Sabe-se que toda forma de lembrança assemelha-se à maneira de vivenciar um fato acontecido. Assim, pode-se imaginar que prestar um depoimento, em muitos casos, não deva ser agradável. Já existem algumas ferramentas que procuram minimizar os desconfortos, mas o próprio processo pode ter características que precisam ser realizadas e seguidas. Entretanto, há casos em que é necessário um cuidado especial e um tratamento diferenciado.
Imaginemos um suposto caso de violência, em que a vítima é uma criança e que há indícios de abuso sexual. Há diversos aspectos que permeiam essa situação, tanto familiares, sociais, jurídicos e, especialmente, psicológicos, sendo uma das mais delicadas a serem tratadas. Mesmo assim, não pode-se deixar de investigar para chegar o mais perto possível do que, de fato, aconteceu e montar um estudo concreto. Assim, lembramos que, em 1924, a Organização das Nações Unidas (ONU) atesta uma obrigatoriedade em que todos os estados membros devem agir de forma a proteger os direitos da criança; além disso, através da Declaração de Genebra, é reconhecido que o infante deve ser protegido, sem qualquer tipo de discriminação, sendo o primeiro a ser auxiliado em tempos de infortúnio, assim como ser alimentado e educado, de forma a garantir uma vivência digna, levando em conta que está em posição mais frágil dentro da sociedade (RODRIGUES, 2017). Através dessa premissa, que considera convenções e tratados nacionais e internacionais, e de diversos estudos, levando em conta também a realidade do ambiente, mecanismos legais foram sendo elaborados. Tais criações também resultaram em uma mudança na maneira de pensar e de agir, pois passam a ver a criança enquanto um ser humano detentor de direitos (RODRIGUES, 2017). E isso é notado também fora do âmbito jurídico. Nesse aspecto, não podemos deixar de imaginar a importância da Psicologia para intermediar as demandas da criança e aquilo que é exigido pelo Direito, dentro de um processo. A ideia é, através de métodos alternativos à oitiva tradicional, existam meios de extrair o que é necessário, poupando desconfortos e minimizando variáveis que possam interferir negativamente. Assim, é apresentado o "Depoimento sem dano", um projeto que proporciona as questões problematizadas até então. Como menciona Schott e Santos (2016), "a justiça necessita de qualidade técnica e humana"; então, a inquirição de crianças e adolescentes tem como objetivo a redução de danos psíquicos que podem ser ocasionados, trazendo indícios à prova produzida e garantindo a proteção dos sujeitos, que, nestes casos, são, majoritariamente, vítimas de violência e/ou abuso sexual. Sendo situações bastante delicadas, vê-se a necessidade de realizar um tratamento diferenciado nessa escuta, pois é preciso uma condução também diferenciada, já que são ocorrências em que os danos psicológicos são muito mais fortes que os físicos, e, normalmente, o acusado pertence à família ou está intimamente ligado a ela, dificultando a produção de provas. Pode-se utilizar uma sala em separado, estabelecendo um ambiente mais seguro à criança, para que ela sinta-se à vontade de partilhar algumas informações. É possível a utilização de uma escuta, por parte do psicólogo ou por quem estiver responsável por conduzir o diálogo, fazendo com que as perguntas solicitadas possam ser transmitidas e direcionadas ao indivíduo, através desse responsável mediador. A requisição da fala de crianças e adolescentes, quando inseridos nestas situações, é bastante comum. Assim, elas serão ouvidas por profissionais da equipe técnica vinculada às Varas, para a elaboração de um laudo interdisciplinar; mesmo assim, é critério do juiz responsável a solicitação desse procedimento, visto que, em alguns casos, o depoimento obtido em audiência já é tido como suficiente para uma tomada de decisão (SCHOTT, SANTOS, 2016). Segundo Daltoé Cezar (apud. SCHOTT, SANTOS, 2016), autor do projeto, essa forma de inquirição atenderia a três objetivos principais:
A partir dos objetivos e métodos, encontra-se a necessidade de humanização, tendo vista que a vítima encontra-se em estado sensível e deve-se, ao máximo, evitar a revitimização. Para isso, Schott e Santos (2016) apontam que leva-se em consideração o estado psíquico do indivíduo, para fazer com que ele não reviva o fato, mas relembre. E é nesse meio que a Psicologia encontra, mais uma vez, um espaço para atuação. Isso permite que o trabalho realizado pelos psicólogos que atuam na área da direito tenha um propósito firme, pautando um caminho propício para o constante crescimento e melhoramento (RODRIGUES, 2017). Mas, muito além disso, a visão da criança e do adolescente como um ser humano em desenvolvimento e também portador de direitos abre o pensamento e muda alguns paradigmas sociais, fazendo enxergar que é dever da sociedade a educação, cuidado e proteção dos menores para, quem sabe, um dia, o Depoimento sem Dano não precisar mais ser utilizado. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: RODRIGUES, Ana L. S. A presença do psicólogo em audiências com crianças e adolescentes. Disponível em <http://bdigital.ufp.pt/handle/10284/5908>. Acesso em 25 jun. 2017. SCHOTT, Fabiane & SANTOS, Dimitry V. A PSICOLOGIA E O DEPOIMENTO SEM DANO, PERSPECTIVAS ENTRE A PROTEÇÃO E A INQUIRIÇÃO, INTERFACES DA PSICOLOGIA E DO DIREITO. Disponível em <file:///C:/Users/clayt/AppData/Local/Packages/Microsoft.MicrosoftEdge_8wekyb3d8bbwe/TempState/Downloads/14712-11704-1-PB.pdf>. Acesso em 26 jun. 2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |