É na casa do juiz de instrução Porfiri Pietróvitch, que o jovem (ex) estudante de Direito Raskólnikov tenta explicar sua teoria sobre a licitude de determinados crimes para um estrato específico da sociedade:
E é a partir do questionamento acima exposto, que o leitor de Crime e Castigo (1866) tem contato com o eixo gravitacional da Teoria do Crime Permitido. Rodion Românovitch Raskólnikov de 23 anos, morador de São Petersburgo na Rússia, defende a ideia de que homens se dividem em ordinários e extraordinários. E que enquanto os ditos ordinários devem viver na obediência sem o direito de infringir as leis, os homens extraordinários têm o direito, desde que diante de um desígnio nobre, de saltar diante dos obstáculos praticando condutas proibidas. A obra de Fiodor Dostoievski é um clássico da literatura mundial e já foi estudado por diferentes aspectos: jurídicos, psicológicos, filosóficos e históricos. O presente artigo pretende fazer um approach entre o livro e o universo jurídico e instigar o leitor a se aprofundar na obra do autor. Analisando não só na premissa jurídica da Teoria do Crime Permitido, inicialmente absurda, mas que não passa de uma reflexão proposta por Dostoievski para preencher os devaneios intelectuais do personagem, como todos aqueles pormenores da complexa história, que compõe a matéria-prima na construção de um livro singular, que apresentou uma sociedade de forma mais humana em contraposição ao racionalismo vigente. Por cada pormenor, leia-se a riqueza de sentimentos e valores de cada personagem, fulcrais para a trama, que compõe um “romance polifônico” por excelência, assim entendido pelo filósofo Mikhail Bakhtin em seu livro “O Problema da Poética de Dostoiévski”. Pois em Crime e Castigo, cada personagem atua livremente de acordo com seu ponto de vista no contexto em que está inserido, apontando para uma profunda compreensão da alma humana por parte de Dostoievski. Da simplicidade da mãe do herói, Pulkhéria Raskólnikova, que recebe uma miserável pensão e sua irmã, Avdótia (Dúnia), governanta em uma casa burguesa na província, até o orgulhoso e desleal Piotr Pietrovich Lúdjin, advogado que se oferece como salvação para a família de Rodion. De Dmitri Prokófich Razumíkhin, melhor amigo de protagonista, um jovem honesto e talvez um pouco ingênuo, até Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, depravado, pedófilo e agressor que cruza o caminho de Rodion nos capítulos finais da história. Porfiri Pietróvitch que é o juiz de instrução que, através da análise das atitudes de Raskólnikov, descobre que ele cometeu o crime. E podemos mencionar também, Sônia Semionova Marmeliadova, mulher que se prostitui para ajudar a família e chama a atenção de Rodion Románovitch para confidenciar seu crime. Cada um destes personagens e vários outros não mencionados são fundamentais para analisar à história dos mais diversos pontos de vista. Se durante a narrativa, a análise psicológica dos personagens antes, durante e depois do crime são de imensa valia para a humanização do Direito, a Teoria do Crime permitido é mais significativa para a compreensão do conceito de crime, do que manuais e livros puramente técnicos. Afinal, um crime pode ser permitido pelo ordenamento jurídico? Poderia o diploma repressivo autorizar esta conduta delitiva no caso concreto? O bem jurídico tutelado pelo Estado poderia ser violado então? Não se trata do caso em tela, pois a autorização do crime não advém do Direito instituído, e sim pelo teórico direito que os extraordinários possuem de agir conforme suas consciências lhes conduzam. Uma lei natural inexorável que não está positivada:
O ex-discente Românovitch, defende em seu artigo, publicado num periódico obscuro da própria universidade, a ideia de que não só este tipo de lógica é antiga, como ela define nosso mundo. A ideia de que um crime cometido por Napoleão, mas em prol da humanidade e que fundou uma nova ordem jamais sofreria qualquer tipo de censura, assim como os que foram cometidos anteriormente pelos fracassados na manutenção do status quo, é o conceito de que certos crimes são absolvidos pela história. O que Românovitch faz, é ponderar sobre a relação que as legislações têm com os valores morais vigentes, e como grandes estadistas inicialmente quebraram as leis da época para após construir novas leis mais avançadas, e daí que vem a indagação: não seria o processo de ruptura inerente à humanidade? A grandeza dos revolucionários, principalmente de Napoleão Bonaparte, (lembrado a todo o instante no magnum opus de Dostoievski) foi o combustível para os jovens do século XIX, E exatamente por isso, a obra é atemporal, pois a reflexão sobre os déspotas do passado, vale para os do presente. Nesta época, ocorreu uma disseminação dos pensamentos progressistas de então, vinculados à filosofia alemã e francesa e a economia política britânica. Mas os intelectuais da época não debatiam apenas sobre política, havia muito prestígio as produções científicas. Este entusiasmo pelas ciências não pode ser desagregado das correntes de pensamento ideológico secular vigente - que variavam do liberalismo até o socialismo. Apesar de atualmente diferenciados, liberais e socialistas, figurando em polos políticos distintos (da direita e da esquerda respectivamente), historicamente tiveram uma convergência entre suas ideias, rotuladas genericamente na época de “progressistas”:
É importante salientar, que após o Iluminismo, até a segunda metade do século XIX, vê-se que o ocidente viveu o auge do cientificismo, manifestado em doutrinas como o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e a partir de uma nova concepção do Estado, o exercício do poder foi tomando cada vez mais um caráter “racional”, incentivando o desenvolvimento de novas disciplinas que permitissem resolver à problemática oriunda da sociedade industrial capitalista. A ideia de punição estatal também não deveria se assentar tão somente no império das leis e sim, no caráter racional e científico vigente:
Desta forma surgiu a criminologia neste contexto histórico a partir dos estudos de diversas áreas, como a estatística, a médica, a antropológica etc. Acarretando numa interpretação estritamente mecanicista e preconceituosa do criminoso, ao tomar diversas generalizações e premissas constatadas por métodos questionáveis como a frenologia, i.e., teoria que reivindicava ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade pela forma da cabeça. Demonstrava-se a limitação e opressão existente na nova sociedade racionalista. E é nesse contexto que o surge Crime e Castigo como uma luz no final do túnel. Pois Raskólnikov, que é a personificação do racionalismo da época, comete um crime se baseando na sua teoria, julgando ser um desses humanos extraordinários e do alto de seu orgulho que o acompanha até o final de sua empreitada, mata uma velha agiota com uma machadinha para roubar-lhe e posteriormente utilizar os recursos oriundos do delito para terminar a faculdade e prosseguir seu caminho de boas ações. Para ele um piolho diante das grandes ações que o futuro lhe reservava. Mas vaidade, egoísmo, orgulho e presunção são características que apenas ratificam a humanidade do personagem principal. Ele insiste até o final em não admitir sua mea maxima culpa, exceto no que concerne sua incapacidade de lidar com as consequências de seu ato. Rodion Românovitch, assim como tantos outros criados por Dostoievski, é um personagem que se encontra no estado limite da vida cotidiana, vivendo taciturno em sua habitação, um pequeno quarto lúgubre localizado em uma pensão no centro da cidade, e vagando pelas ruas de Petersburgo sem rumo, perdido em devaneios e na pobreza, sem condições de se manter, mas com síndrome de grandeza, o estudante trava em seu íntimo as batalhas éticas para decidir o seu próximo passo. E a humanização do Direito reside exatamente aí, na ausência de um maniqueísmo entre o bem e mal, pois ao mesmo mesmo tempo em que Raskólnikov é um assassino frio e sem remorso, ele também é um filho atencioso, irmão preocupado e um cidadão generoso com a miséria alheia, fazendo uso de todos seus últimos recursos para ajudar o próximo.
A forma como Dostoievski construiu seus personagens há mais de 150 anos atrás, com uma densa carga psicológica, sendo estudados posteriormente por Freud [6] são resultado de uma vida atribulada como prisioneiro político na Sibéria, como cristão ortodoxo fervoroso concebeu em Crime e Castigo um personagem principal totalmente oposto ao que acreditava e consoante ao racionalismo vigente na época, mas que posteriormente alcança a redenção pelo amor. O legado de Dostoievski é imenso para o Direito, a Teoria do Crime Permitido assim como a saga de Raskólnikov são indeléveis para a literatura mundial. Estudar sua obra é entender um pouco mais sobre a natureza humana e por conseguinte o Direito. Paulo Eduardo Rodrigues Leite Acadêmico de Direito pelo Centro Universitário Nove de Julho, 4°período NOTAS [1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p.240 [2] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p.241 [3] HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1798-1848. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2010. p. 83 [4] BARRETO, Tobias. Estudos de direito. 1892. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 195 [5] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p.503 [6] FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. São Paulo: Hedra, 2014. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: GEN, 2009 BARRETO, Tobias. Estudos de direito. 1892. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Nova Cultural, 2002 FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. São Paulo: Hedra, 2014. Comments are closed.
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