Enquanto lugar ou estado quimérico em que se vive em condições de extremo desespero, privação e opressão, a antiutopia ou distopia é um verniz de futuro para uma crítica sobre o presente. Lidar com os problemas cotidianos realizando uma reflexão a partir de uma projeção do futuro. Este foi o campo de trabalho de autores como George Orwell, Aldous Huxley e Ray Bradbury durante o século passado e hoje tão relembrados pelos estudiosos e amantes da literatura.
Enquanto “Utopia” tenta evocar uma espécie de sociedade ideal. Formada por dois termos gregos, ou (ού, prefixo grego de negação) e tópos (τόπος, precisamente: lugar), designando, portanto, o não lugar, quer dizer, a excelente sociedade que, em razão dessa excelência, não existe no mundo real. As distopias, prefixo grego dys (δνσ-) significa “doente”, “mal” e “anormal”, seriam as utopias às avessas, ou seja, más utopias, sociedades imaginárias nas quais as condições de existência são muito piores do que aquelas das sociedades reais segundo sugestão de François Ost, contida em sua análise das fontes do imaginário jurídico nas obras de Franz Kafka [1] E nas distopias, o papel do direito é sempre significativo, sendo apresentado como um tipo de ordenamento jurídico técnico e racional, com o único escopo de garantir a manutenção da dominação vigente, com ausência de garantias e direitos fundamentais. Culminando em sociedades ora autoritárias, ora totalitárias, enquanto sacrificam a liberdade em seus altares (ainda) fictícios. O personagem O’Brien do romance 1984, membro do único partido que governa o Estado imaginário da Oceania, o IngSoc (Socialismo Inglês na novalíngua criada por Orwell) sintetiza brilhantemente o que é uma distopia: ● Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormentos, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além de medo, fúria, triunfo e autodegradação. Destruiremos tudo mais, tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa nem nos amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistasestão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, exceto lealdade ao Partido. Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto o riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida. Todos os prazeres concorrentes serão destruídos. Mas sempre... não te esqueças, Winston... sempre haverá a embriaguez do poder constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação de pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano, para sempre.[2] Mas, na batalha pela futuro mais sombrio, quem leva a melhor? Orwell com seu mundo dominado pela vigilância e repressão constante, onipresente e violenta do “Grande Irmão”? Ou Huxley com sua sociedade que abraça a opressão inebriados pelo entretenimento de espetáculos, cativados pela tecnologia e seduzidos pelo consumismo desenfreado e a ajuda de um pouquinho de soma[3]? Ou talvez Bradbury com seu país de semi-analfabetos, onde a escrita se reduziu a um papel subsidiário e os poucos livros que sobraram sejam incinerados pelos bombeiros? Talvez todos tenham acertado em menor ou maior grau, pois no final das contas todos falam de poder, do Estado de 1984, atolado em dívidas de guerras e em déficits maciços ao Estado Corporativo de Admirável Mundo Novo com seu teatro de divertimento em massa, crédito sem limite e bens de produção em massa, muito parecido com a sociedade superficial e consumista de Fahrenheit 451, onde o poder também é exercido por este Estado Corporativo. Mas é na personificação do partido de 1984, o “Big Brother”, que o poder se manifesta de forma mais perceptível. Pois a vigilância constante da teletela sobre tudo e todos, inclusive sobre os pensamentos, que torna didático as formas de dominação. Porém o francês Foucault vai além; para ele, poder, não reside em um governo ou no Estado, mas em uma rede complexa de relações: ● O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando−os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursose desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.[4] Em Vigiar e Punir, Foucault expande o conceito e nos apresenta o poder disciplinar, que controla os indivíduos por meio da vigilância de seus comportamentos, manifestando-se tacitamente, não por uma conduta violenta, com natureza reparativa ou vingativa, como na Idade Média, mas com um caráter punitivo-educativo, com efeito amplo e ao mesmo tempo invisível. Pois, é apenas com a invisibilidade dos agentes que esse poder funciona, porque ressalta da visibilidade deste sujeito, aterrorizando o observado, permitindo a eficácia do sistema. Este é o conceito do panóptico, sistema penitenciário imaginado pelo jurista Jeremy Bentham. Funciona mais ou menos assim; uma torre central de observação de onde o vigia detém alcance visual privilegiado de todos os detentos, sem que estes consigam saber se estão sendo observados. O poder se torna assim inverificável e invisível, tanto que esta arquitetura circular já é há muito tempo utilizada em batalhões, fábricas, escolas, hospitais e claro, nas prisões, instituições assentadas na disciplina, donde basta que os sujeitos saibam que estão sendo vigiados para que o instrumento opressivo tenha efeito. Transformando o próprio sujeito em seu disciplinador por acreditar estar sempre vigiado. É onde a vigilância substitui a violência e ao invés do controle de corpos, se adestra as almas. Um verdadeiro “diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal”. [5] Ou seja, no modelo panóptico, há uma total visibilidade do indivíduo, convertendo sua vida privada em pública, permitindo um controle quase que absoluto. Das novas tecnologias para a internet dos smartphones que funcionam como a telatela do Grande Irmão de Orwell, vigiando a vida das pessoas assim como punindo as inadequadas. Porém o ensaísta inglês enganou-se em pensar que a vigilância total da sociedade causaria desconforto com à falta de liberdade, pois elas se sentem dispostas e à vontade para contribuir com o controle. Seguindo imersas num oceano de conteúdo midiático, seguindo inconscientemente os comandos do Big Brother que diz o que se deve fazer e o que deve ser consumido. De preferência com uma selfie no instagram antes da degustação ou utilização do produto. Fomos seduzidos e somos manipulados através da gratificação dos sentidos. Neste sentido, Huxley e Bradbury foram mais precisos, enquanto Orwell nos alertava sobre um mundo em que os livros eram banidos, um estado de guerra e medo permanentes, um estado em que toda conversa e pensamento eram monitorados e no qual a dissidência era punida brutalmente. Huxley e Bradbury nos alertaram sobre um mundo em que ninguém queria ler livros, tomados por uma cultura de prazeres do corpo, um estado no qual a população, preocupada com futilidades e fofocas, não se importava mais com a verdade e a informação, um processo pelo qual seríamos cúmplices de nossa própria escravidão: ● Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e avido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem das letras das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-os com "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Ai reside melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tv e monta-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer outro homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário.[6] Portanto, a crítica não só ao Direito, mas também a nossa sociedade através da distopia, se evidencia desde o trabalho de romancistas distópicos do século passado, até o mecanismo de poder ideal do panóptico de Bentham difundido no corpo social. Com a ajuda da tecnologia e das novas formas de comunicação. Podemos até nos achar diferentes em toda nossa singularidade daqueles sujeitos mecanizados e sem subjetividade do mundo do Orwell, Huxley e Bradbury, porém não somos tão diferentes dos membros do partido, com seus macacões azuis e vidas vigiadas. Perdemos boa parte de nossa capacidade crítica e de reflexão, a parcela da sociedade que resiste, semelhantemente ao Selvagem de Huxley, cujo único crime era ler Shakespeare em uma sociedade que já tinha se esquecido do sofrimento e das felicidades humanas presentes nos versos do poeta inglês, se vê sozinha e igualmente submissa ao mesmos mecanismos de disciplina enquanto furtada da privacidade perante os olhos (leia-se lentes) do Grande Irmão. Somos vigiados, monitorados, escaneados, fiscalizados em qualquer lugar que vamos, seja no trabalho, na escola ou em casa. Tudo se tornou público ou potencialmente público enquanto demonstramos obediência ao Grande Irmão. Paulo Eduardo Rodrigues Leite Acadêmico de Direito pelo Centro Universitário Nove de Julho, 4°período [1] OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Tradução Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 373-382. [2] Narcótico que provoca um anestesiante bem estar-estar na distopia de Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. [3]FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997. p. 103 [4] ORWELL,George.1984.Tradução Wilson Velloso. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005, p. 255. [5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 170. [6] BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2.ed., São Paulo: Globo, 2012. Pg. 84-85. REFERÊNCIAS BENTHAM, Jeremy. et al. O Panóptico; organização de Tomaz Tadeu; traduções de Guacira Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2. ed., Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2.ed., São Paulo: Globo, 2012. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, São Paulo, Globo, 2014. ORWELL, George. 1984. Tradução Wilson Velloso. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico.Tradução Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005. Comments are closed.
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