A palavra contraditório tem origem no latim contradictorius e significa, literalmente, uma contradição, algo incompatível. Em suma, contraditório é algo que resulta da ação de contraditar, da oposição de algo a outra coisa anterior e distinta. No direito, especialmente no direito processual, o princípio do contraditório está associado à construção de uma narrativa contrária a uma narrativa anterior, correspondentes às narrativas de requerido e de requerente, respectivamente. Sobre a definição de princípio, sobretudo dos princípios processuais, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho afirma que, além de remeter ao início, à gênese, à causa, princípio é o motivo conceitual sobre o qual se funda uma teoria (no caso em comento, o jurista se referia a uma teoria do processo penal) e que pode estar ou não escrito num texto legal. Conclui a definição dizendo que princípio é um mito, uma palavra que é dita no lugar de algo que não existe ou que não pode ser expressado através da linguagem[i]. Ao referirmo-nos ao direito, recordamos da quantidade de livros jurídicos destinados a concursos públicos com apelo à facilitação e, sobretudo ao adestramento instrumental da racionalidade ávida por concursos. Como no paradoxo de Tostines, recordado por Lenio Luiz Streck, não sabemos se os concursos são assim por causa dos livros e cursinhos ou se os livros e cursinhos são assim por causa dos concursos. Isso porque, assim como não é possível saber se Tostines é mais fresquinho porque vende mais ou se vende mais porque é fresquinho, não conseguimos delimitar a relação causa-efeito. Mas, inequívoca é a constatação da instrumentalidade que o ensino do direito assumiu nas universidades. Tal condição instrumental impede o estudante de perceber que a justiça do direito não é um fim em si mesmo, não basta a si mesmo, é apenas um meio. Ou, dito de outra forma, a lei não coloca ordem no caos, apenas legitima a ordem constituída que emana do caos. De todo modo, o estabelecimento da causa e do efeito não altera nossas considerações, porque nos basta tomar os livros facilitadores como paradigma para a análise que propusemos nesta crônica. Esses livros têm títulos finalizados com palavras como esquematizado, simplificado, descomplicado etc. Há até resumos de 8p. plastificados que, como bem observa o professor André Luis Callegari, só podem servir para estudar durante o banho ou surfando uma bela onda. Tomamos um desses livros[ii], por ser fonte importante dos estudos de juristas nacionais, para observar uma preocupação fundamental, porque inicial e porque serve de fundamento, com o texto constitucional. O autor inicia citando o art. 5º, LV, da Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Após a citação direta, conclui que resultam daí duas exigências. A primeira é de dar ciência às partes da existência do processo e de tudo o que nele se passa. A segunda é a de permitir que se manifestem no processo. Essas duas exigências que, com Lenio Luiz Streck podemos chamar de regras instituídas pelo princípio do contraditório, são quase que unânimes na literatura processual brasileira e, talvez, estrangeira, ao menos nos países com sistemas jurídicos de inspiração romano-germânica. Podemo-nos referir, ainda, a uma terceira regra, a da influência nas decisões judiciais, pois de nada adianta ser informado dos atos processuais e desses participar se não pudermos influenciar nas decisões em que esses atos são analisados, mas essa discussão foge ao objeto deste texto. Dito tudo isso, esclarecemos do que pretendemos tratar nesta crônica, afinal. Desde a espetacularização dos processos, com cenas cinematográficas de operações policiais lotadas de pirotecnia, exibição de pessoas como animais caçados, transmissão em tempo real de julgamentos e outras ações que produzem um processo penal do espetáculo[iii], alguns termos jurídicos foram introduzidos no cotidiano dos brasileiros, mormente termos relacionados ao processo, dentre os quais: “contraditório”, “ampla defesa”, “presunção de inocência”, “trânsito em julgado”, e outros. No caso específico do contraditório, tem sido cada vez mais recorrente a introdução da palavra em conversas de toda a ordem, inclusive naquelas tidas em momentos de descontração. Por ter ‘caído no gosto do brasileiro’, o contraditório passou a ser exigido em atos da vida cotidiana, que não tem qualquer relação com o processo. A pretexto de manifestar a própria opinião, as pessoas querem contraditar, isso é, opor uma opinião contrária a uma manifestação expressada anteriormente. Nesse sentido, pessoas exigem o direito ao contraditório (sic) para tudo, desde os diálogos cotidianos com familiares até eventos acadêmicos, ignorando um fato pressuposto ao direito ao contraditório, a existência de um processo[iv]. Não há contraditório em discussão familiar, porque não há processo e nem juiz. Do mesmo modo, não há contraditório em conversas de boteco, porque não há processo, e o dono do bar não é juiz. Mas a que se referem, ou querem se referir, então, essas pessoas que exigem o contraditório onde não pode existir contraditório? Parece-nos que só pode ser à liberdade de expressão, à livre expressão do pensamento que só pode ser restringida pelo anonimato, mas que não exclui a possibilidade de que, ao expressar o pensamento, pratiquemos atos ilícitos civis (danos morais) ou criminais (calúnia, difamação, injúria e ameaça, pelo menos). Nesse sentido é o texto constitucional do art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Seguindo a tendência de esquematização, facilitação, descomplicação etc., propusemo-nos a desenhar a diferença. Desde já, desculpem-nos pela falta de habilidade com o editor de imagens mais básico do sistema operacional Windows, o Paint. *** Ver imagens 1 e 2 ao fim do texto **** Também nos propomos a esquematizar, usando tabelas do editor de textos Word para facilitar a compreensão (Tabela 1 - após as imagens) Talvez a melhor forma de apresentar o esquema acima teria sido utilizar o Power Point, que se transformou num instrumento importante para membros do judiciário. Mas, que a árvore não nos impeça de ver a floresta. Ou seja, estamos diante do desafio de paralisar a ensandecida máquina legislativa e jurídica de produção e interpretação de normas e leis que operam sobre o vazio societário, para que se possa de fato “estudar o Direito” e não simplesmente aplicá-lo em sua instrumentalidade técnica legal, afinal sabemos que “O sono da razão produz monstros” (Goya). Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas Mestre em Educação e Cultura Graduado em Filosofia Professor titular de filosofia da Universidade do Contestado Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional Luiz Eduardo Cani Professor na Universidade do Contestado Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado Advogado e consultor jurídico Notas: [i] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Art. 5º, XXXVII. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 375. [ii] O título e o autor serão preservados porque interessa-nos mostrar que o estado da arte da prática do direito é pior que as facilidades dos próprios livros, ou seja, que os livros não são de todo ruins, mas muitos juristas são. [iii] CASARA, Rubens Roberto Rebello. Processo penal do espetáculo (e outros ensaios). Florianópolis: Empório do Direito, 2018. [iv] O fato de a existência do processo ser condição de possibilidade para o contraditório, dentre outros motivos, levou o jurista italiano Elio Fazzalari a definir processo como procedimento em contraditório. Imagem 01 Imagem 02 Tabela 1
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