Na grande maioria de meus artigos a preocupação volta-se à análise legislativa ou dogmática no que tange à legislação acerca da política de drogas. Neste farei diferente, um toque de realidade e prática sempre há de ganhar espaço, especialmente para que as críticas façam sentido. Desta forma, no presente artigo, conto um caso em que atuei como defensor dativo e que já transitou em julgado, pelo menos no papel. De modo a não expor a figura do cliente, bem como não adotar nenhum nome fictício que possa gerar constrangimento, o chamarei de P. Fui nomeado como Defensor Dativo de P 03 meses após minha formatura, ainda com apenas 02 meses na advocacia. Em uma rápida olhada no processo, anotei as informações relevantes tais quais: - Imputação delitiva: Tráfico de Drogas. - O denunciado estava preso preventivamente. - Réu primário e com bons antecedentes. - Foi preso “em flagrante” juntamente com uma pessoa menor de idade. - O menor de idade possuía consigo R$ 437,00. E por último e mais espantoso, a absurda quantia de 30 (TRINTA) GRAMAS de maconha. Com tais informações, no outro dia me dirigi ao Presídio para conversar com o perigoso traficante das 30 (TRINTA) GRAMAS. Minha primeira visita ao presídio, meu primeiro cliente, o qual demorou aproximadamente 04 horas para chegar ao parlatório, e quando chegou acreditei terem trazido a pessoa errada ou não (diante a seletividade do direito penal). Um jovem do outro lado, negro, de origem humilde e segundo me contava, um usuário de maconha, que sequer sabia o porque estava ali. Contava sorrindo (acredito que não sabia das acusações que pesavam contra si) sobre os “amigos” de lá de dentro, que não acreditavam que ele estava ali por 30 gramas de maconha. Ao final, me disse uma frase que trago comigo até os dias atuais, quando lhe disse que não poderia lhe garantir sua liberdade ou absolvição, me respondeu: “Doutor, só de ter alguém aí fora que está cuidando de mim, já fico feliz”. Saí do presídio meio atordoado, pensando o porque daquele jovem estar preso, sendo que possuía condições pessoais favoráveis e a quantidade não era expressiva. Ao reler o decreto prisional de P. vi os seguintes argumentos: “No caso em análise, mostra-se necessária a prisão para manutenção da ordem pública, visto que o crime de tráfico de entorpecentes envolve e dá ensejo a uma gama de outros delitos, consistindo em delito que coloca efetivamente em risco não só a ordem, como também a saúde pública.” Liguei para os parentes de P., uma irmã e dois avós com uma certa idade. Quando foram ao meu escritório, ao ouvirem as acusações que pesavam contra seu neto, aqueles senhores ficaram visivelmente abalados. Relataram que P. realmente tinha um problema com as drogas, mas que jamais fez algo errado, que estava começando a ir na igreja junto com os avós, ajudava em casa, e sempre foi um bom neto (na minha opinião, o preferido). A história de P. não era nada fácil, pai sumiu, a mãe possui problemas mentais graves, e foi criado pelos avós juntamente com sua irmã. Sua condição social e financeira também não era das melhores. Após, comecei a realizar um Habeas Corpus que havia aprendido na faculdade, e o problema surgiu, onde protocolar e demais questões acerca da prática. Me socorri ao amigo André Pontarolli que me apontou alguns caminhos e me auxiliou. Protocolado o Habeas Corpus com Pedido de liminar, aguardei ansiosamente a liberdade daquele rapaz. Quando saiu a decisão liminar fiquei pasmo, ao ler a decisão liminar praticamente já tinha o voto do(a) relator(a), a qual negava a liberdade de P., passando do cabimento da concessão de liminar e sustentando que pelo fato do crime envolver um menor de idade, revelava a grande periculosidade de P, “sendo certo que envolver adolescente para fomentar o comércio local de grande movimento de crianças e adolescentes demonstra a periculosidade social do indivíduo”. O despacho que negou minha liminar ocorreu próximo ao recesso forense, e queria tirar “P” daquela prisão, que ao meu ver era totalmente descabida, afinal “P” era usuário e não um traficante. Sendo assim, fui até a juíza, que me recebeu com total cordialidade, expliquei o processo de “P” argumentei, e por fim, ela restou-se convencida de que não era necessária a segregação da liberdade de “P”. Protocolei o pedido de revogação da prisão preventiva perante o juízo singular, o Ministério Público se manifestou contrariamente, e quando chegou no Juízo, este reconheceu o pedido e dotada de sapiência determinou a expedição do alvará de soltura em favor de P. P. ficou preso aproximadamente 03 meses por portar 30 gramas de maconha e na ocasião da abordagem estar com um menor de idade também indiciado. Durante a audiência, os policiais que efetuaram a prisão, falaram que pelas suas experiências profissionais P. não era traficante, mas sim usuário. O menor de idade quando ouvido, falou que o dinheiro era de sua mãe. E P. confirmou que a absurda quantia de 30 GRAMAS de maconha era sua, mas que tinha ido adquirir a substância na praça em que foi abordado. Ministério Público ofereceu as alegações finais requerendo a desclassificação do crime para que P. fosse considerado usuário, a defesa por sua vez, pleiteou a desclassificação, bem como que fosse extinta a punibilidade pelo fato de P. já ter cumprido pena em regime mais gravoso (e quão gravoso foi conforme narrarei a seguir). Uma semana antes de sair a sentença de P. (que reconheceu ele ser usuário e extinguiu a punibilidade pelo cumprimento de pena por regime mais gravoso), recebi a informação de que P. havia sido preso, acreditei ser por causa da tornozeleira estar descarregada. Cheguei na delegacia para conversar e dei uma olhada nos autos de prisão em flagrante. Qual não foi minha surpresa, o motivo da prisão não era a tornozeleira descarregada e P. agora, também não estava com drogas, ele havia sido preso por Roubo, Agressão e Corrupção de Menores em concurso de pessoas. Fiquei abismado e sem entender, P., aquele jovem sorridente, que os avós falaram tão bem, cometer aqueles atos que narravam no boletim de ocorrência. Então lembrei de uma conversa que tive com P. logo depois dele sair do presídio, próximo ao natal. Quando P. falava dos “amigos” que tinha feito lá dentro, falava com admiração, admiração por aqueles que o acolheram, aqueles que o protegeram lá dentro do sistema, falava também das coisas ruins que aconteceram dentro do sistema penitenciário. Uma angústia me bateu ao voltar da delegacia, em pensar que o sistema corrompeu aquele neto que ajudava os avós, que estava retornando para a igreja, e que por portar drogas para seu consumo, foi preso. Você pode até pensar que P. era bandido antes, mas lhe relembro, P. era réu primário, bons antecedentes, e também um menino um tanto quanto iludido com o mundo quando foi preso pela a primeira vez. Agora, quando P. retornar ao sistema, poderá fazer uma nova escola e vamos ver o que sai de lá, não quero generalizar, muitos entram dentro do sistema e saem de lá pessoas melhores, outros entram inocentes e saem culpados. Quem devolverá a “P” o tempo que ficou preso? Quem devolverá a “P” o tempo que ficou com tornozeleira eletrônica instalada em sua perna e taxado como criminoso? Quem devolverá a “P” o direito de usar bermuda sem que ninguém fique o julgando por causa do aparelho que o está monitorando? Será “P” uma vítima do efeito colateral de um sistema aberto, feito para pegar pobres, negros e usuários de drogas? Será “P” o inimigo do Estado? Gosto muito de uma frase de Francesco Carnelutti em sua obra Misérias do Processo Penal e acredito que se encaixe bem no que estou lhes escrevendo:
Mas como proteger os “P” com uma legislação ampla e com conceitos tão vagos? Como proteger e dar tratamento a usuários de entorpecentes sendo que são jogados atrás das jaulas? O Estado em busca da punição dos seus inimigos faz muitas vítimas, e “P” é uma delas, que ao invés de receber tratamento ou ser enquadrado realmente pelo que fez, foi jogado às feras como dizia Francesco Carnelutti. É meu amigo, como dizem, o sistema é perverso, ele corrompe, e por estes motivos questiono, até quando vamos permanecer com critérios tão frágeis na diferenciação entre um usuário e um traficante? Até quando vamos ter usuários de maconha sendo presos preventivamente? E nesta mesma situação, quantos estão nesta situação carcerária preventiva? Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminal Pós-graduando em Processo Penal e Direito Penal na ABDCONST. Pós-graduando em Direito Contemporâneo no Curso Jurídico. Comments are closed.
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