A abordagem pelo viés jurídico da coluna de hoje se dá em Stephen King. É possível fazer uma intersecção de acordo com nossa proposta tendo como referencial o mestre do terror, famoso por livros como “Carrie, a Estranha”, “O Iluminado”, “Misery”, entre diversos outros. Para o presente escrito, tomemos a série “A Torre Negra”: a mais ambiciosa escrita do autor e a que mais lhe causa orgulho. “A Torre Negra” é uma série composta por sete livros (há um oitavo que foi lançado após o final da saga, complementando determinado pedaço da história) que narra a jornada do pistoleiro Roland e a sua busca pela Torre Negra. A narrativa é longa e o intuito aqui não é abordar a história em si. Em 2017 a saga ganhará sua adaptação cinematográfica. Fica registrada, de qualquer forma, a sugestão de leitura. Vale muito a pena. A pequena análise que aqui faço se dá sobre uma passagem do início do quarto livro da série (ALERTA: para aqueles que pretendem ler os livros e não gostam se spoilers, sigo com a exposição de uma parte significativa da história, de modo que o melhor seria retomar a leitura do presente texto após a leitura do quarto livro), “Mago e Vidro”. Roland, o protagonista da história, e os companheiros que o seguem estão presos junto a um tipo de máquina viva, o monotrilho Blaine. Blaine, cansado de “viver”, ao receber os ilustres passageiros, opta por fazer sua última viagem. O destino é a morte certa, pois se chocará ao final da via matando a si mesmo e a todos em seu interior. Como Blaine ama adivinhações e sustenta ser o melhor adivinhador do mundo todo, conhecendo todas as existentes, Roland e seus companheiros, preocupados com a morte que se aproxima, propõem um jogo pelas suas vidas. Conforme sugestiona Roland: “proponho que [...] nossas vidas sejam o prêmio [...] Nós lhe faremos perguntas enquanto viajamos, Blaine. Se, quando chegarmos a Topeka, você houver adivinhado todas, pode executar seu plano de nos matar a todos. [...] Mas se nós frustrarmos você... se houver uma adivinhação [...] que você não conheça e não possa responder... terá de nos levar a Topeka e depois nos libertar para seguirmos em nossa missão”. São essas as regras do jogo proposto, contando com a anuência da máquina suicida. E o jogo começa. Diversas adivinhações propostas são prontamente respondidas por Blaine. O que pode correr, mas nunca anda, tem boca, mas nunca fala, tem leito, mas nunca dorme, tem cabeça, mas nunca chora? Um rio! O que tem quatro pernas de manhã, duas pernas à tarde e três pernas à noite? O ser humano (engatinha na infância, anda sobre as pernas quando adulto e necessita de uma bengala para se deslocar quando velho)! Dê-me de beber e eu morro – que sou? O fogo! Passo na frente do sol, mas não faço sombra – quem sou? O vento! É leve como pena, mas ninguém consegue segurar por muito tempo – o que é? A respiração! Os viajantes se dão conta que o fim se aproxima de forma trágica. De fato, Blaine parece conhecer todas as adivinhações do mundo. O que fazer? O jogo foi proposto pelo próprio grupo e as regras devem ser respeitadas. Como salvar suas vidas? Eis que surge uma brilhante ideia: aproveitar-se da imprecisão dos regramentos estabelecidos (“não foram estabelecidos limites”, concorda Roland em certo ponto) com o fito de confundir Blaine, impossibilitando-o de responder as adivinhações que advierem de tal sacada. Os circuitos da máquina pensante fritam ao tentar se adequar a “nova lógica” das adivinhações propostas. As adivinhações que passam então a serem feitas à Blaine logram êxito em seu intento, de modo que o monotrilho não consegue respondê-las e se obriga a libertar os viajantes cativos. A estruturação de base das perguntas é que é alterada, remetendo a adivinhações jocosas que não propriamente com um sentido lógico. Por que as pessoas vão para a cama? Porque a cama não vai até elas! Por que o bebê ciscou quando atravessou a estrada? Porque era um filhote de galinha! Por que a mulher chamou o filho de Coelho? Porque tirou o nome de dentro de uma cartola! E assim segue, até Blaine ser vencido. Pois bem, o “brincar” com as regras do jogo, aproveitando-se do estabelecimento (ou não) de limites semânticos, gramaticais e hermenêuticos é o ponto que trago à reflexão. Numa situação emergencial, de vida ou morte, principalmente quando constante num romance literário, o desvirtuar de determinadas regras (ou meramente o aproveitar-se da imprecisão sobre limites ou ausência de regramentos mais específicos) é perfeitamente aceitável. É visto como uma sacada inteligente inclusive. Foi agindo assim que Roland e seus companheiros conseguiram se salvar. Contudo, não se pode dizer o mesmo quando o jogo em questão é o jogo processual. Mesmo analisando o processo sob tal perspectiva, assim como o faz Alexandre Morais da Rosa em seu “Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos”, há o “fair play” que deve ser observado. O processo penal lida com garantias, com a contenção do abuso, com a limitação de poder. Suas regras, portanto, devem ser estritamente observadas, longe de aceitarem interpretações das mais variadas ordens. O solipsismo judicial, fortemente combatido por Lenio Streck, não pode ganhar espaço no jogo processual. No entanto, infelizmente, o desvirtuar das regras do jogo sem fazem presentes no cenário jurídico. Um grande exemplo de tal desvirtuamento aqui atacado é o requisito da “ordem pública” para possibilitar a decretação da prisão preventiva. Conforme estabelece o artigo 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pode ser decretada quando necessária para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou ainda para assegurar a aplicação da lei penal. Dentre tais requisitos, o da garantia da ordem pública é o mais largamente utilizado.Pudera, dada a (in)conveniência de aplicar as mais diversas interpretações que o termo sugere. “Ordem Pública” consta como sendo um requisito para que a prisão preventiva possa ser decretada. O julgador, muitas vezes assumindo a condição de jogador, aproveitando-se da imprecisão do termo, esquecendo-se assim do filtro constitucional necessário na aplicação do dispositivo infraconstitucional utilizado, confere o próprio entendimento sobre o significado do mencionado requisito como melhor lhe aprouver. É daí que surgem as aberrações “interpretativas”. Dada a vagueza do termo lido por si só, conforme menciona Alexandre Morais da Rosa, escorrega-se “na cadeia de significantes previstos na lei, até porque a legislação utiliza-se de termos claramente vagos e ambíguos para acomodar matreiramente em seu universo semântico qualquer um”. Pode-se assim dizer qualquer coisa sobre o que seria a “ordem pública” e “justificar” uma prisão preventiva. Sim, a regra do jogo é essa (cumprido o requisito, a prisão preventiva é cabível), mas há um desvirtuamento quando de sua utilização de maneira que não condizente com os preceitos constitucionais. Notem que o raciocínio no cenário jurídico, analisado de modo vago, é o mesmo utilizado por Roland e seus companheiros para seguirem vivos: regra pouco clara, ou pelo menos sem um limite imposto, que culmina numa interpretação diversa daquela inicialmente imaginada. No entanto, vale lembrar que no universo de “A Torre Negra” os jogadores não possuíam uma Constituição a ser obrigatoriamente observada, não estavam tratando com um procedimento estabelecido para efetivar garantias e limitar o arbítrio, não tinham que estabelecer uma compreensão prévia à interpretação. Já no nosso processo penal temos tudo isso e muito mais. Ainda assim o desvirtuamento das regras do jogo constantemente se faz presente. O desrespeito às regras é visivelmente gritante. Resta a irresignação e o lutar em prol de uma estrita observância aos preceitos constitucionais que devem regular a tramitação processual em todas as suas nuances. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia BIBLIOGRAFIA CONSULTADA KING, Stephen. Mago e Vidro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido Conforme Minha Consciência? 5º Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. Comments are closed.
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