). Em outras palavras, o direito penal não é igual para todos; isso se deve ao fato do poder político e econômico estar distribuído de maneira desigual pelas camadas sociais. Nesse cenário, o direito penal tornou-se um instrumento de poder nas mãos da elite dominante, tendo como objetivo manter longe do convívio social os indivíduos tidos como indesejáveis. Sendo assim, o processo de criminalização contribui para a manutenção da hegemonia política e econômica, privilegiando os interesses dos indivíduos dotados de poder, bem como contribui para a estigmatização das classes mais baixas da camada social. Segundo Baratta, Os mecanismos de criminalização secundária acentuam ainda mais o caráter seletivo do direito penal. No que se refere à seleção dos indivíduos, o paradigma mais eficaz para a sistematização dos dados da observação é o que assume como variável independente da posição ocupada pelos indivíduos na escala social (BARATTA, 1982) Nesse sentido, pode-se inferir que o problema não reside no comportamento em si, mas nos indivíduos que o praticam, que são considerados subalternos e indesejáveis, como claramente observável na Lei seca que proibiu álcool, e também na política de drogas brasileira. A Lei 11.343 de 2006, também conhecida como Lei Antidrogas instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Estão previstas nesta legislação normas referentes à produção, comércio, consumo, tráfico, bem como define os crimes envolvendo tais substâncias. O art. 33 da referida lei prescreve: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Ademais, a lei também prevê as hipóteses no que tange a posse de drogas para consumo pessoal, previstas no art. 28: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Os defensores da política proibicionista como meio de combate às drogas pautam-se em duas premissas centrais que supostamente dariam legitimidade ao Estado para proibir e criminalizar o uso de certas substanciais, sendo elas: 1) O consumo de drogas é uma prática danosa que tem como consequência danos fisiológicos, dependência química, potencializa transtornos mentais e influenciam no comportamento social do usuário. 2) A atuação ideal do Estado para combater o problema de drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo, aplicando sanções penais tanto aos produtores, comerciantes e usuários, como meio de minimizar problemas sociais e de saúde pública. Primeiramente, é necessário destacar que todas as ações praticadas pelos indivíduos são passíveis de gerar algum tipo de risco, desde dirigir diariamente seu carro para o trabalho, sair no final de semana com os amigos, fazer uso de drogas lícitas como o álcool, medicamentos, ou até mesmo da cafeína presente no cafezinho sagrado de todos os dias. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) droga é toda a substância que, por sua natureza química possui a propriedade de afetar o funcionamento cerebral e provocar alterações no funcionamento do organismo. Portanto, o conceito de drogas é amplo e genérico abarcando um conjunto de substâncias, tanto lícitas como ilícitas. Nesse cenário, não há argumentos racionais capazes de justificar a escolha de determinadas substâncias para serem criminalizadas em detrimento de outras. Entretanto, apesar da escolha não ser pautada em critérios científicos, ela não ocorre de modo aleatório. As substâncias alvo da política de drogas são aquelas associadas ao longo da história com as camadas mais pobres da sociedade, como é o caso da maconha, da heroína e da cocaína, de modo que esse subjetivismo contribuí para a manutenção da seletividade no âmbito do direito penal. A segunda premissa se baseia na crença de que ao criminalizar as drogas o comércio de entorpecentes irá diminuir, bem como o seu consumo, evitando problemas na área da saúde e contribuindo para a redução da criminalidade. Entretanto, há dois pontos de tensão nessa crença; o primeiro deles é a violação do princípio do direito penal mínimo, e o segundo é a interferência estatal na esfera privada do indivíduo quando não há prejuízo para terceiro. De acordo com Ferrajoli, citado pelo professor André Pontarolli se faz necessário adotar um direito penal mínimo, no qual se observa os princípios da legalidade, necessidade e ofensividade. Sendo assim, ao utilizar o aparato punitivo estatal para criminalização das drogas o direito penal passa a operar no caráter de prima ratio, exercendo um papel estigmatizante e deslegitimando as reais soluções, uma vez que drogas não são um problema do direito penal, mas sim de saúde pública. De acordo com Lynsander Spooner: Os vícios são atos através dos quais um homem lesa sua própria pessoa ou seus bens. Os crimes são atos através dos quais um homem lesa alguém ou seus bens. (…). Falta, nos vícios, a essência do crime em si mesma – a intenção de lesar outra pessoa ou seus bens. Segundo a máxima jurídica, não há crime sem motivo, isto é, o propósito de causar dano a outra pessoa ou a seus bens. Ademais, como bem aponta o professor Pontarolli: Ocorre que as drogas, por si, não atingem a esfera jurídica de terceiro (princípio da alteridade, a ponto de justificar a ingerência do Estado, através do controle punitivo. Usar drogas é uma escolha pessoal, talvez reprovável no campo da moral, mas não de repercussão penal. Sendo assim, pode-se inferir que a criminalização das drogas, além de não solucionar os reais problemas, interfere de modo ilegítimo na esfera privada individual, pois tem como único objetivo influir nas escolhas pessoais, aqui podendo ser denominadas até mesmo de escolhas morais, sem, contudo, proteger bens jurídicos. Tendo em vista todo o exposto, há que se considerar que os critérios utilizados para a criação dos tipos penais ao longo dos anos são fortemente influenciados pelos grupos que ocupam o poder em determinada sociedade, seja no século XX com a Lei Seca, ou na atual política de drogas adotada pelo Brasil, a moralidade e as influências culturais continuam exercendo forte influência durante o processo de criminalização. Além disso, a utilização do aparato estatal não é legítima, uma vez que viola os princípios norteadores do direito penal, bem como retira o poder do indivíduo de escolher quais serão suas condutas. Mais de um século se passou entre a Lei Seca e a atual situação das drogas em nosso país, entretanto seja nos EUA em 1920 ou no Brasil em 2021 a aplicação do direito penal continua sendo falha e a política proibicionista fadada ao fracasso. A sociedade se modernizou, a tecnologia evoluiu, a ciência avançou, porém os métodos de segregação social dos indesejáveis continuam os mesmos. Débora Góes Acadêmica da 4ª fase do Curso de Direito, Unc campus Canoinhas. REFERÊNCIAS: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro. Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BRASIL, Lei Federal nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. < Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm > Acessado em 20 de julho de 2021. FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. < Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/yQFZQG48VQvdYW8hQVMybCd/?lang=pt > Acessando em 20 de julho de 2021. PONTAROLLI, André. Quer combater as drogas? Tire o direito penal do caminho. < Disponível em: http://www.salacriminal.com/home/quer-combater-as-drogas-tire-o-direito-penal-do-caminho > Acessado em 20 de julho de 2021. MAZLOUM, Nadir. Se você for um liberal a criminalização das drogas não faz sentido. < Disponível em: https://www.justificando.com/2019/08/15/se-voce-for-um-liberal-de-verdade-a-criminalizacao-das-drogas-nao-faz-sentido/ > Acessado em 20 de julho de 2021.
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