Montanha e Cordilheira: Uma ParanacrônicaA velha e enlameada caminhonete estacionou em frente ao meu escritório, localizado no centro de Curitiba. De chapéu e camisa xadrez, desce o motorista. Montanha. Esse era o sugestivo apelido do cliente que decidiu me contratar tão logo completei meu sexto mês de formado. Montanha se senta na sala de reuniões, sem qualquer cerimônia. Aceita o café que ofereço. “Sem açúcar. Se a vida é amarga, o café também tem de ser”. Antes mesmo do primeiro gole, narra a situação que o trouxe até à capital. Havia comprado uma fazenda, em Paranapoema, pertencente a outro fazendeiro. A intenção de pagar era boa, mas a colheita dos últimos tempos, nem tanto. Faltou o dinheiro. As parcelas atrasaram. “Doutor, nunca vi homem intolerante como esse que me vendeu as terras! Poucos meses em atraso e já quer que devolva a fazenda. Não devolvo! Última vez que me encontrou, ameaçou: saio da propriedade com vida ou sou enterrado lá mesmo!” Eis que entendi a razão da minha contratação. Deveria ir à comarca de Paranacity para oferecer a representação e ver o tal fazendeiro responder pelo crime de ameaça. Fechamos o contrato de honorários. Inseri uma cláusula de sucesso: se o fazendeiro fosse efetivamente condenado pela ameaça, Montanha fazia questão de me pagar um valor extra. A intenção de me pagar era boa. Comecei a rezar que as colheitas, então, também fossem. Dia seguinte, notícia crime elaborada, peguei o ônibus e cai na estrada. De terra. Chegando ao destino, não foi difícil localizar a delegacia. Era na rua principal – e única - da cidade. Entreguei a petição ao escrivão, que reagiu entusiasmado com o termo, até então por ele desconhecido, “notitia criminis”. Logo entendi que Paranacity podia ter alguma relação com o inglês, mas não tinha nenhuma com o latim. Missão cumprida, hora de almoçar. Se tive facilidade para encontrar a delegacia da cidade, não posso dizer o mesmo sobre restaurantes. A comarca não contava com nenhum. Me restou adentrar no único bar. Me sentei ao balcão, cercado por vidros em conserva. O rádio de madeira cantarolava Milionário e José Rico. Alguns homens ao meu redor, muito menos conservados do que o rollmops, bebiam e discutiam sobre tudo e sobre nada. A velha e enlameada caminhonete estaciona em frente ao bar. Montanha me daria carona até Maringá, onde eu pegaria o ônibus de retorno. Ainda nos primeiros quilômetros rodados, o cliente se anima. “Doutor! Podemos passar na fazenda, em Paranapoema? Assim converso com o caseiro e vejo se está tudo bem...”. Lembrei da peça que redigi na noite anterior. Mais especificamente, da ameaça que tive de detalhadamente relatar ao Delegado: “se não desistir da fazenda, será enterrado lá mesmo.” Não pude deixar de ponderar. “Não é perigoso, Montanha?”. “Ah, Doutor... não sou homem de me encolher.” Eu, no auge dos meus vinte e dois anos, sequer pensei duas vezes. “Eu também não! Inclusive, pode me chamar de Cordilheira!” Chegamos à fazenda. Montanha, acreditando que, ao assinar a procuração, me tinha, literalmente, como seu defensor, me incumbe de uma nova função: “fica aí perto da porteira, Doutor. Se alguém aparecer, dá um grito... assim tenho chance de me defender”. Tentei me consolar. Nada de tão ruim poderia acontecer em um lugar que se chama Paranapoema. Me concentrei e tentei não fazer nenhum paranadrama. Deu certo. Montanha logo estava de volta, para partirmos. Ninguém apareceu. Voltei à Curitiba. Ainda com a terra vermelha nos sapatos, decidi revisar o contrato de honorários firmado com Montanha. Ao lado da cláusula de sucesso, acrescenteioutra, ainda mais importante e útil. A cláusula de sobrevivência. Marion Bach Advogada Mestre em Teoria do Estado pela UFPR Professora de Direito Penal da UNICURITIBA e UNIFAE Nota de fim de filme (crônica): os fatos reais (ou quase reais) narrados foram protagonizados pelo Advogado André Pontarolli. Esta é a primeira (escolhemos o criador do site para começar) da série que seguirá com novos protagonistas!
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