Na semana passada foi abordado nesta coluna a questão das incompatibilidades entre o discurso de guerra e as bases teóricas do direito penal. O objetivo do texto foi demonstrar que não é dado ao Estado tratar os cidadãos sob seu domínio como inimigos, a despeito dos delitos cometidos por estes.
Várias bases epistemológicas podem servir para sustentar o que foi acima afirmado. Os direitos humanos, a lógica constitucional, a base teórica do Estado de Democrático de Direito ou mesmo a filosofia política seriam, cada um por si, mais do que suficientes. Ainda assim, uma análise do uso do Direito Penal, mesmo em Estados democráticos, vai demonstrar que racionalidade da luta, da guerra, tem sido amplamente suscitada, quer discursivamente, quer na estruturação das agências de repressão ou da política-criminal adotada. A própria seletividade penal se manifesta a partir da lógica da identificação de inimigos e da estratégia de sua neutralização. Zaffaroni (2007) não nos deixa mentir. Muitos cientistas políticos e filósofos sociais percebem assim a necessidade de demonstrar o funcionamento do Estado moderno (e pós-moderno para os que assim queiram) como estruturado com base na guerra civil permanente. Foucault (2007) chegará a sustentar que a realidade é o contrário do enunciado de Clausewitz, conceituando a “política como a continuação da guerra por outros meios”. Mas não só Foucault. Boa parte da teoria crítica (Horkhheimer, Adorno), Agamben, Chomsky e até Anthony Giddens (em “Estado-nação e violência”) vão corroborar esta visão. Note que se trata de algo de natureza diferente da simples “luta de classes”. Não se aponta uma luta histórica por dominação nestas percepções. Não apenas, ao menos. A análise é mais complexa e perpassa um feixe de relações mais amplo e difuso no meio social. A guerra não é apenas a forma de atuação do “aparelho estatal” (Althusser). É o princípio de governamentalidade que movimenta toda estrutura política. Enfim, o objetivo do texto de hoje não é, primordialmente, assentar a estratégia da guerra como razão de Estado. Conforma já apontado, a racionalidade (se é que assim pode ser chamada) de guerra civil permanente não é compatível com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Ainda assim, o funcionamento do sistema penal coloca em movimento uma máquina fortemente pautada pelo discurso bélico. A questão que desperta o interesse para o texto de hoje é: admitindo, para o debate, que o direito penal atue como direito de guerra, são respeitadas em sua aplicação as normativas internacionais, ratificadas pelo Brasil, para o confronto bélico? Para responder, me servirei das Convenções de Genebra, elaborados entre o final do séc. XIX e meados do séc. XX. As Convenções (ou Tratados) de Genebra, formam um conjunto normativo internacional que ficou conhecido como parte do “direito de guerra”, ou seja, a tentativa de impor uma racionalidade mínima ao cenário caótico do confronto bélico entre países. As convenções contém normas claras, por exemplo, sobre instrumentos que não podem ser utilizados nem mesmo em caso de guerra declarada, como o uso de minas terrestres e armas químicas. Através das convenções foi criada a Cruz Vermelha, associação civil sem fins lucrativos, neutra, filantrópica, com fins humanitários, voltada ao socorro voluntário e cuidados médicos (em especial militares). De acordo com o texto mais atual, acrescido pelos protocolos II, de 1977 e III, de 2015 (ratificados pelo Brasil, respectivamente, em 05/05/1992 e 28/08/2009), quais seriam alguns direitos do inimigo de guerra capturado? Seguem abaixo alguns exemplos do que dispõe as convenções (todos em tradução livre e com grifos acrescentados ao original): Art. 13 da III Convenção: Os prisioneiros de guerra devem ser sempre tratados humanamente. É proibido qualquer ato ilegal ou omissão da Detenção de Poder causando a morte ou a colocação em perigo grave da saúde de um prisioneiro de guerra sob sua custódia e será considerado como uma violação grave da presente Convenção. Em particular, nenhum prisioneiro de guerra pode ser submetido a mutilações físicas ou a experimentos médicos ou científicos de qualquer tipo que não sejam justificados pelo tratamento médico, odontológico ou hospitalar do prisioneiro em questão e realizados em seu interesse. Do mesmo modo, os prisioneiros de guerra devem ser sempre protegidos, particularmente contra atos de violência ou intimidação e contra insultos e curiosidades públicas. São proibidas medidas de represália contra prisioneiros de guerra. Art. 14 da III Convenção: Os prisioneiros de guerra têm direito, em todas as circunstâncias, ao respeito pelas suas pessoas e pela sua honra. As mulheres devem ser tratadas com todo o respeito devido ao seu sexo e devem, em todos os casos, beneficiar de um tratamento tão favorável quanto o concedido aos homens. Os prisioneiros de guerra devem reter a capacidade civil plena de que gozaram no momento da sua captura. O Poder de Detenção não pode restringir o exercício, dentro ou fora do seu próprio território, dos direitos que essa capacidade confere, exceto na medida em que o cativeiro exija. Art. 22 da III Convenção: Os prisioneiros de guerra só podem ser internados em instalações localizadas em terra e garantir todas as garantias de higiene e saúde. Exceto em casos particulares que são justificados pelo interesse dos próprios prisioneiros, eles não devem ser internados em penitenciárias. Os prisioneiros de guerra internados em áreas não saudáveis, ou onde o clima é prejudicial para eles, devem ser removidos o mais rápido possível para um clima mais favorável. O poder de detenção deve reunir prisioneiros de guerra em campos ou acampamentos de acordo com sua nacionalidade, língua e costumes, desde que tais prisioneiros não sejam separados dos prisioneiros de guerra pertencentes às forças armadas com as quais estavam servindo no momento da sua captura, exceto com o seu consentimento. Art. 23 da III Convenção: Nenhum prisioneiro de guerra pode, em qualquer momento, ser enviado ou detido em áreas onde ele possa estar exposto ao fogo da zona de combate, nem a sua presença pode ser usada para tornar certos pontos ou áreas imunes às operações militares. Os prisioneiros de guerra terão abrigos contra bombardeios aéreos e outros perigos da guerra, na mesma medida da população civil local. Com a exceção daqueles envolvidos na proteção de seus aposentos contra os perigos acima mencionados, eles podem entrar em tais abrigos o mais rápido possível após a emissão do alarme. Qualquer outra medida de proteção tomada em favor da população também deve ser aplicada a eles. Os Poderes de Detenção darão aos Poderes interessados, por intermédio dos Poderes de Proteção, todas as informações úteis sobre a localização geográfica dos campos de prisioneiros de guerra. Sempre que as considerações militares o permitam, os campos de prisioneiros de guerra devem ser indicados no dia-dia pelas letras PW ou PG, colocadas de modo a serem claramente visíveis do ar. No entanto, os Poderes interessados podem acordar em qualquer outro sistema de marcação. Apenas os campos de prisioneiros de guerra devem ser marcados como tal. Art. 26 da III Conevnação: As rações alimentares diárias básicas devem ser suficientes em quantidade, qualidade e variedade para manter os prisioneiros de guerra em boa saúde e evitar a perda de peso ou o desenvolvimento de deficiências nutricionais. Deve também ter-se em conta a dieta habitual dos prisioneiros. O poder de detenção deve fornecer prisioneiros de guerra que trabalhem com as rações adicionais necessárias ao trabalho em que estão empregados. Deve ser fornecida água potável suficiente para prisioneiros de guerra. É permitido o uso de tabaco. Os prisioneiros de guerra devem, na medida do possível, estar associados à preparação das refeições; eles podem ser empregados para esse fim nas cozinhas. Além disso, eles devem receber os meios de preparar, eles mesmos, os alimentos adicionais em sua posse. Devem ser fornecidas premissas adequadas para a desordem. São proibidas as medidas disciplinares coletivas que afetam os alimentos. Art. 27 da III Convenção: As roupas, roupas íntimas e calçados devem ser fornecidos aos prisioneiros de guerra em quantidade suficiente pela Potência Detentora, que deve permitir o clima da região onde os prisioneiros são detidos. Os uniformes das forças armadas inimigas capturadas pelo poder de detenção devem, se apropriado para o clima, serem disponibilizados para vestir os prisioneiros de guerra. A substituição regular e o reparo dos artigos acima devem ser assegurados pelo Poder Detentor. Além disso, os prisioneiros de guerra que trabalham devem receber vestuário adequado, onde quer que a natureza do trabalho exija. Os enunciados acima foram elaborados através de um longo processo de negociação em que estiveram envolvidos um rol extenso de países. Os direitos são assegurados às mesmas pessoas que, em outro momento, poderiam ser mortas por meio cruel e insidioso sem qualquer sanção. Ao serem aprisionadas, porém, é assegurado a elas o retorno ao status de pessoas, com os direitos correlatos garantidos. Não se permite, a partir de então, lidar com elas como inimigos no campo de batalha. A estratégia da guerra é de difícil compreensão e guarda inúmeras incoerências e absurdos diante do patamar civilizatório que acreditamos ter alcançado no plano de construção teórica. Ainda assim, mesmo neste cenário tão distante da “ordem”, a humanidade compreendeu a necessidade de assegurar direitos básicos. Punir ou neutralizar, sem degradar – o mínimo do mínimo. Trazer isso para avaliação do cenário do sistema penal em países marginais, como o Brasil, dispensa comentários concludentes. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIMI Advogado Referências: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Renan, 2007 International Committe of The Red Cross. Convenções de Genebra. https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/INTRO/615?OpenDocument. Acesso em 05/07/2017. Comments are closed.
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