Estreando como colunista, Gabriel Teixeira trabalha no presente artigo os dilemas sobre a confissão nos acordos de não persecução penal no denominado pacote anticrime, com importantes reflexões. Vale a leitura! ''Ainda, se essa necessidade da confissão para descobrimento do que houve é inócua, do ponto de vista prático, a confissão para celebração do negócio jurídico não traz nenhum efeito positivo ao negociante/investigado (e provavelmente será sua única moeda de troca, em uma relação a ser examinada em um vértice de custo e benefício)''. Por Gabriel Teixeira No apagar das luzes (que enfeitavam as pequenas árvores) natalinas, no ano passado foi aprovado o famigerado “Pacote Anticrime” (também denominado “Pacote Moro”, por ter sido encabeçado pelo, até então, Ministro da Justiça Sérgio Moro). Referida legislação (Lei 13964/19) promoveu alterações substanciais na legislação penal e processual penal (inclusive no que tange ao regramento e recrudescimento dos requisitos objetivos e subjetivos nas execuções criminais) e, aparentemente, teve por escopo estabelecer uma estrutura acusatória (artigo 3-A, inserido). Entretanto, em uma análise mais detida sobre seu conteúdo, alguns institutos mantiveram a estrutura e a mentalidade inquisitorial, tão cara aos agentes jurídicos e investigados/acusados.Neste sentido, surge o acordo de não persecução penal (ou “plea bargain”) [1], tema que não é novidade para a doutrina brasileira [2] e legislação brasileira (artigos 76 e 89, Lei 9.099/95), mas que segue o movimento global da justiça negociada (e abreviação de procedimentos) [3]. A par das saudáveis críticas e debates sobre a sua (não) constitucionalidade, o fato é que o instituto está previsto e passará a ser aplicado em larga escala (gize-se, aqui, que anteriormente o Conselho Nacional do Ministério Público, amparado em duas resoluções – 181 e 183 – havia concebido o acordo e regulamentado suas diretrizes, todavia, diante da inexistência de regulamentação legal, houve a recalcitrância dos atores jurídicos em sua aplicação diante da ausência de previsão normativa) diante da sua expressa legalidade. In verbis:
Tal confissão, formal e circunstancial, não é exigida pelos antecessores negociais mencionados anteriormente (transação penal e suspensão condicional do processo) e evidencia o fenômeno do quadro mental paranoico, denunciado por Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (este último dentro da doutrina brasileira), e aqui reproduzido por GLOECKNER (2019, p. 205): A paranoia, como já demonstrara Elias Canetti, Freud ou Melman, corresponde a uma doença do poder. Que se consulte o belíssimo texto de Eric Santner sobre isso. O quadro mental paranoico intuído por Cordero corresponde à suscetibilidade de formações psíquicas que funcionam – trata-se do plano metafórico ou se quiser catacrético – “como a’ paranoia. Vejamos o que diz Melman sobre a paranoia: “a paranoia é a certeza para um sujeito de ter o saber da verdade, da verdade absoluta. E a prova é que essa verdade que o sujeito possui ela é capaz de reparar tudo o que não vai bem na sociedade, tudo o que não vai no casal; o que faz com que seja um saber que se apresenta também como salvador”. A falibidade da verdade enquanto finalidade do processo penal, igualmente, não é novidade. Outros autores, com mais fôlego, demonstraram desde a deficiência na construção histórica e conceitual desta [4], até mesmo que há uma impossibilidade substancial de reprodução fática e aferição de seu conteúdo [5]. O fato é que a exigência da confissão (a qualquer custo!) e seu prestígio em detrimento a outros requisitos demonstram que a inquisição, habitualmente referenciada com o advento do IV Concílio de Latrão (1215) e roteirizada com a escrita de “Malleus Maleficarum” por Heinrich Kraemer e James Sprenger (1487), enraizou sua mentalidade no “Pacote Anticrime”. A sanha punitivista, fundamentada em uma abreviação da duração processual, segue respaldada pela própria norma (que pouco a pouco sufoca o pouco de acusatório que traz). Ainda, se essa necessidade da confissão para descobrimento do que houve é inócua, do ponto de vista prático, a confissão para celebração do negócio jurídico não traz nenhum efeito positivo ao negociante/investigado (e provavelmente será sua única moeda de troca, em uma relação a ser examinada em um vértice de custo e benefício). Ao revés, essa formalização da confissão cria duas situações prejudiciais não abrangidas pela legislação. A primeira delas é a sua utilização em procedimentos administrativos que apuram eventual perda de cargo (em crimes cometidos por funcionários públicos) e afins na esfera administrativa ou em demandas de responsabilidade civil, na esfera cível (em que são pleiteadas indenizações, por exemplo). Ainda que não tenha contato com a gravação, documento ou o meio pelo qual foi formalizado, o simples conhecimento de que houve a formalização do acordo engloba o ato confessório sobre a prática examinada (e, obviamente, será usado em prejuízo do investigado). Inexistem vedações nesse sentido (diferente do cuidado que o legislador teve na edição do artigo 76, § 6º, da Lei dos Juizados Especiais). Outro efeito ricochete é o contato do magistrado sentenciante com este ato de confissão. Com a suspensão por tempo indeterminado da implementação do juiz das garantias e da exclusão dos atos de inquérito policial [6] (Medida Cautelar nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305,cuja relatoria coube ao Ministro Luiz Fux, suspendendo a eficácia dos artigos 3º-B e 3º-C, § 3º), inevitavelmente o juiz da instrução terá contato com a confissão exarada na fase pré-processual. Tal fato pode ser delineado na seguinte situação: caso a proposta seja aceita (com a respectiva confissão) e posteriormente não venha a ser cumprida, sendo o réu denunciado pela prática delitiva (art. 28-A, § 10), o mesmo julgador que homologou o negócio jurídico processual em audiência, possivelmente será o responsável pela prolação da sentença (especialmente em comarcas menores de varas únicas). Inevitavelmente, pois, estará contaminado com a confissão que presenciou. Não obstante, a manutenção em sigilo de todos os procedimentos que envolverem acordo de não persecução penal (com a impossibilidade de extração de cópias ou obtenção de quaisquer informações, sob pena de violação de presunção da inocência posterior e prejuízo em outras esferas judiciais) e a arguição de suspeição (de ofício ou provocada) em caso de descumprimento parecem, aparentemente, dar conta destas controvérsias. Mas, até quando a confissão será o ponto crucial do processo penal e será obtida a qualquer preço?Gostando ou não, o acordo é uma realidade. Entretanto, poderia o legislador ter expurgado a confissão enquanto requisito objetivo para sua celebração, evitando uma contradição sistemática com o artigo 3º-A e essas duas situações graves elencadas (já que a mentalidade exige maior tempo e esforço). Gabriel Teixeira Santos Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG e em Direito Civil e Processo Civil pela Toledo Prudente Centro Universitário. Advogado. E-mail: [email protected]. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen Gloeckner. [et al]. Justiça e liberdade; organizado por Salah H, Khaled Jr. – Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2019. NOTAS EXPLICATIVAS: [1] Aproveito a oportunidade para registrar meus agradecimentos aos queridxs Camila Cornacini, Leticia Cruz, Guilherme Felicio, Thiago Maluf, Renan Pereira e João Vitor Barros pelos debates, ideias, sugestões e pela realização de seminário sobre esta temática. [2] Sobre o tema, conferir: VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018 [3] Valem as pertinentes críticas formuladas por John Harriss Langbein, no trabalho denominado “Torture and Plea Bargaining”, que pode ser acessado através do seguinte link:https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=4154&context=uclrev, bem como por Ney Bello, em “Plea bargain: acertos e equívocos da barganha processual penal no Brasil”, podendo ser acessado pelo seguinte link: https://www.conjur.com.br/2019-fev-03/plea-bargain-acertos-equivocos-barganha-processual-brasil, disponíveis em 01/05/2020, às 22:36. [4] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas – tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes... et al. J. – Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. [5] KHALED JR., Salah H. Ambição de verdade no processo penal: uma introdução – 3. ed. rev. atual. e modificada – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. [6] Sobre o tema conferir o texto de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa cujo título é o seguinte: “Contaminação (in)consciente do julgador e a exclusão física do inquérito”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-out-26/limite-penal-contaminacao-inconsciente-julgador-exclusao-inquerito, acesso em 02/05/2020, às 00:58.
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