Diante do atual cenário nacional, envolto em discursos de combate à corrupção, é comum ouvirem-se vozes que defendem a excepcionalidade, em diversos aspectos. No campo do direito penal, a exceção seria operada no sentido de suspenderem-se garantias fundamentais, com o propósito de tonar mais efetiva (eficaz) a persecução penal e a derradeira condenação.
Esse discurso, conforme se abordará brevemente neste texto, não é novo. Também não fica restrito ao senso comum e nem mesmo aos setores mais mecanizados da produção acadêmica, sendo defendido até mesmo por respeitáveis estudiosos do direito penal. O objetivo aqui será, em apertada síntese, apontar uma das mais difundidas vertentes do pensamento excepcional no direito penal e contribuir com a argumentação de sua deslegitimação democrática. Antes de entrar propriamente na descrição da teoria da exceção no campo penal, cabe destacar recente manifestação jurisdicional de sua forma de raciocínio. No julgamento do TRF-4 que arquivou a representação contra o Juiz Federal Sérgio Moro, acusado na ocasião de vazar provas de um dos processos sob sua responsabilidade à mídia, o argumento utilizado foi justamente a excepcionalidade situacional. Lê-se no acórdão “que os processos e investigação criminais... sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito no direito brasileiro (...) Situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”[1]. Definir o que “escapa ao regramento genérico” e estabelecer, entre casos sob judicie, uma distinção entre “comuns” e “inéditos” (excepcionais) não é tarefa legítima do poder judiciário. Além do mais, se alguns casos “escapam ao regramento genérico”, ficam submetidos à que regramento? Enfim, este é apenas um exemplo da manifestação do pensamento excepcional sobre o qual se pretende tecer alguns apontamentos. Em muitas outras situações recentes esta visão foi externada, levantando discussões preocupantes sobre provas ilícitas, limites da justiça penal negociada, uso da prisão preventiva e até sobre a possibilidade de tortura. Conforme já mencionado, o pensamento em torno de um direito penal de exceção não é novo. Se tomarmos o último século como base, a teoria excepcional, especificamente no que toca o direito penal, ganhou maior destaque com a proposta trazida por Günther Jakobs[2]. A proposta trazida por Jakobs pode ser traduzida na invocação de emergências justificadoras de um Estado de Exceção. O argumento principal em sua teoria é o de que, no enfrentamento de crimes como o terrorismo, é preciso adaptar as regras, diferenciando as que serão aplicadas aos cidadãos infratores, que ainda mantém o status de cidadão, porquanto suas atitudes não implicam num ato voluntário de afastamento definitivo da sociedade, das regras que serão utilizadas na abordagem daqueles que, segundo Jakobs, escolhem viver fora da margem de expectativas comportamentais segundo a norma. Para Jakobs, estes perdem o status de pessoas, renunciam o status de cidadão, não fazendo mais jus às garantias de um direito penal constitucionalmente estabelecido. Se tornam o inimigo. Em relação a estes, toda a construção dogmática penal seria diferenciada, inclusive as funções da pena. Enquanto o Direito Penal reservado aos cidadãos teria, ao menos teoricamente, as funções de prevenção geral e especial, para os inimigos a função primordial da pena seria a de estancar o perigo, neutralizando seus possíveis agentes. Aliás, vale lembrar, para Jakobs a principal função da pena de todo o modo é a “manutenção da vigência da norma”[3]. Resumindo, para que se tenha um quadro suficientemente claro do que Jakobs concebe como Direito Penal do Inimigo, podem-se elencar como principais características as seguintes: a) atua numa prospecção antecipada de um ato futuro e não como o direito penal convencional, no resgate de um fato passado; b) prevê sanções desproporcionalmente altas; c) relativiza as garantias processuais, atuando como um direito penal voltado ao autor e não à conduta delitiva. Nota-se claramente que o pressuposto de que parte Jakobs é de que o direito penal atua, de regra, segundo as normas constitucionais estabelecidas. Estas seriam apenas “suspensas” (na realidade negadas) a determinadas pessoas, de acordo com a gravidade do delito de que estão sendo acusadas, ou pelo qual estão sendo investigadas. Existem diversos autores que se debruçaram sobre a proposta de Jakobs, no intuito de apontar seus riscos e demonstrar sua ilegitimidade frente a modelo de Estado Democrático de Direito. Zaffaroni, por exemplo, aduz:
De fato, a categoria de “inimigo” tem sua própria genealogia no desenrolar da história do poder penal. Sua porosidade fez com que pudesse ser aplicado a diferentes personagens, sempre de acordo com as “emergências” de momento, suscitadas pelos que ocupavam posições de autoridade. Na época dos romanos, eram os hostis (inimigo público). Em geral, o status de hostis era reservado aos estrangeiros, sobre quem, durante toda a história da civilização ocidental, normalmente se concentrou grande parte da agressividade com que eram tratados os que incomodavam o poder[6]. Já nos dias do Malleus Maleficarum (1486), as mulheres ocuparam o lugar de preponderância como “bode expiatório”[7]. No apogeu do mercantilismo, sob a moral calvinista, observou-se a criminalização do ócio. Os inimigos eram os “vagabundos, inúteis, vadios, preguiçosos e indolentes”[8]. Caminhando para o nascimento das democracias constitucionais, dentro já do modelo de Welfare State, o episódio mais nítido de eleição de inimigos a serem segregados e neutralizados pelo poder punitivo encontra-se nos regimes totalitários do início do séc. XX. Pegando o nazismo como modelo, temos claramente os judeus como principal categoria chamada a ocupar o papel de expiação pelas mazelas da sociedade. Obviamente, o Terceiro Reich elegeu outros grupos como inimigos, como negros, homossexuais, alguns grupos religiosos e outros, mas inegavelmente os judeus figuraram na qualidade de “bode expiatório” de modo privilegiado. Chegando mais perto de nosso tempo, a Criminologia Crítica identifica sem dificuldade os jovens negros, moradores de regiões precárias, como os inimigos prediletos dos projetos de higienização pública do poder punitivo. Porém, mais recentemente, a onda de persecução de crimes de colarinho branco distorce parte deste quadro (sem alterá-lo em nenhuma medida efetiva), servindo-se discursivamente de uma “nova” categoria de inimigos públicos - os rotulados como “corruptos”. Para estes, o direito penal não deverá atribuir as mesmas garantias que são previstas para todos os cidadãos em nossa Constituição Federal. Será necessário alterar inclusive o sentido da presunção de inocência, mesmo que este esteja estampado de forma cristalina no art. 5º, LVII da CF/88. Com o fim de efetivar a higienização do congresso nacional, o processo penal deverá ser suspenso. Medidas de justiça negociada, em nada reguladas e significativamente distantes de nossa cultura jurídica, deverão ser implantadas à toque de caixa, regidas por um poder judiciário inquisitorial, com disposição messiânica e midiática. Voltando a proposta de Jakobs. O grave perigo que ela apresenta é retratado de forma magistral por uma observação de Pavarini[9]. Segundo o professor italiano, a proposta de Jakobs parece guardar uma coerência e lógica irrefutáveis. Afinal, quem discorda de que aos terroristas o direito penal oferece muito pouco ou quase nada, quer seja em termos de prevenção geral ou especial, quer em termos de expectativas normativas? O problema, porém, é de método. Jakobs parte, conforme já se aludiu acima, do pressuposto de que o deito penal em vigência pauta-se pelas garantias constitucionalmente elencadas, quando, na realidade, em especial em países marginais, a regra se mostra, desde há muito, o que é denominado como direito penal do inimigo. O cotidiano do poder punitivo, quer seja na ação das agências de repressão, quer na atuação do judiciário, não é a efetiva aplicação da teoria do delito e da pena, assim como das garantais materiais e processuais elegantemente descritas na Constituição e nos códigos. Nem se mencione a LEP, porque então estaríamos diante do campo das fábulas românticas ou dos universos paralelos. Assim, por partir de uma análise distante do mundo do ser, Jakobs cria uma dicotomia que precisa ser analisada, empiricamente, de ponta cabeça – a quem se aplica o direito penal constitucional, já que o direto penal do inimigo é a regra? Onde estaria, de fato, a exceção? Ao lado de Pavarini e Zaffaroni, já citados, não se poderia deixar de referenciar as intrigantes lições de Agamben, agora já não especificamente trabalhando com o direito penal, mas com a teoria do direito e do estado de modo geral. Encerro com a observação pertinente do filósofo italiano, ao tratar do Estado de Exceção, com a qual se poderá avaliar o que temos e o que pretendemos ter em termos de direito penal no futuro:
Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Advogado Referências: [1] Reclamação 23.457/PR [2] JAKOBS, Gunther. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 6ª ed. Porto alegra: Livraria do Advogado Editora, 2015 [3] JAKOBS, Gunther. ¿Que protege el derecho penal: bienes jurídicos o la vigência de la norma? Mendoza: Cuyo, 2004 [4] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan: 2007. p. 152. [5] Id, p. 118. [6] Ibid, p. 152 [7] GIRARD, René. O Bode Expiatório. São Paulo: Paulus, 2004 [8] RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004 [9] A manifestação aqui mencionada me foi trazida à atenção pelo Prof. Dr. Rui Dissenha, da UFPR, que teve a oportunidade de estudar pessoalmente com Pavarini. [10] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. pp. 130-131 Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |