Nas discussões sobre as funções da pena, sua necessidade, eficácia e limitações, é muito comum surgir alguém que irá pleitear pela aplicação da sanção penal restrita aos atos praticados com violência e grave ameaça. Esse argumento em geral será tido como razoável.
Há, porém, um certo cinismo velado no pensamento de alguns que sustentam essa “tese”. Isso porque a violência é visualizada por estes como se fosse uma característica típica apenas daqueles que são selecionados pelo sistema penal, quando na verdade precisamos admitir uma dificuldade “ontológica” na definição de violência, bem como uma diversidade ampla na forma de seu exercício. Sem adentrar o debate filosófico inerente, que seria muito interessante, mas que o espaço não permitirá devido ao objetivo específico que se pretende atingir aqui, é preciso destacar o quão presente a violência (em sentido vulgar, de senso comum, que será utilizado em todo o texto) está presente no convívio social. Quando os que clamam por um direito penal mínimo tentam estabelecer o critério de sua aplicação na reprovação de ações em que vislumbre o uso de violência ou grave ameaça, percebe-se que pensam em geral nos crimes de homicídio, estupro, roubo e correlatos. Ocorre, porém, que a violência pode ser observada cotidianamente em ações corriqueiras e em cenários que não se enquadrariam, prima facie, nos boletins de ocorrência relacionados a estes crimes. Dito de forma simples: a realidade dos atos violentos é muito mais fluida e difusa do que gostamos de admitir. Para sustentar esta última afirmação note-se alguns exemplos, que se fazem necessários, embora indigestos. A mídia, de modo sensacionalista e mercenário inclusive, retrata incansavelmente casos de agressão cometida por cuidadores de crianças e bebês (familiares e cuidadores profissionais), captadas por câmeras “escondidas”. O mesmo é verdade quando o assunto é o cuidado com idosos e doentes mentais. As cenas são chocantes e revelam uma atitude fria e cruel, muitas vezes com intensidade e persistência significativamente mais elevadas do que a observada no roubo ou mesmo no homicídio premeditado. Um outro exemplo que precisa ser trazido à atenção é o de pessoas desferindo os mais diversos tipos de golpes contra moradores de rua. Quem convive com o atendimento a pessoas nestas condições pode relatar uma série ininterrupta e chocante destas agressões, cometidas no mais das vezes por “seres” (pessoas não parece adequado) simplesmente incomodados com sua presença ou insistência em requisitar dinheiro. Quando as cenas destas agressões são captadas por um aparelho eletrônico e divulgadas nas redes sociais, tendem a gerar por algumas horas ou dias grande comoção. A realidade destes acontecimentos, porém, é muito, muito mais rotineira do que gostaríamos de imaginar. Quando divulgado que um grupo de jovens ateou fogo a uma dessas pessoas a notícia toma uma repercussão gigantesca, ignorando-se que atos semelhantes ocorrem cotidianamente. Último exemplo necessário: a violência no trânsito. Não se trata de mencionar apenas as mortes causadas por motoristas alcoolizados. É preciso aludir à intensa violência, geradora de severas lesões, a maioria das quais sequer é registrada nos boletins policiais, em decorrência de discussões advindas de erro ou imprudência de um ou de vários motoristas. Quem já não observou uma situação em que o trânsito foi palco ou motivo para trocas de socos e pontapés? Não se discorrerá sobre a violência no esporte, embora cabível. O que se pretende ressaltar aqui é que esses atos de violência são, muitas das vezes, perpetrados por pessoas consideradas “cidadãos de bem”, com “bons antecedentes”, “pais de família” ou outras categorias maniqueístas criadas na tentativa de segregar hermeticamente os “capazes de delinquir” dos puros e inocentes “normais”. Como Hannah Arendt vai muito bem demonstrar em “Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal”, o “mal” ou a violência não são, como talvez gostaríamos de acreditar, traços específicos e exclusivos de assassinos em série, sociopatas ou ladrões de carreira. A avaliação de diversos psiquiatras concluiu que Eichmann era um homem “normal” ou até mesmo “não apenas normal, mas muito agradável”. O próprio sacerdote que o visitou na prisão declarou em juízo que se tratava de um “homem com ideias muito positivas”. A percepção honesta a que se precisa chegar é bem estruturada por Bauman:
Note-se que não se está aqui a sustentar que a violência deve ser aceita como “natural” e muito menos que a resposta penal (encarceramento) deva procurar abarcar as situações acima expostas em todas as suas manifestações. Utilitaristas de plantão se apressarão em questionar: mas então o que está sendo proposto como melhor solução? O objetivo deste texto é ressaltar a importância de todos nós assumirmos ao menos duas posturas importantes. A primeira dela diz respeito a necessidade de agirmos de modo a construir, ao menos à nossa volta, condições para que a violência não seja deificada, mas ao contrário, para que ações de cordialidade e empatia se multipliquem. Um compromisso pessoal cotidiano nesse sentido pode ter um efeito multiplicador interessante e efetivo. A segunda é no sentido de abandonarmos o discurso cínico e hipócrita que enxerga violência apenas nos outros e ainda pior, que enxerga a violência apenas nos estereotipados pelo sistema penal. Se conversarmos com pessoas que trabalham com psicanálise poderemos, num rápido diálogo, colher destas informações sobre o quão presente é a violência em nosso meio social. Seja a violência física ou psicológica, o ambiente familiar continua sendo o mais fértil nas demonstrações de quão cruel o ser humano pode se tornar. “Quem insiste em julgar os outros sempre tem alguma coisa para esconder”, diria Renato Russo em uma de suas canções. Com que triste frequência isso se mostra realidade! Quão comum é observarmos aqueles que se proclamam bons e corretos, que alardeiam seu desejo de uma sociedade asséptica, livre de “marginais violentos”, perpetrarem as mais sádicas agressões contra cônjuges, filhos, funcionários ou qualquer outra pessoa que tenham certeza de que não poderá revidar. Sim, muitas vezes há de se recear os “cidadãos de bem”. Pelo acima exposto, sempre que se argumenta a favor de um direito penal reservado para a violência ou grave ameaça a pergunta que fica é justamente de como se definirá a violência ou grave ameaça fora de critérios objetivos como a descrição típica, contrária ao direito e culpável da conduta humana (modelo atual). Em que pese minha convicção de que o sistema penal atual é completamente ilegítimo, entendo que a proposta de um direito penal mínimo precise ser construída com cuidado, fundamentada em critérios e balizas que não permitam a continuidade de seu uso de forma seletiva e estereotipada. Mais do que tudo, espero que possamos assumir um discurso sincero, que encare a conflitualidade humana de modo responsável, tendo superado a visão elitista de sua ocorrência. Nota final: a foto que acompanha este artigo é da capa de um periódico (lançado em 1913) de propaganda da Ku Klux Klan, organização conhecida por seu insistente esforço em eliminar violentamente pessoas de pele escura (entre outros). Repare no nome dado ao jornal: “Cidadão de Bem” Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, 2014 [1] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 89 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |