O ambiente universitário proporciona oportunidades únicas. Em geral se adentra a este ambiente numa fase da vida em que conceitos, valores, princípios de vida estão sendo questionados, reavaliados e consolidados. Justamente por isso, é comum perceber o impacto que teorias trabalhadas nesta esfera exercem nos acadêmicos. Os próprios professores desempenham um papel significativo nisso.
Obviamente pois, deve ser administrada com responsabilidade a tarefa de semear este terreno fértil com ideias e objetivos. Não há maneira de se construir um saber, em qualquer área, neutro. Quando este saber é uma ciência social, como o direito, isso se mostra muito mais perceptível, uma vez que estas envolvem o estudo profundo das relações entre pessoas, com contribuição relevante das ciências humanas. Fato é que uma instituição ou mesmo um professor, quando decide de que forma abordará o ensino, está tomando uma decisão cujo impacto se fará perceber gravemente na sociedade, com benefícios ou prejuízos que se propagarão para muito além do intramuros das salas de aula e do período letivo. Dito isso, analisemos um pouco qual tem sido o método geral adotado para abordagem do ensino jurídico em nosso país. Focaremos o ensino do direito penal. Não foi possível, para escrita deste, uma ampla pesquisa de campo e colheita de dados em diversas instituições. As conclusões se darão através da percepção dos resultados observáveis. Menciona-se isso por questões de integridade científica, já que estamos bem certos de que a percepção obtida não se distância em nada da realidade. O ensino jurídico vem passando por uma espécie de padronização. A diferença para o que se tinha no Brasil pré-Constituição de 1988 é significativa. Os estudantes de direito da época anterior à CF/1988, em especial aqueles que vivenciaram mais de perto a ditadura, tendiam a enxergar o direito como um instrumento voltado para concretização de garantias fundamentais; muito mais do que aqueles que já o estudaram sob a égide da CF/88. O que se está a afirmar é que nas últimas décadas, ao menos de forma mais acentuada desde então, houve uma crescente mercantilização do direito. Outros países já experimentam esta tendência há algum tempo e não há dúvida de que os EUA são o exemplo mais característico. O resultado se traduz numa tentativa de compartimentalização do direito. São criados manuais, mapas conceituais, cursinhos para concurso e toda uma infinidade de métodos pedagógicos que se adequem de forma muito mais propícia ao estudo das ciências exatas do que das ciências sociais. O motivo do sucesso desta abordagem precisaria ser demonstrado com base em uma pesquisa muito mais profunda do que aqui se propõe, passando pelo frenesi dos cargos públicos com suas promessas de “estabilidade e segurança financeira”, explosão do número de cursos de direito ofertados, etc. O ponto que se quer destacar é: qual a formação do graduando de direito permitirá a esse o desempenho de um papel mais significativo em prol da sociedade? Não pode haver dúvida do potencial que o profissional graduado em direito possui para operar mudanças e melhoramentos em sua comunidade. Não é e não deve querer ser o “salvador da pátria”, mas recebe um conhecimento e um treinamento que podem fazer dele um efetivo agente em prol de direitos fundamentais, garantias, liberdades, igualdades, enfim, de uma melhora na distribuição de oportunidades em nossa sociedade. Pensando desta maneira nos parece que a abordagem “manualesca” do direito não é, de fato, a melhor opção. Isso porque forma apenas reprodutores de ideias pré-formatadas, aptos a declamar apenas aquilo que já lhe oferecido pronto, mastigado e digerido, processado e empacotado, sem o senso crítico necessário para o aprimoramento de ideias. Note-se que não basta querer que o graduando “tenha uma opinião” sobre os assuntos delicados com o que o direito lida. Todo mundo tem uma “opinião” sobre tudo. Isso não basta. É preciso formar mentes capazes de uma análise mais aprofundada e rica em conteúdo acerca das situações e questões com que se confronta o profissional que atua na esfera jurídica. É preciso também um aumento da valorização do aspecto humano, com reforço da solidariedade e empatia por aqueles que se encontram em situações marginais, já que é próprio do direito funcionar (dever-ser) como escudo contra a opressão e contra as desigualdades comuns ao ambiente mercantilista em que estamos inseridos. Com base nisso, qual seria a abordagem mais apropriada da disciplina de direito penal em sua iniciação acadêmica? Refere-se aqui a disciplina conhecida em muitas instituições como Direito Penal 1.0 (ou apenas I), onde se estuda a Parte Geral do nosso Código Penal. Longe de desejar estabelecer um padrão ou algo semelhante, sugere-se aqui uma abordagem que parece poder construir um saber mais próximo dos ideais acima aventados. Para a fuga do modelo “manualesco” é preciso não se iniciar o curso de direito penal pelo imediato contato com o código ou com os conceitos formatados deste. Significa dizer que não se introduzirá a matéria com a imediata explicação da Lei Penal no Tempo, Lei Penal no Espaço e assim por diante. Existem ainda dois outros modelos, muito em voga, que também se demonstram temerários. O primeiro deles diz respeito ao método de análise histórica. O grande problema desta abordagem, conforme já abordei em outros escritos, é a deificação do presente, dando a impressão de que temos hoje o “melhor direito”, a “melhor doutrina”, as “melhores decisões”, o ponto mais “humanitário” que o direito alcançou. Também se peca na análise histórica por lançar um olhar ao passado com os “óculos” do presente, chegando-se a conclusões incoerentes e mistificantes. Enfim, um estudo do direito penal a partir de seu histórico de desenvolvimento doutrinário pode ser interessante, mas ouso dizer que não é a melhor abordagem para a graduação. Uma segunda tática de ensino diz respeito à introdução do direito penal através do estudo dos princípios. Não há dúvida de que a compreensão destes é fundamental. Ainda assim, o modo e o momento como são analisados não produz os melhores resultados. Isso porque ainda não é possível ao aluno que está iniciando seu percurso na compreensão da construção das leis e das decisões jurídicas perceber de forma apropriada o papel que desempenham os princípios no ordenamento jurídico. Assim, de duas uma: ou se gasta tempo significativo explicando a função exercida pelos princípios, com as devidas críticas ao seu uso indeterminado e funcionalista; ou se acabará por simplesmente elencar uma série de conceitos a serem repetidos mecanicamente pelos alunos. Em modesta colocação, defendo que os princípios devem ter menção introdutória, mas limitada apenas àqueles que permitem a noção básica dos mecanismos de contração do poder de punir aos limites constitucionais. Na medida em que se avança no curso, quem sabe no estudo de Direito Penal II, seja de maior proveito voltar aos princípios para uma análise mais demorada. Qual seria então a abordagem que conseguiria exercer o papel de formação crítica que aqui estamos pleiteando? Sem dogmatizar, parece que a implementação das questões trazidas pela Criminologia poderia ser um bom viés. Quer-se dizer com isso que desde o início os alunos deveriam ser levados a pensar o direito penal dentro de suas limitações intrínsecas, para não cair no erro de olhá-lo como um “sistema ideal” que só por alguns defeitos aqui e ali não consegue atingir seus devidos fins. Esta visão obseda a capacidade de enxergar a instrumentalização do direito penal, materializando no aluno uma percepção de racionalidade e lógica da fundamentação da pena que está em completo descompasso com a realidade. O arcabouço teórico criminológico, por outro lado, pode desde o início ajudar os estudantes a se questionar sobre o que é o crime? Quem é criminoso? Há isonomia na aplicação da sanção penal? Será o direito penal a melhor resposta para obtenção de paz social? Assim como o conhecimento criminológico se construiu primariamente a partir de dados empíricos, os alunos podem ser ajudados a enxergarem as conclusões lógicas a que estudos chegaram por si mesmos. Não se quer com isso dizer que todas as instituições de ensino devem partir de uma mesma posição quanto às funções da pena e sua aplicabilidade. Se respeita o fato de haver uma pluralidade de visões quanto a eficácia, racionalidade e utilidade da pena (em especial no tocante a pena de reclusão). Porém, seria absurdo ensinar algo que resta completamente deslegitimado como se assim não o fosse. Seria o mesmo que cair naquele erro conhecido em tecnologia da informação como “loop infinito”, onde se percorre viciosamente os mesmos caminhos tentando chegar a lugares diferentes. Haveria muito a discorrer sobre o tema. Fica a provocação. Artigos com mais de 3 páginas estão fadados ao ostracismo, então encerraremos por aqui. Para finalizar, alistam-se quatro obras que possuem os méritos necessários para funcionarem como base teórica útil para o ensino de Direito Penal distanciado do contagioso “manualesco” e capaz de edificar um ensino jurídico primoroso. - BITTENCOURT, Cezar Ribeiro. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Méritos: uma bela análise do desenvolvimento das teorias da ação; uma excelente explanação sobre a construção da culpabilidade como categoria do fato punível e uma visão crítica do sistema penitenciário. - ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 11ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Méritos: ampla ponderação de conceitos fundamentais para compreensão de institutos basilares; referencial bem administrado de direito comparado e uma visão pautada pela Criminologia - BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª ed., 2007 Méritos: não se trata propriamente de um tratado de direito penal. Como o nome diz é uma “introdução” conceitual e coaduna perfeitamente com o que foi tentado explanar nesse artigo. Trata-se de um “clássico”. - SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. 6ª ed. Curitiba, PR: ICPC, 2014 Méritos: O prof. Juarez é uma das maiores autoridades em Criminologia Crítica do Brasil. Em sua obra, toda a construção da parte geral é feita a partir dos paradigmas trazidos por esta. Seja na conceituação do bem jurídico, seja na análise da teoria do fato punível, Cirino é mestre em demonstrar a instrumentalização do direito penal como ferramenta à serviço das classes dominantes. Com um viés extremamente democrático, o autor tece ainda comentários sobre as possibilidades de controle social para além da pena. Nota: em sua nova versão (7ª ed.) Cirino adota uma postura bastante original (no Brasil) quanto ao sistema do fato punível – imbricando a relação entre tipicidade e antijuridicidade a partir do desenvolvimento da teoria na contemporaneidade. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |