Artigo do colunista Samuel Ebel Braga Ramos no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Desta forma, com os fundamentos e precedentes dos Conselhos Regionais de Medicina, torna-se latente que o médico não é obrigado a prestar atendimento eletivo a pacientes em atraso, havendo até mesmo a obrigação de não fazê-lo caso isso resulte em uma redução do tempo a ser empregado com a clientela pontual. Cuida-se da liberdade profissional e autonomia legal conferida aos profissionais da medicina''. Por Samuel Ebel Braga Ramos Sendo importante toda a discussão teórica acerca do tema, o ponto convergente entre a Medicina e o Direito Penal é a imensa relevância prática para os profissionais da saúde que se deparam no cotidiano de suas atuações com situações e problemas jurídicos.
A atuação dos profissionais médicos exige a intervenção na esfera corpórea de seus pacientes, sendo na administração de medicamentos, práticas cirúrgicas, diagnósticos e, não por último, os devidos esclarecimentos conforme o ordenamento jurídico, evitando consequências jurídicas. A proeminente evolução científica e das pesquisas, conforme Eric Hilgendorf, acaba por exigir um constante desenvolvimento dos moldes jurídicos. Por isso, o Direito Penal da Medicina não é uma matéria finalizada, mas está sob constante transformação. O autor cita exemplos, como o direito à eutanásia e ao diagnóstico pré-implantacional[1]. Crível a atualidade do debate que permeia o Direito – em especial, o Direito Penal – acerca de possíveis responsabilidades imputadas aos profissionais da medicina. Campo fértil, o Direito Penal Médico assume seu protagonismo ante a visibilidade impressa por mídias sociais e a ampla divulgação de resultados e propostas terapêuticas. Ao discorrer sobre as ciências médicas, sendo que estas acompanham o desenvolver de toda a humanidade, resta nítida a intersecção com as premissas basilares do Direito Penal na atenção primária aos bens jurídicos, in casu, o bem da vida. A vida representa a magnitude do corpo social e sua proteção demanda a intervenção do Direito Penal como forma de reprovar condutas humanas que atentem contra este bem jurídico. Algumas peculiaridades do Direito Penal da Medicina (ou Direito Penal Médico) são demonstradas por Hilgendorf[2]. O autor aponta três singularidades importantes: Em comparação com o restante do Direito Penal, o Direito Penal da Medicina é dependente, em alto grau, do desenvolvimento técnico da pesquisa médica, uma vez que o desenvolvimento está em rápido progresso, surgindo, assim, novos riscos e novas problemáticas. Por uma ótica jurídica, o Direito Penal Médico é significativamente influenciado pelos direitos e garantias fundamentais dispostas na Constituição. O autor aponta como marco a Constituição Alemã[3], em seus artigos 2º, abs. 1 (Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral) e artigo 1º, abs. 1 (A liberdade de crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis). A nossa Constituição Federal[4], em convergência a lei alemã, dispõe de seu artigo 5º (Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes) e do artigo 5º, II (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei). A terceira característica delimitada por Hilgendorf é a ausência de base jurídica diante ao constante desenvolvimento das possibilidades médicas e aos enormes problemas éticos que surgem no campo Penal Médico. Na visão do autor, os legisladores evitam tomar posições claras, ante a questões de proteção embrionária, eutanásia, transplantes de órgãos e outras matérias relevantes que escapam ao Direito, como a bioética, teologia moral e a economia. Como consequência, a insegurança jurídica emerge aos profissionais médicos e da saúde, laborando estes nos estreitos limites jurídicos e temores de responsabilidades penais por seus comportamentos, já que o Direito não lhes confere orientações objetivas. Assim, Hilgendorf[5] propõe que uma das tarefas mais importantes do Direito Penal da Medicina, enquanto disciplina autônoma, é identificar e estruturar claramente questões objetivas e relevantes, desenvolvendo avaliações jurídicas que possam ser usadas pelo julgador como base de tomada de decisões em casos concretos. Desta forma, a atividade médica e de outros profissionais da saúde adquire limites mais seguros. O Direito Penal da Medicina está perfeitamente incorporado ao Direito Penal. O Código Penal brasileiro, bem como leis penais extravagantes, dispõe de reprovações penais que se amoldam imputáveis aos profissionais da medicina. Alguns exemplos são as lesões corporais (art. 129), homicídio (art. 121), aborto (art. 124 e ss.), afastamento da punibilidade do médico no aborto (art. 128, I), omissão de socorro (art. 135), condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergência (art. 135-A), infração de medida sanitária preventiva (art. 268), omissão de notificação de doença (art. 269), exercício ilegal da medicina (art. 282), falsidade de atestado médico (art. 302), violação de sigilo funcional (art. 325), revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem (art. 154), prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 38, Lei 11.343/2006), realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 (art. 15, Lei 9.263/1996), induzir ou instigar dolosamente a prática de esterilização cirúrgica (art. 17, Lei Lei 9.263/1996), exigir atestado de esterilização para qualquer fim (art. 18, Lei 9.263/1996). Outra temática atual acerca do Direito Penal Médico é o consentimento e a vontade do paciente. Não sendo o objeto deste texto, contudo, conforme leciona Bruno Seligman de Menezes, a vontade do paciente deve comportar sua autodeterminação em se submeter a procedimento médico, conhecendo os riscos e eventuais consequências lesivas, ínsitos aos tratamento[6]. Desta forma, ao fomento acadêmico, importa levantar temática inerente ao profissionais da medicina com a problemática de sua autonomia no exercício laboral. Problema prático: recusa do atendimento e a autonomia do profissional médico Tema custoso ao profissional da medicina é a recusa do atendimento ao paciente. Ao médico é conferido o direito de recusar o atendimento ao paciente? Se o paciente não desejar o atendimento, ao médico é autorizado não atendê-lo? Nenhuma lei é específica no sentido de obrigar o médico ao atendimento de um paciente, a não ser que ele esteja balizado por contrato, expresso ou tácito, iniciado por uma prestação de serviços, o que torna esse vínculo uma verdadeira obrigação, que poderá, no entanto, ser extinta pela vontade das partes ou por motivo de força maior. Ou nos casos de urgência, onde se exige do profissional médico que atue conforme o esperado pela norma, evitando o resultado danoso. O Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 2.232, de 17 de julho de 2019[7], estabeleceu as normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. Neste passo, e conforme o art. 2 da Resolução, a legislação confere ao paciente o direito de recusa ao tratamento proposto pelo médico: Art. 2º É assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente. Entretanto, conforme elencado no art. 5, ao médico é resguardado o direito de não aceitar a recusa do paciente: Art 5º A recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito. Ainda, a aludida resolução dispõe o entendimento sobre a "objeção de consciência": Art 8º Objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. Outro tema no cotidiano do profissional da medicina são as dúvidas acerca da responsabilidade do médico quanto ao atendimento de pacientes que estão em atraso e que geram transtornos nas agendas médicas. Na prática diária, seja no ambiente público ou privado, o médico enfrenta o desafio de superar o dissabor daquele que se atrasa para a consulta médica. O transtorno é enorme: desajuste nas agendas, redução do tempo de atendimento visando o pleno atendimento dos pacientes eletivos e, mais, o embate com pacientes irritados. Neste lastro, duas decisões do Conselho Regional de Medicina - CRM podem fornecer um norte para a problemática. No primeiro caso, o Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo, no PARECER CONSULTA Nº 5/2014, atestou: "o médico não é obrigado a prestar atendimento em desacordo com a organização da agenda a ser seguida e dos horários a serem respeitados" Em sua fundamentação, o parecer afirma que o médico dispõe de autonomia para o exercício de sua profissão, conforme o Código de Ética Médica[8], no seu inciso VII: O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Ainda, o inciso VIII dos Princípios Fundamentais diz que: O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. Mesmo que tais imposições procedam de cliente/paciente que, qualquer que seja o motivo, não compareceu com pontualidade para o atendimento regular, ao médico é conferida sua autonomia profissional e análise do caso concreto. No mesmo fluxo de raciocínio, o Conselho Regional de Medicina do Paraná, no PARECER 1882/2007 CRM-PR, demonstrou que: "No compromisso de consultar e ser consultado, tanto o médico quanto o paciente, têm obrigações e deveres. Quando existe agendamento prévio deduz-se que outras pessoas também assim o fizeram, e que o profissional programa-se em função daquele, ao paciente cabe estar presente no horário estabelecido, devendo avisar de possíveis atrasos ou desistências em tempo hábil, no entanto, quando ocorre um atraso é prerrogativa do profissional liberal aguardar ou não, pelo período que considerar adequado, sendo prática médica diária habitual aguardar-se, mas não obrigatória." Desta forma, com os fundamentos e precedentes dos Conselhos Regionais de Medicina, torna-se latente que o médico não é obrigado a prestar atendimento eletivo a pacientes em atraso, havendo até mesmo a obrigação de não fazê-lo caso isso resulte em uma redução do tempo a ser empregado com a clientela pontual. Cuida-se da liberdade profissional e autonomia legal conferida aos profissionais da medicina. Em sendo um tema de grande repercussão e estudo na contemporaneidade, o Direito Médico, em especial sua vertente penal, merece a atenção da academia em auxílio a práxis dos profissionais da medicina. Além do mais, o Direito Penal da Medicina poderá fornecer subsídios ao legislador, esclarecendo e sistematizando questões relevantes, dando-lhe ferramentas na confecções de normativas. Samuel Ebel Braga Ramos Professor de Direito Penal na Faculdade de Educação Superior do Paraná - FESP. Doutorando em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito (2019), com a linha de pesquisa Sanção Penal e Criminal Law and Economics. Especialista em Gestão e Legislação Tributária (2017). Extensão em Direito Penal e Processual Penal Alemão, Europeu e Internacional pela instituição de ensino Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha (2016). Pesquisador do Núcleo de Pesquisas Sistema Criminal e Controle Social do PPGD/UFPR. Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM/PR. A linha de pesquisa tem sua base no Direito Penal, com foco na dogmática e Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Advogado. REFERÊNCIAS: ALEMANHA. República Federal. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf BRASIL. República Federativa. Constituição Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 34. MENEZES, Bruno Seligman. Direito Penal Médico: crimes culposos em práticas consentidas. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2014, p. 148. NOTAS: [1] HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 25. [2] HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 33. [3] República Federal da Alemanha. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf [4] República Federativa do Brasil. Constituição Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm [5] HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 34. [6] MENEZES, Bruno Seligman. Direito Penal Médico: crimes culposos em práticas consentidas. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2014, p. 148. [7] Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-2.232-de-17-de-julho-de-2019-216318370. [8] Disponível em https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf
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