.“O Processo”, de Franz Kafka, é um romance conhecido mundialmente, tanto em razão da sua posição no mundo literário, quanto pela sua marcante história, que todo acadêmico de direito, todo profissional do ramo jurídico, deve ou deveria conhecer.
Trataremos brevemente aqui de uma importante passagem presente no nono capítulo (“NA CATEDRAL”) da obra, no qual se diz que “diante da lei está um porteiro”. Em certo momento, Josef K., protagonista de “O Processo”, encontra-se com um sacerdote que era o capelão do presídio. É desse encontro que se observa a narrativa da história do “porteiro” - aquele que guarda a lei. Anunciada como algo que consta nos textos introdutórios à lei, assim se inicia a narrativa ouvida por Joseph K.:
A história contada pelo sacerdote é no sentido de que o porteiro apenas guarda os caminhos da lei e obedece ordens. Dessa maneira, o porteiro não “conhece o interior da lei”, ou seja, ele só sabe o que lhe é permitido saber, agindo como um empregado da lei, às cegas. Logo, quando o homem do campo se dirige ao porteiro e pede permissão para entrar na lei, e o porteiro lhe nega a entrada, nesse momento ele está somente cumprindo a lei, assim como lhe foi imposta, isto é, ele está “a serviço da lei”, sem questionamentos. No fim da história contada pelo sacerdote, onde depois de muitos anos de espera a entrada é frustrada ao homem do campo, Josef K. conclui que o porteiro enganou o homem do campo, fazendo-o esperar por toda uma vida para adentrar na lei, para no final dizer “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você”. Mas como assim? Se a entrada era destinada ao camponês e mesmo assim ele não poderia entrar, o que tinha de errado? O sacerdote discorda da conclusão de Josef K. sobre o engano: “Não seja precipitado. [...] Contei-lhe a história segundo as palavras do texto”. Teria sido quem enganado? O ludibrio se fazia presente na forma com o qual o zelo da entrada era cumprido? Fora o camponês enganado pelo porteiro, por ter esperado por tanto tempo com o intento de entrar, mas não tendo assim feito? O sacerdote explica que “a história contém duas explicações importantes do porteiro sobre a entrada na lei, uma no início, outra no fim”, sendo que “uma das passagens diz que ele não podia, agora, conceder-lhe a entrada, e a outra, que essa entrada estava destinada apenas a ele”. Inexistindo contradição entre as duas explicações, não teria ocorrido qualquer engano do porteiro contra o homem do campo. O debate e as explicações presentes no diálogo entre Josef K. e o sacerdote que seguem, são interessantíssimos, rendendo boas análises e reflexões. Não sendo o intento do presente escrito o aprofundamento nas várias questões possíveis dessa passagem, fiquemos na figura do porteiro que guarda a lei, ensejando em uma das leituras proporcionadas pelo texto. Transportando essa questão para a nossa realidade forense, no qual nos comunicamos por meio de petições com o poder judiciário, materializado na figura do magistrado, imaginemos que uma narrativa descrita pelo advogado com um objetivo, pode ser interpretada de uma maneira distinta pelo juiz. Isso se daria em razão dele seguir a lei? De ser um texto e por isso suscetível a interpretações? Note-se que a questão de vinculação ao texto, interpretando-o como tal, possibilita leituras e releituras de toda ordem: da lei enquanto tal, da pretensão constante numa petição (onde já há ali uma interpretação da lei que se traduz no intento da demanda), da contraposição feita pela parte adversa, da resposta dada pelo magistrado, enfim, tanto quando não se porta de uma maneira adequada e correta ao se analisar algo específico e delimitado (ausência de “método”), como quando é o próprio texto norteador que possibilita diversas interpretações diante de sua incompletude semântica, estrutural, hermenêutica, contextual ou até mesmo dogmática, a ausência de concretude é o resultado desse imbróglio, não deixando de ser uma forma que o acesso à lei não é permitido. Tendo em vista que vivemos em um Estado Democrático de Direito (artigo 1° da Constituição Federal) e que devemos respeito ao devido processo legal (artigo 5°, LIV da Constituição Federal), tem-se que precisamos de um limite, e esse parâmetro vem a ser a lei e a nossa Constituição. Bem sabemos, como o porteiro também sabia, que se deve respeito à lei que se encontra em vigor, contudo, o porteiro não a conhecia por inteiro, apenas sua sombra, sendo assim um escravo do seu ofício. E quanto ao “operador jurídico”? Tem por obrigação conhecer a lei, claro, mas pode ele deturpá-la? Ultrapassar seus limites? Ou é isso é uma questão de lugar de fala? Percebemos na fala do sacerdote quando diz que “o texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas uma expressão de desespero por isso”, que o que está descrito é de alguma forma eterno, é aquilo e sempre será. Embora, no momento da interpretação, não se possa alcançar a realidade dos fatos, tentamos nos aproximar da “verdade” que nos apraz, e assim se esquece do alicerce precípuo, a Constituição – que também é lei. A função exercida pelo porteiro era de intérprete legítimo da lei? Mesmo considerando a segunda explicação, quando o porteiro vai embora e fecha a entrada, houve um estrito cumprimento de seu dever? E sobre nós, situados no meio jurídico, quais as atribuições do porteiro que nos cabem? Até que ponto somos porteiros da entrada da lei? Até que ponto somos responsáveis por guardar a sua entrada? O impedimento dos interessados na lei é legítimo? Em que ponto se justificaria a negativa de conhecimento da lei para aqueles que a entrada se destina? O absurdo é um dos pontos que se faz presente nas obras de Kafka. Em “O Processo”, a justiça se apresenta como algo enigmático – tão enigmático a ponto de existir um porteiro na entrada da lei, impedindo a entrada de quem quer que seja – até mesmo daqueles a que a entrada se destina. E por que será que num primeiro momento Josef K. pensou que o porteiro havia enganado o camponês? Será que tinha a ver com o momento pelo qual estava passando? Vale lembrar que o mote de “O Processo” é o de uma acusação criminal às escuras, vez que o protagonista sequer sabe do que está sendo acusado. É aquela justiça kafkiana, de modo que Alexandre Morais da Rosa descreve essa justiça apresentada na obra como “uma justiça fugidia, opaca, opressora, claustrofóbica, contraditória, burocrática”. Numa discussão em outra vertente, poderíamos problematizar sobre a própria ideia de lei. O que é a lei? É possível defini-la? Guarda-se o abstrato, ou se protege algo concreto? Essa proteção, a do guarda, se justifica diante do perigo de compreensão da lei? Mas perigo para quem? Como se vê, o absurdo está envolto também na narrativa do porteiro da lei, tal qual em grande parte da obra de Kafka. Os debates e reflexões que o livro proporciona são importantes a fim de se buscar uma maior compreensão acerca das questões ligadas ao jurídico, enfrentado de igual modo os fatores que impedem o acesso à lei, afinal, também podemos aqui perceber que diante da lei está um porteiro. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Kelven de Castro Soeiro Santos Acadêmico de Direito da Universidade cândido Mendes – Rio de janeiro Referências: KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 214-222 STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam. (Organizadores). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 10 Comments are closed.
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