A Alemanha vivenciou, entre a Primeira Guerra e o fim da Segunda, um Estado de Exceção que nunca foi revogado. As medidas autoritárias perpetradas pelo Terceiro Reich conviveram formalmente com um regime democrático constitucional, dando azo a um sistema político-jurídico dual que serve de modelo para tese levantada por Giorgio Agamben acerca do sufocamento dos ideais democráticos calcados no modelo constitucional, trazidos pela revolução norte americana e francesa.
Guerra e exceção são mecanismos que se complementam como estratégia de governo. Declarar a guerra, interna ou externa, só é possível a partir do discurso da situação excepcional. Para legitimar conflitos em que o Estado lança mão de seu poder bélico, seja direcionando suas baterias de combate contra inimigos externos ou selecionando inimigos internos, faz-se necessário lançar mão da excepcionalidade. Isso significa que ao analisar os argumentos utilizados para justificar o emprego do capital bélico, será possível compreender as relações de poder que, de fato, fazem movimentar as engrenagens políticas. Se aliarmos isso ao fato apontado nesta coluna nas últimas semanas, ou seja, de que o direito penal tem assumido o princípio de guerra de forma cada vez mais acintosa, em clara afronta ao modelo constitucional democrático, será possível perceber a necessidade de se avaliar em que pontos, de que maneiras e em que grau o discurso de exceção afeta o funcionamento rotineiro do sistema penal. De forma direta, é possível afirmar que a exceção é a pedra angular que permite ao sistema penal ser, ao mesmo tempo, extremamente eficaz e visceralmente fracassado. Explicando a aparente contradição e fundamentando a afirmação: o direito penal em Estados Democráticos de Direito pauta-se por uma série princípios e garantias, muitos dos quais estampados no texto constitucional. Estes são genuínos avanços civilizatórios, conquistas civis de envergadura histórica considerável. Além disso, o sistema constitucional permite a construção de um direito penal reservado à proteção de interesses realmente plurais, consensuais, comumente denominados como bens jurídicos penalmente relevantes. Se não bastasse, o arcabouço teórico de que podem se servir os “operadores” do direito é vasto e muito rico. A densidade filosófica e sociológica oferecida aos profissionais que manejam o direito penal é de um refinamento conceitual sem precedentes. O cenário acima descrito deveria dar vazão a um sistema penal substancialmente racional, proporcional e legítimo. Na realidade ele realiza isso; porém, para ser aplicado em situações raras e pontuais, como se argumentará a seguir. Ao mesmo tempo em que vige o direito penal acima descrito, operacionaliza-se um outro sistema penal. Note que não se pode, tecnicamente, falar de um outro direito penal, já que este, que será a seguir descrito, não é pautado por elementos de aplicação ligados à teoria do direito, suas instituições, princípios e limitações. Este sistema penal paralelo, qual o seu retrato? Sua feição é violenta, seletiva, degradante, preconceituosa, estigmatizante e elitista. Onde ele se manifesta? Em toda a cadeia daquilo que seria considerado penal. Desde a seleção de condutas a serem criminalizadas e as penas cominadas, com sua desproporcionalidade histórica; passando pela forma de atuação das agências de repressão e manifestando-se finalmente na jurisdição e na aplicação da pena. Em todos estes momentos é possível diagnosticar um sistema penal que pune pessoas específicas, de maneira degradante e desigual. Ele não se adequa a estudos acerca das funções teóricas da pena ou mesmo quanto a idoneidade dogmática de sua aplicação. Ele pune com muito mais do que a perda da liberdade. Humilha, tortura e mata sem muito pudor. Fornece páginas e páginas de estatísticas assustadoras, retratando sem maquiagens a quem ele se destina. Extravasa todos os limites e ignora quase todas as garantias. A existência de um sistema penal dual só é possível em virtude do discurso de exceção. Os poucos esforços feitos para legitimar e/ou naturalizar essa diferenciação são calcados em justificativas típicas da anormalidade de determinadas circunstâncias ou mesmo de determinadas pessoas. Quando se eleva a pena devido à gravidade do delito, quando se alude à periculosidade do agente (conceito nada científico), quando se decreta a preventiva com base no risco à “ordem pública” sem os mínimos elementos objetivos para esta alegação, quando se permite a determinação de falta grave na execução penal por “inobservância da obediência ao servidor” (LEP art. 50, VI), quando se altera juridicamente o conceito de trânsito em julgado para permitir a execução antecipada da pena (HC 126.292), quando se presume legitima defesa nos homicídios perpetrados em regiões “de conflito” (favelas) por servidores das agências de repressão, quando se antecipam as barreiras punitivas para atos preparatórios (Lei 13.260/16 art. 5º), quando é aceito o uso de provas ilícitas; enfim, todas estas medidas passam pelo sistema democrático constitucional de controle através do discurso de exceção. Explícita ou implicitamente, baseiam-se na ideia de que situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Baseiam-se na necessidade, álibi argumentativo tão extenso quando o gosto do sofista. O fato de termos de conviver com um sistema penal dual, alicerçado em medidas de exceção, dificulta muito qualquer tentativa de democratização na aplicação do direito penal. Em primeiro lugar, porque doutrinadores gastam energia considerável se digladiando na conceituação de elementos que sequer possuem potencial de restrição para violência mencionada. Em segundo lugar, porque a aplicação do sistema penal dual dá azo a uma complexa teia de corrupção, tornando mais simples “comprar” privilégios penais do que lutar por direitos pelas vias legítimas. Em terceiro lugar, porque os que defendem limitações à aplicação do sistema penal são retratados ora como utópicos ora como apologistas da criminalidade. Em quarto lugar, o sistema penal dual permite seu uso midiático de forma atraente à população. Em quinto, esse mesmo sistema fornece uma pauta inesgotável para o palanque político – prometer severidade penal atrai as massas como a carcaça atrai urubus. Por derradeiro, um sistema penal dual afasta mecanismos de responsabilização direta, permitindo às várias esferas de poder que se eximam de culpa ao apontar as falhas da outra esfera – à moda de Pilatos. Estudar sentenças, acórdãos, exposição de motivos das leis penais, pronunciamentos das agências de controle, discursos políticos, relatórios sobre a violência e sobre o “retrato” carcerário, permite a constante confirmação do lugar privilegiado ocupado pela exceção. Guerra, direito penal e exceção são tentáculos de uma mesma estrutura de poder, que precisa ser estudada a partir de uma visão global, transdisciplinar e ousada o bastante para fugir de racionalizações dicotômicas. Paulo R Incott Jr Mestrando e Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Direitos Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências: AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Lisboa, Portugal: Edições 70, LDA, 2010. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Comments are closed.
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