1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
STF, Plenário. HC 127.900/AM, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 03.03.2016. Ementa do julgado: Habeas corpus. Penal e processual penal militar. Posse de substância entorpecente em local sujeito à administração militar (CPM, art. 290). Crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar. Competência da Justiça Castrense configurada (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). Pacientes que não integram mais as fileiras das Forças Armadas. Irrelevância para fins de fixação da competência. Interrogatório. Realização ao final da instrução (art. 400, CPP). Obrigatoriedade. Aplicação às ações penais em trâmite na Justiça Militar dessa alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes. Adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988. Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. 1. Os pacientes, quando soldados da ativa, foram surpreendidos na posse de substância entorpecente (CPM, art. 290) no interior do 1º Batalhão de Infantaria da Selva em Manaus/AM. Cuida-se, portanto, de crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar, o que atrai a competência da Justiça Castrense para processá-los e julgá-los (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). 2. O fato de os pacientes não mais integrarem as fileiras das Forças Armadas em nada repercute na esfera de competência da Justiça especializada, já que, no tempo do crime, eles eram soldados da ativa. 3. Nulidade do interrogatório dos pacientes como primeiro ato da instrução processual (CPPM, art. 302). 4. A Lei nº 11.719/08 adequou o sistema acusatório democrático, integrando-o de forma mais harmoniosa aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988, assegurando-se maior efetividade a seus princípios, notadamente, os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). 5. Por ser mais benéfica (lex mitior) e harmoniosa com a Constituição Federal, há de preponderar, no processo penal militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), a regra do art. 400 do Código de Processo Penal. 6. De modo a não comprometer o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) nos feitos já sentenciados, essa orientação deve ser aplicada somente aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso dos autos, já que há sentença condenatória proferida em desfavor dos pacientes desde 29/7/14. 7. Ordem denegada, com a fixação da seguinte orientação: a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. 2 O CASO M.W.S.S. foi denunciado pela prática da infração penal previsto no artigo 290 do Código Penal Militar. Foi condenado à pena de um ano de reclusão, com direito a apelar em liberdade e o benefício da suspensão condicional da execução da pena pelo prazo de dois anos. Apelou ao Superior Tribunal Militar alegando incompetência da justiça militar para julgar a imputação e nulidade do processo, ante a realização do interrogatório como primeiro ato da instrução processual. Seu recurso foi desprovido consoante a seguinte ementa: APELAÇÃO. DEFESA. POSSE DE ENTORPECENTE EM ÁREA SUJEITA À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. COMPETÊNCIA DA JMU PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO. INOCORRÊNCIA DE NULIDADE DECORRENTE DA NÃO OBSERVÂNCIA DA LEI Nº 11.719/08. VALIDADE DO LAUDO PERICIAL SUBSCRITO POR UM ÚNICO PERITO. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1. Compete à Justiça Militar da União processar e julgar crimes relacionados à posse e ao uso de entorpecente em lugar sujeito à Administração Militar, com supedâneo no art. 9°, inciso I, do CPM. 2. As alterações trazidas pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, não se aplicam à Justiça Militar da União. Ausência de demonstração do prejuízo sofrido pelos Apelantes. 3. É válido o laudo pericial subscrito por um perito oficial, principalmente quando o exame de corpo de delito for requisitado pela autoridade policial militar ou judiciária a institutos ou laboratórios oficiais civis, os quais seguem as regras do Código de Processo Penal. Inteligência do art. 318 do CPPM. 4. O porte de droga em local sob administração militar, independentemente da quantidade, compromete não só a segurança e a integridade física dos membros das Forças Armadas que, usualmente, portam armas letais, como atenta, também, contra os princípios basilares da hierarquia e da disciplina militares. 5. É inaplicável o Princípio da Insignificância ao delito de porte de substância entorpecente praticado em local sujeito à Administração Militar, conforme remansosa jurisprudência. Preliminares rejeitadas por unanimidade. Recurso conhecido e não provido. Decisão unânime. Em face de tal decisão, impetrou Habeas Corpus ao Supremo Tribunal Federal, o qual concedeu a ordem para anular a instrução processual. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO O Ministro Relatos Dias Toffoli considerou que o caso deveria ser julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal ante a divergência das turmas com relação a aplicação do artigo 400 do Código de Processo Penal aos procedimentos especiais. O grande debate realizado nos autos dizia respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O Ministro Dias Toffoli destacou em seu voto: “A meu ver, a não observância do CPP na hipótese acarreta prejuízo evidente à defesa dos pacientes, em face dos princípios constitucionais em jogo, pois a não realização de novo interrogatório ao final da instrução subtraiu-lhes a possibilidade de se manifestarem, pessoalmente, sobre a prova acusatória coligida em seu desfavor (contraditório) e de, no exercício do direito de audiência (ampla defesa), influir na formação do convencimento do julgador (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; SCARANCE FERNANDES, Antônio. As nulidades do processo penal. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 75)”. O ministro Luis Roberto Barroso entendeu que o interrogatório deve ser realizado ao final e propôs que futuramente as leis especiais que regem o interrogatório como ato inicial sejam modificadas pelo legislador, vejamos trechos de seu voto: “Presidente, eu devo dizer que eu também acho melhor que o interrogatório seja ao final. E, portanto, eu acho que a mudança prevista na Lei nº 11.719, ao alterar o artigo 400 do Código de Processo Penal, houve-se bem. Penso ser essa uma inovação positiva. (…) Eu até faria um apelo ao legislador para que, em momento próximo, modifique as leis especiais para permitir o interrogatório ao final, porque acho que isso é melhor”. O ministro Edson Fachin entendeu por acompanhar o voto do Relator, à compreensão de incompatibilidade com a Constituição Federal das regras que prevejam o interrogatório de qualquer acusado antes da oitiva das testemunhas: “Não há dúvida, sob a minha ótica, de que a realização do interrogatório do acusado após a oitiva das testemunhas tem como efeito maximizar as garantias do contraditório, ampla defesa e devido processo legal (art. 5º, LV e 5º, LVI, da Constituição da República). Afinal, como é um ato de autodefesa, ao acusado se dá a oportunidade de esclarecer ao julgador eventuais fatos contra si relatados pelas testemunhas. Falando por último, o réu tem ampliadas suas possibilidades de defesa. (…) Sendo assim, com a devida vênia de compreensões contrárias, não vejo como se possa, sem declarar a não recepção da regra especial que estabelece o interrogatório como tendo lugar antes da oitiva das testemunhas, determinar-se que se realize o interrogatório nos termos do que impõe a legislação processual penal comum. (…) Vejo, portanto, incompatibilidade com a Constituição, por ofensa aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, nas regras que impõe o interrogatório do acusado em momento anterior ao da oitiva das testemunhas, a qual reputo deva ser declarada Continuado os debates, o ministro Celso de Mello, além de acompanhar o Relator, enfatizou a importância do direito de defesa inscrito na Constituição Federal e entendeu pela extensão desta aplicabilidade do art. 400 do CPP a outros procedimentos penais regidos por legislação especial, a seguir: “Esta Suprema Corte, como guardiã da integridade da ordem constitucional, há de ser reverente ao modelo que, inscrito na Constituição da República, consagra, em plenitude, o estatuto jurídico do direito de defesa. (…) Também entendo, na linha proposta por Sua Excelência, que se mostra juridicamente relevante estabelecer-se, prospectivamente, que, tratando-se de processo penal militar, seja observado o art. 400 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, de tal modo que, no procedimento ritual instaurado perante a Justiça Castrense, o interrogatório judicial do réu seja o último ato processual da instrução probatória, viabilizando-se, assim, a concreta efetivação dos postulados constitucionais do contraditório e da plenitude de defesa. (…) Sabemos que a reforma processual penal estabelecida por legislação editada em 2008 revelou-se mais consentânea com as novas exigências estabelecidas pelo moderno processo penal de perfil democrático, cuja natureza põe em perspectiva a essencialidade do direito à plenitude de defesa e ao efetivo respeito, pelo Estado, da prerrogativa ineliminável do contraditório. (…) Isso significa, portanto, que a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade e de respeito aos direitos e prerrogativas que o ordenamento positivo confere a qualquer pessoa sob persecução penal. Cabe destacar, bem por isso, no contexto ora em exame, ante a magnitude constitucional de que se reveste, a natureza jurídica do interrogatório, notadamente do interrogatório judicial, que representa meio viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais da plenitude de defesa e do contraditório. (…) Acho extremamente importante estender a aplicabilidade do art. 400 do CPP, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, também ao processo penal eleitoral e a quaisquer outros procedimentos penais regidos por legislação especial, eis que, ao assim proceder, esta Suprema Corte estará conferindo máxima efetividade aos postulados constitucionais do contraditório e da ampla defesa”. Aderindo aos debates, os ministros Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski entenderam por concordar com a extensão da aplicabilidade a outros procedimentos penais especiais, acolhido pelo então ministro Relator Dias Toffoli. Estes foram os fundamentos da decisão. 4 PROBLEMATIZAÇÃO A Lei nº 11.719/08, juntamente das Leis nº 11.689/2008 e 11.690/2008, alterou significativamente o Código de Processo Penal, vez que trouxe inúmeras modificações aos procedimentos penais. Dentre essas mudanças, ocorreu uma significativa e que colocou o interrogatório no seu devido lugar na instrução processual, qual seja o interrogatório passou a ser o último ato a ser realizado na audiência de instrução e julgamento, conforme a redação dos artigos 400[1] e 531 do Código de Processo Penal. |No entanto, algumas legislações especiais, como a Lei nº 11.343/06, no artigo 57[2], e Código de Processo Penal Militar, no artigo 302, preveem o interrogatório como primeiro ato a ser realizado na audiência de instrução e julgamento, impossibilitando, desta forma, que o réu possa conhecer e se manifestar sobre as provas produzidas contra si. De tal modo, fazia-se urgente que os dispositivos das legislações especiais fossem reinterpretados de forma a se amoldarem aos inúmeros direitos fundamentais que resguardam os alvos de persecução penal. Os incisos LIV e LV do artigo 5º[3] da Constituição Federal não coadunam com a realização do interrogatório antes da produção probatória. A lição de PACELLI DE OLIVEIRA, ao abordar as inovações trazidas pela lei 11.719/08, corrobora o afirmado, vejamos: A lei 11.719, de 20 de junho de 2008, trouxe importantíssimas modificações nos procedimentos do processo penal, alterando também o interrogatório, ajustando a legislação, aliás, a um modelo processual de feição prioritariamente acusatória (não inquisitiva). Assim, e agora, o interrogatório do acusado somente se realizará após a apresentação escrita da defesa (art. 396, CPP), e, na audiência uma de instrução (art. 400, CPP), após a inquirição do ofendido, das testemunhas (de defesa e de acusação) e até dos esclarecimentos dos peritos, acareações e demais diligências probatórias que devam ali ser realizadas. É dizer: agora, o interrogatório é o último ato da audiência de instrução e não mais o primeiro do processo penal. No mesmo sentido, LOPES JR.. frisa “que o interrogatório finalmente foi colocado em seu devido lugar: o último ato de instrução. É neste momento em que o réu poderá exercer sua autodefesa positiva ou negativa (direito ao silêncio)”. Consoante se sabe, ao Ministério Público cabe produzir as provas e a defesa, seja o acusado por meio da autodefesa, seja o procurador por meio da defesa técnica, rebatê-las. Impedir que o réu tenha conhecimento do que foi produzido contra si é uma fraude à autodefesa, pois como poderia o acusado verificar o que é melhor para si sem tomar conhecimento do que foi produzido: ser interrogado ou permanecer em silêncio? Ainda que seja um meio de prova, o interrogatório por excelência é um meio de defesa, esta é sua função primordial, possibilitar ao réu dar a versão que lhe aparente ser a melhor consoante o desenrolar do jogo processual. E como meio de defesa, é inequívoco que sua realização deve ser após a inquirição das testemunhas. Segundo Pacelli de Oliveira: Inicialmente concebido como um meio de prova, no qual o acusado era unicamente mais um objeto de prova, o interrogatório, na ordem atual, há de merecer nova leitura. Que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores problemas, até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa. O rito previsto na Lei de Drogas e Código de Processo Penal Militar não se compatibilizam com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Por mais graves que sejam os delitos apontados a qualquer réu, não há razão para ignorar a Constituição Federal e fazer letra morta de garantias firmadas. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Especialista em Ciências Criminais e práticas de advocacia criminal. Pós graduando em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. REFERÊNCIAS LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, volume II, 3ª. ed. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010. PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal, 12ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. [1] Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. [2] Art. 57. Na audiência de instrução e julgamento, após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, para sustentação oral, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz. [3] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; Comments are closed.
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