Shakespeare foi um homem além de seu tempo, ator, autor, e um gênio do teatro, abordou temas e personagens da forma mais complexa, buscando retratar da forma mais profunda as alegrias, tristezas, angústias e dores humanas. Alguns autores tem escrito sobre a questão do duplo tempo em Otelo, no Ato I, pois Cássio não sabia com quem Otelo iria se casar, e a ação, a partir da chegada em Chipre, daria a entender que teria local a verdadeira noite de núpcias, terminando em 48 horas, o que tornaria impossível o possível adultério de Desdêmona[1].
Nesse sentido, alguns autores tem abordado também a forma como Otelo acredita em Iago, que seria de uma imensa ingenuidade, tendo em vista que na obra todos acreditavam em Iago. Iago era um personagem capcioso, e logo no início da tragédia, observa-se a intenção de Iago em retratar Otelo de forma desfavorável[2]. Em Otelo, o amor idealizado nascido entre ‘’um bárbaro errante’’ e ‘’uma veneziana sofisticada’’ enseja um casamento precipitado entre os dois, e é posto em xeque por Iago antes mesmo de se concretizar. Otelo, o Mouro de Veneza, não pode lutar contra seus instintos absolutos, característicos das culturas primitivas, agiu segundo suas convicções e indagações, sem em nenhum momento buscar ouvir a verdade, e primordialmente, ouvir sua amada Desdêmona. E assim, como os mais clássicos heróis trágicos nas obras de Shakespeare, aprende-se pelo sofrimento, Otelo tem então um momento de serenidade antes de sua morte[3]. DESDÊMONA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. Em uma das cenas mais clássicas da peça de Shakespeare, minutos antes da tragédia que estava por vir, é vislumbrado no diálogo entre Otelo e Desdêmona uma cena muito característica de relacionamentos abusivos e casos de violência contra a mulher. Desdêmona encontra-se deitada em seu quarto, quando Otelo chega e começa a fazer inúmeras indagações, ao passo que nem a possibilidade de resposta é dada a Desdêmona. Cena II – Um quarto no Castelo (Desdêmona, no leito, adormecida.) (Entra Otelo, com uma tocha.) Otelo É a causa, sim, a causa, minh’alma, Não a nomeio ante as castas estrelas: É a causa; mas sangue não derramo, Nem mancho sua pele, alve de neve E lisa como a glória do alabastro; Porém tem de morrer, senão trai outros. Apago a luz, e, então, apago a luz: Se a ti eu sufocar, oh flama ardente, Posso de novo restaurar-te a luz, Se me arrependo; mas, se a você apago, Molde sagaz na natureza excelsa, Desconheço calor de Prometeu Que a reascendesse: já colhida, Não posso dar à rosa viva; Tem de secar; vou cheirá-la no galho. (Beija-a). Hálito quente assim quase convence A justiça a trair-se uma vez mais: Se ficar assim morta, vou mata-la, E amá-la depois: mais uma, a última, E o doce mais fatal: agora choro, Mas é pranto cruel, dor celestial Que golpeia o que ama: ela desperta. Desdêmona Quem está ai, Otelo? Otelo Sim, Desdêmona. Desdêmona E vem deitar-se, meu senhor? Otelo Fez suas orações? Desdemôna Fiz, meu Senhor. Otelo Mas, se puder lembra-se de algum crime Ainda sem perdão do céu e a graça, Implore-o logo[4]. Otelo começa a fazer inúmeras indagações no quarto de Desdêmona, já preparado e convencido do ato que irá cometer. Na narrativa literária, é observado no último diálogo de Desdêmona e Otelo, que o principal motivo de desconfiança da possível traição, foi um lenço, decorado com morangos, que Otelo havia dado a sua esposa, possuindo grande valor sentimental. Desdêmona Que Deus de mim se apiede. Otelo Digo amém Desdêmona Sede também piedoso. Em toda a vida jamais vos ofendi. Nunca amei Cássio, só lhe tendo dedicado essa amizade que o céu permite, e nunca o presenteei. Otelo Pelo céu, vi meu lenço na mão dele. Mulher perjura, em pedra me transmudas o coração e o nome dás de crime ao que pensava ser um sacríficio. Vi o lenço! Eu mesmo! Desdêmona Então, é que ele o achou. Nunca lho dei. Mandai chama-lo, par vir confessar o que há[5]. Nesse sentido, é possível fazer uma relação entre o Direito e a literatura por meio de seus personagens, evidenciando uma fusão de ficção da literatura e da realidade[6], fato que denota a violência contra as mulheres, primordialmente nos casos de assassinato. O que é vislumbrado, é uma naturalização da violência contra a mulher, que aparece nas narrativas literárias, em demasiados julgamentos desses crimes, demonstrando premissas comuns[7]. Os dados demonstram que as mortes de homens e mulheres não possuem fatores comuns, há diferenças que denotam a ausência de neutralidade nesses casos. A absoluta maioria das mortes dos homens está relacionada a armas de fogo e acidentes de trânsito conforme dados do mapa da violência, enquanto para as mulheres há inúmeros casos de violência e agressões cometidas pelos próprios parceiros, dentro do espaço conjugal[8]. No que tange a morte de mulheres, o Brasil está no 5º lugar entre os países com mais assassinatos. Em 10 anos, 50 mil mulheres foram mortas, a cada dia 15 mulheres, a cada hora e meia, 1 mulher sendo assassinada. A utilização de armas de fogo, faca e punhais, bem como diversos outros instrumentos cortantes, correspondem 84% dos casos[9]. Desdêmona é assassinada no seu quarto, dentro de sua casa, sendo possível analisar uma leitura simbólica da própria condição das mulheres. Conforme dados divulgado pelo IPEA, 40% dos casos de violência e mortes de mulheres, são realizados pelos próprios parceiros, inúmeras vezes dentro do próprio espaço conjugal. E infelizmente, em pleno século XXI, os dados continuam sendo alarmantes, sendo possível citar inúmeras ‘’Desdêmonas’’ da vida real, que tiveram seus sonhos ceifados por indivíduos que se consideram superiores, simplesmente pela condição de ser homem. Entre março de 2016 e março de 2017, foram registrados 2.925 casos de feminicídio no Brasil, sendo aproximadamente oito caso por dias segundo dados do Ministério Público[10]. Alguns casos relevantes demonstram a importância da luta cotidiana de enfrentamento a violência contra a mulher, como Gabrielly Dias de Macedo, 18 anos, assassinada pelo ex-namorado, em Santo André, na Grande São Paulo. Foi abordado que o mesmo convidou a vítima para uma reconciliação e a espancou até a morte por suspeitar que ela tivesse outra pessoa[11]. Outro caso chocante divulgado pelas redes sociais, foi o de Valdiceia Paixão, 38 anos, foi morta e teve o corpo carbonizado pelo marido, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Ele confessou o crime. Valdiceia foi encontrada morta por asfixia e com o corpo carbonizado em um campo de futebol do bairro[12]. Essas são as Desdêmonas da vida real, infelizmente consumados em demasiados casos cotidianos, demonstrando a atualidade das brilhantes obras e tragédias Shakesperianas, que completam já 400 anos. Em decorrência disso, lutar pela efetivação dos direitos das mulheres, bem como lutar para a garantia da construção de um mundo mais justo, é uma medida que se impõe. Nossa luta é todo dia! Paula Yurie Abiko Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano FAE, 9º período Estagiária do Ministério Público Federal Membro do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal Membro do grupo de Pesquisa O mal estar no Direito Membro do grupo de Pesquisa Trial By Jury e literatura Shakesperiana Referências bibliográficas HELIODORA, Barbara. Grandes obras de Shakespeare. Tragédias. Liana de Camargo Leão, organização, Barbara Heliodora. PLACHA, Priscila. O julgamento de Otelo O Mouro de Veneza. Direito e Literatura: edição comemorativa Shakespeare 400 anos. https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-oito-casos-de-feminicidio-por-dia-diz-ministerio-publico.ghtml, acesso em 04 de jan. de 2018. https://claudia.abril.com.br/noticias/mais-de-50-casos-de-feminicidio-foram-noticia-este-ano-no-brasil/, acesso em 04 de jan. de 2018. [1] HELIODORA, Barbara. Grandes obras de Shakespeare. Tragédias. Liana de Camargo Leão, organização, Barbara Heliodora, Tradução. p. 344. [2] Ibdem. p. 344. [3] Ibidem. p. 346. [4] HELIODORA, Barbara. Tradução. Grandes obras de Shakespeare. p. 477 e 478. (grifos nossos) [5] HELIODORA, Barbara. Tradução. Grandes obras de Shakespeare. (grifos nossos) [6] PLACHA, Priscila. O julgamento de Otelo O Mouro de Veneza. p. 114. [7] PLACHA, Priscila. O julgamento de Otelo O Mouro de Veneza. p. 115. [8] PLACHA, Priscila. O julgamento de Otelo O Mouro de Veneza. p. 115. [9] PLACHA, Priscila. O julgamento de Otelo O Mouro de Veneza. p. 116. [10] https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-oito-casos-de-feminicidio-por-dia-diz-ministerio-publico.ghtml, acesso em 04 de jan. de 2018. [11] https://claudia.abril.com.br/noticias/mais-de-50-casos-de-feminicidio-foram-noticia-este-ano-no-brasil/, acesso em 04 de jan. de 2018. [12] https://claudia.abril.com.br/noticias/mais-de-50-casos-de-feminicidio-foram-noticia-este-ano-no-brasil/, acesso em 04 de jan. de 2018. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |