O sono da razão produz monstros. Goya
O autor argentino Eugenio Raúl ZAFFARONI demonstra por intermédio de uma hipótese geral ou básica como o Estado de Direito mesmo em seu viés mais democrático conseguiu transformar o poder punitivo em um diferenciador de pessoas, em sua obra O inimigo no direito penal. Nesse sentido assevera-se que o inimigo não se radica apenas ao direito penal, mas é construído por motivações políticas, anseio de resguardar o poder e por discursos regulares para afastar ameaças contra o poder. Esse mecanismo assegura-se de contornar as diversas diferenças sociais existentes no atual mundo capitalista moldando o estigma que recai sobre alguns, eliminando-os pela sua condição. Nesse ínterim, a condição de pessoa passa a ser percebida como mera disfunção, pois os selecionáveis pelo poder de punição e segregação adquirem nova espécie: a de ente danoso. Não obstante, a legislação e as leis especiais que tratam a criminalização de determinados atos, e, a ocupação do direito penal numa prima ratio, influenciada pela estimulação do direito das penas legitima uma doutrina discriminatória contra minorias fadadas à penalização. Essa anomia, considerada presente nos grupos identificados como delinquentes, deve ser combatida pelo direito de punir e de proteger a maioria estabelecida na sociedade, que se reveste estruturada pelos processos de penalização contra o diferente, o estranho e todos aqueles que devem ser eliminados da convivência. Zaffaroni apresenta como esse modelo de Estado Absoluto pode conter e mascarar o Estado de Direitos por intermédio de um simples discurso: o poder do medo e da segregação dos causadores deste influente sentido. Destarte, as ciências penais, o pensamento filosófico e a expansão do poder punitivo são utilizadas de maneira a considerar as discriminações por via da punição e prevenção de uma crescente criminalidade. Para esses rotuláveis serve o epiteto de inimigo que deve ser combatido e deixado longe daqueles que compõe o sistema. Além disso, a transformação das políticas punitivas e a extensão de suas ações com o passar das últimas décadas asseguravam-se em teorias filosóficas que asseveravam o contrato social, como Hobbes e Locke, e até mesmo, a finalidade da pena de Immanuel Kant, serviram, mesmo que usadas de forma inadequada, para manter a força do poder penal. Já em sua época, Protágoras, filosofo grego, afirmava a ideia de que os incorrigíveis e os inimigos devem ser a todo custo excluídos da sociedade, legitimando o poder punitivo e seus discursos. Outro fator essencial para a influência punitiva é a vingança populista incentivada pela comunicação de massa, que se utiliza da carência do Estado em promover reformas estruturais, especialmente quando se trata das leis penais em branco e da crescente globalização, mantendo o sistema obscuro e carecendo de legalidade. Isso causa a ruptura cidadão/inimigo, quando o diferente que se deve combater passa a ser considerado pelo próprio Estado, por falta de amparo legal, o inimigo. Para a contenção desse inimigo um antigo, mas eficaz método começa a ser utilizado pelo poder de polícia e pela própria população: a coisificação. Na escravidão dos povos africanos, por exemplo, o escravo era entendido como bicho ou ser sem serventia alguma, de fácil descarte. O Estado tem a tendência e o poder de privar os considerados bichos e inimigos de sua cidadania e de seus direitos, por ser considerado um ente perigoso. Todavia, para Zaffaronni “no Estado Constitucional de Direito não é possível admitir que um ser humano seja tratado como não pessoa. ” Dessa forma o poder de criar e engendrar leis que tornem o comportamento de alguns tidos como criminoso é crescente em nosso legislativo e em nossa sociedade, por medo e aflição social, toma as rédeas de uma criminalização desnecessária, chamando para o ato aquele que deveria fazer o seu papel somente quando realmente e se necessário: o Direito Penal. É conveniente ao poder punitivo o discurso de proteção e segurança do Estado e o descrédito dos organismos internacionais em prol da dignidade da pessoa, definir o delinquente como inimigo. A proteção da sociedade deve ser realizada contra os estrangeiros, estranhos e diferentes que permeiam a sociedade, trazendo uma incerteza para o futuro da civilização. Todavia, pensar um Estado Democrático de Direito que considera o inimigo, seria incompatível com a própria definição desse Estado. Assim, o inimigo definido pelo direito penal deve passar por uma redefinição para que possa ser considerado também pelo Estado Democrático de Direitos, alterando os discursos para a lei e ordem que devem ser mantidas não importando o que ocorra. O inimigo ganha uma roupagem influente quando o direito penal entende-o criminalizando certas atividades e determinadas práticas que consolidam a imagem daquele que nem pessoa deve ser considerado. As análises históricas revelam que o inimigo, desde a antiga Roma, vem recebendo designações hostis que são inseridas no próprio conceito jurídico. O Estado quando passou a agir como vítima distinguiu seus inimigos a ser combatidos, sendo o primeiro deles o próprio Demônio que se fazia presente na presença de hereges, feiticeiros, bruxas e curandeiros. Os tribunais da Inquisição passaram a combater esses impuros e a defini-los em nome da força do Estado. Foi assim que, legitimado pelos discursos anteriores, na Europa a demonização e o combate contra os inimigos receberam o trato do genocídio, exterminando o diferente que deveria ser pacificado/exterminado em detrimento do povo estabelecido. A partir do momento em que o Estado passou a agir como o dominus do direito de punir, sua base para o ato era estruturada na manutenção do poder contra qualquer um que viesse a ser ameaça. Em nome de uma força maior, após a supressão de Deus, princípios básicos de ordem vigoram contra a ignorância, que deve ser combatida. Destarte, as prisões passaram a manter os indesejáveis recolhidos. O nazismo, em seu auge, conseguiu combinar as funções do direito e das leis suportando legalmente o abate dos temidos inimigos. A partir do século XX, com as ditaduras e os comandos oligárquicos, o populismo passou a ser utilizado de forma protecionista, utilizando-se do nacionalismo para combater o estrangeiro e o inimigo, em favor da maioria estabelecida. Todavia, as diferenças entre o populismo europeu (volkish), ligado por uma influente propaganda divulgadora da imagem do inimigo, e o braço forte dos Estados ditatoriais latino americanos são influentes na maneira em que se foca o inimigo. Se por um lado tem-se a propaganda nacionalista europeia que invoca o poderio da nação contra um inimigo declarado inferior e devido à sua biologia, este deveria ser exterminado para que sobreviesse a melhor raça, por outro lado, o inimigo seria aquele contrário ao poder que erigia do Estado ditador, caçado e brutalizado. Zaffaroni afirma não haver nenhum princípio isonômico de equidade no sistema punitivo, quando a “doutrina pré-moderna não só admite a seletividade do poder punitivo como tratou de legitimá-la, aceitando-se implicitamente que para os amigos rege a impunidade e para os inimigos o castigo”. (p. 88) Dessa forma o autor argentino confirma que o sistema carcerário, bem como estudado também por Nils Christie, é autoafirmador da própria destruição sistêmica da sociedade, pois uma vez encarcerado em uma instituição que denigre seu corpo, sua inteligência e suas vontades, o interno nada tem a oferecer à sociedade quando tiver a sua liberdade senão a negação à própria sociedade. Destarte, nunca foi objetivo da punição algum tipo de ressocialização, mas sim, de docilizar e dominar o diferente reconhecido pelo poder como o inimigo. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal REFERENCIA: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Comments are closed.
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