A frase presente no título do texto de hoje foi extraída do livro de Neil Gaiman, “Deuses Americanos”. No contexto em que se encontra presente na obra, a frase quer dizer literalmente a ideia que se tem ao lê-la. Não vou esmiuçar todo o cenário em que ocorre o contato do protagonista com um esquilo (bem de perto), evitando assim dar spoilers sobre a história. Isso porque em que pese o livro tenha sido escrito já há um bom tempo, a história foi recentemente adaptada para uma série de televisão, a qual está sendo atualmente transmitida semanalmente, e a passagem em questão se dá num momento mais no final da obra. Limito-me, portanto, a extrair esse pequeno trecho do livro para contextualizar de maneira comparativa com uma situação que ocorre no mundo jurídico.
O livro conta a história de Shadow, um cidadão que passou três anos preso, ansiando pelo momento da restituição de sua liberdade. O mundo para além das grades o aguardava, e Shadow possuía boas promessas e expectativas de melhoria de vida. Sua esposa o aguardava. Um amigo também o esperava de braços abertos em sua empresa, o qual contrataria Shadow, oportunizando-lhe um emprego tão logo fosse liberto. No entanto, como a história tem um pé na tragédia, Shadow vê todas as suas perspectivas evaporarem diante de si. Inesperadamente, uma nova reviravolta acontece em sua vida, de modo que o protagonista perde tudo aquilo que possuía do lado de fora. Vendo-se nesse momento com um rumo pouco definido, tão logo sai da prisão, Shadow é abordado por Wednesday, um sujeito peculiar que lhe oferece uma proposta de emprego também um tanto quanto peculiar, ao que, após um pequeno período de resistência, é aceito. E assim inicia a jornada de Shadow, o qual, sem intencionar ou sequer mesmo imaginar algo grandioso, acaba se vendo em meio a uma guerra entre novos e velhos deuses. Aparentemente, há uma grande batalha que está por vir, sendo necessário que os exércitos se reúnam para a gloriosa batalha que definirá o novo rumo da humanidade. De um lado, os velhos e conhecidos deuses - em que pese pouco lembrados - mitológicos e religiosos. De outro, os novos deuses - aqueles que dominam a contemporaneidade - que foram erigidos pela própria humanidade: a televisão, o sexo, a tecnologia... Em certo momento da história, o protagonista se encontra numa situação em que é impedido de se mover: está amarrado junto à uma árvore. Eis que um esquilo surge bem em frente ao seu rosto. Toda aquela ideia que Shadow tinha de esquilos, seres bonitinhos, dóceis e engraçadinhos, esvai-se quando conhece a criatura mais de perto: Descobriu que, de perto, um esquilo é bem menos bonitinho do que de longe. A criatura parecia um rato, e, além de perigosa, não tinha nada de delicada e encantadora. E seus dentes pareciam muito afiados. Shadow torceu para que ele não o considerasse uma ameaça, ou comida. Achava que esquilos não eram carnívoros... mas, por outro lado, tantas coisas que ele achava que não eram acabaram sendo... Pois bem. A reflexão comparativa que hoje faço se dá para com parcela do discurso do senso comum que entoa “conhecimentos” sobre o sistema penal. As condições do cárcere brasileiro são notoriamente indignas. Não há o mínimo respeito para com as diretrizes normativas que estabelecem como as prisões deve(ria)m ser. As cadeias são verdadeiras masmorras. As situações dos reclusos são extremamente degradantes. Enfim, o sistema penal fracassa também em suas estruturas. Ocorre que mesmo diante de tal fato, há vozes que descrevem o sistema carcerário como um lugar em que o “bandido come e dorme de graça”. “Assim é fácil”, dizem alguns, “o cara pratica o crime e depois fica tranquilo comendo e bebendo às custas do Estado”. Quem assim diz e acredita na própria fala, é porque viu o esquilo apenas de longe. O esquilo de Shadow, ou o sistema carcerário, enquanto visto de longe por alguns, acaba sendo percebido de maneira disforme daquela que verdadeiramente é. Para esses que veem o cárcere apenas de longe, não é possível notar que o esquilo bonitinho está mais para um rato asqueroso (superlotação nas celas, obrigando os detidos a terem que revezar o tempo para dormir). Também não conseguem enxergar os dentes afiados do roedor (celas extremamente insalubres), bem como o fato de que a criatura pode ser perigosa (sistema que diz ressocializar, mas acaba contribuindo para os índices de reincidência). Quem adota esse tipo de discurso, ou o faz apenas da boca para fora – entoando frases de efeito desprovidas de uma base concreta, ou é bastante ingênuo para acreditar que no sistema carcerário se tenha uma “vida fácil”. Às vezes é preciso encarar o esquilo de frente, bem de perto, para perceber que o bichinho é menos bonitinho do que quando visto de longe. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. p. 438 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |