Diabo, bruxaria e cogumelos – da caça às bruxas à guerra às drogas [1]
A Inquisição (me refiro à medieval, não à atual) encontrou nas práticas de feitiçaria e bruxaria um bom motivo para perpetuar-se no poder, em retaliação aos poderes dos adversários emergentes, ampliando os poderes dos inquisidores e tornando até mesmo seu trabalho mais técnico. Mas nada disso poderia ser operado sem a estratégia do terrorismo discursivo. Explorava-se a superstição plantada nas próprias igrejas para legitimar a atuação dos inquisidores, que alimentavam o medo social do oculto e do desconhecido. Eloquentes e poderosos, inquisidores exaltavam histórias de bruxas assassinas que devoravam seus próprios filhos e bebiam sangue de crianças. A peste negra, transmitida por pulgas de roedores, servia como pano de fundo mitológico para demonização de bruxas e, por ironia, dos inocentes gatos pretos. O cenário era favorável para o terrorismo discursivo do Santo Ofício e o extermínio de mulheres se tornou uma prática relativamente aceita socialmente, sem que as formalidades processuais fossem deixadas de lado. A tortura facilitava o trabalho dos inquisidores, que não só ouviam o queriam das pessoas torturadas como lhes permitiam juntar e registrar histórias sobre o oculto e o demoníaco. Ouviam das bruxas e até mesmo de testemunhas histórias sobre humanos transfigurando-se em animais, pessoas voando, lobisomens e, claro, aparições de Lúcifer em carne e osso. Nem todos os relatos eram mentiras deliberadas, tampouco eram fruto da agonia da tortura. O que explica, portanto, tantos relatos de eventos imateriais? Por óbvio, o contexto supersticioso dominante da época nos dá o indício de que esse cenário místico era fortemente influenciado por questões culturais. Por si só, porém, isso não basta. O que pode ser, então? Dorgas… Na Idade Média havia um consumo considerável de psicotrópicos, como cogumelos que se instalam em cereais, amplamente difundidos e acessíveis. O uso popular variava desde o para fins alucinógenos, por descuido e até como medicamento abortivo. Uma dessas substâncias, bem mais tarde, foi sintetizada em laboratório e nomeada no famoso LSD, usada não só pelo Aldous Huxley como para a composição do Sgt. Peppers. O centeio espigado (cereal contaminado pela praga), era chamado de ergot, utilizado pela própria Inquisição para intoxicar e punir as mulheres acusadas de bruxaria, em uma prática chamada de ergotismo. A Igreja o apelidou de “fogo de Santo Antônio”. E como a realidade nunca deixa a criatividade superá-la, aí vem mais curiosidade. Há forte evidência de que a etimologia da palavra ergot é a mesma da palavra germânica warg, que pode significar “fora-da-lei” ou “lobisomem”. Hoje, se não podemos culpar as bruxas pelos males do mundo e para benefício do poder instituído, certamente o fazemos com os traficantes, nossos wargs. E se antes puníamos bruxas com doses cavalares de drogas, hoje punimos os wargs em um lugar onde o que não falta é… droga. Referência: As informações do texto vem do livro História Noturna, do historiador Carlo Ginzburg. Além do Ginzburg, vale ver a reflexão de Agamben sobre os lobisomens no Homo Sacer. Rafael de Deus Garcia Advogado Mestre em Direito Processual Penal pela Unb Professor substituto na Universidade Federal de Lavras (UFLA) [1] Publicado originalmente no blog do autor (“Sem pena do direito penal”) – Disponível em: https://deusgarcia.wordpress.com/2017/10/31/diabo-bruxaria-e-cogumelos-da-caca-as-bruxas-a-guerra-as-drogas/ Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |