Artigo do colunista Iuri Victor Romero Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Ou seja, os debates acerca do princípio unificador para um sistema acusatório (único possível num estado que se pretende democrático de direito) devem ocorrer sobre o princípio da imparcialidade. O julgador deve se manter equidistante das partes, não deve ter vinculação com a pretensão deduzida, nem qualquer interesse direto ou indireto quanto ao julgamento do caso. Conforme pontua Ferrajoli, “é necessário, para que seja garantida a imparcialidade do juiz, que este não tenha de modo algum qualquer interesse na causa, seja público ou institucional''. Por Iuri Victor Romero Machado 1. INTRODUÇÃO
A necessidade de resguardar a imparcialidade é um imperativo para um processo penal democrático, há muito tempo a imagem da representação romana da estátua da justiça, com seus olhos vendados, simboliza ausência de prejuízos e preconceitos, reforçando o imaginário popular acerca do mister judicial, imaginário que é de importância singular para um justo acertamento do caso penal. Ocorre que os limites de atuação do juiz são por demais controversos na doutrina e jurisprudência. Muito se discute acerca da possível contaminação do julgador que toma decisões na fase pré-processual e, posteriormente, na fase processual. Diversas questões são constantemente questionadas, tais como: um juiz que decreta cautelares no decorrer da investigação se torna imparcial para fins de julgamento de mérito? Um juiz que participa da colaboração premiada tem como ser imparcial com corréus no julgamento do mérito? Quais os limites de atuação do juiz? Questões relevantíssimas que merecem maior estudo e pesquisa por parte dos atores do processo penal brasileiro. Cabe ressaltar que tal discussão foi reforçada recentemente devido à Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019), a qual positivou a figura do juiz das garantias no ordenamento brasileiro, juiz que será responsável pela fase pré-processual, vinculado-se aos autos até o momento de ratificação do recebimento da denúncia, i.e., após análise da resposta do acusado. A fim de contribuir com o debate acerca dos limites de atuação do juiz, da possível ocorrência de parcialidade, o presente artigo pretende questionar se a imparcialidade judicial resulta afetada no julgamento do mérito processual no caso da celebração de acordo de colaboração premiada na fase pré processual. Não há nenhuma pretensão de firmar um posicionamento definitivo, mas trazer ao debate qual a importância da imparcialidade dentro de um sistema acusatório, o posicionamento das cortes internacionais e, por fim, verificar se o que está em debate no Brasil está e, consonância com o posicionamento destas cortes. A importância do debate se dá na medida em que a colaboração premiada se tornou instituto aplicado constantemente nas grandes operações e num pseudo combate e persecução da corrupção, sendo certo que “a imparcialidade vincula o sistema acusatório! E se optamos por esse modelo de estruturação do processo devemos aprender a adotá-lo por inteiro e não somente as partes que nos convém”[1]. 2. O PAPEL DO JUIZ NA COLABORAÇÃO PREMIADA SEGUNDO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A Lei nº 12.850/13 tornou a colaboração premiada um meio de obtenção de prova típico, i.e., estabelecendo o rito de produção legal, diversamente do que as diversas leis que dispunham sobre a delação premiada faziam. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de julgar o instituto da colaboração premiada por algumas vezes, sendo um dos julgados mais importantes o habeas corpus nº 127.483/PR, no qual o Relator Min. Dias Toffoli consignou que a colaboração é: “um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração”. No teor do voto, o Ministro destacou que “como meio de obtenção de prova, destina-se à “aquisição de entes (coisas materiais, traços [no sentido de vestígios ou indícios] ou declarações) dotados de capacidade probatória”. Assim, não se pode confundir o instituto da colaboração com a confissão do colaborador, o qual segundo o Ministro é “meio de prova, que somente se mostrarão hábeis à formação do convencimento judicial se vierem a ser corroborados por outros meios idôneos de prova.”. O Ministro afirmou que a homologação judicial do acordo é um provimento interlocutório, possuindo mera natureza homologatória, consignando que “ao homologar o acordo de colaboração, não emite nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público”. Tal afirmativa encontra amparo na doutrina, conforme se verifica de GOMES e SILVA, os quais lecionam que o juiz deve averiguar voluntariedade, regularidade e legalidade e que “não deve o magistrado fazer outro juízo de valor que não estes elencados”[2]. Ainda, foi afirmado que a colaboração premiada é negócio jurídico personalíssimo, não podendo ser impugnada pelos corréus, pois “tem por finalidade precípua a aplicação da sanção premial ao colaborador, com base nos resultados concretos que trouxer para a investigação e o processo criminal”. Quanto à eficácia do acordo e sua valoração na sentença, importante consignar que o magistrado fica vinculado ao que foi estipulado, sendo considerado um direito subjetivo do colaborador a fixação da sentença nos termos do prêmio que foi celebrado: Assim, caso se configure, pelo integral cumprimento de sua obrigação, o direito subjetivo do colaborador à sanção premial, tem ele o direito de exigi-la judicialmente, inclusive recorrendo da sentença que deixar de reconhecê-la ou vier a aplicá-la em desconformidade com o acordo judicialmente homologado, sob pena de ofensa aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Da mesma forma, o Min. Celso de Mello na PET 7074-QO: É importante deixar assinalado, neste ponto, que o acordo de colaboração premiada, devidamente homologado, vincula o Poder Judiciário no julgamento final da causa penal, desde que as obrigações assumidas pelo agente colaborador tenham sido por este realmente cumpridas, pois –insista-se – é da efetiva execução das cláusulas ajustadas em referido pacto negocial que se viabilizará a concessão, ao agente colaborador, dos benefícios de ordem premial que por ele foram ajustados com o Estado. Para finalizar este tópico, importante consignar que o rito de produção da colaboração de prova está previsto do art 3º-A ao 7º da Lei nº 12.850/2013, sendo que o mesmo sofreu várias alterações decorrentes da Lei Anticrime, sem que, contudo, houvesse mudança que pudesse acarretar na reforma da jurisprudência citada. 3 IMPARCIALIDADE: PRINCÍPIO REITOR DO PROCESSO PENAL Há algum tempo, a doutrina discute qual a melhor definição de um sistema processual, na medida em que é a partir de sua definição que se deve avaliar qual foi o sistema adotado no ordenamento jurídico brasileiro. Com referência em Kant, parte da doutrina conceitua sistema como sendo o conjunto de regras e princípios orientados por um princípio unificador, conforme leciona Chemim: “a noção de ”sistema” deve ser compreendida a partir da existência de uma ideia fundante e do referido “princípio unificador”[3]. A partir desta definição de sistema, segundo uma doutrina mais “tradicional”, busca-se diferenciar sistema acusatório, orientado pelo princípio dispositivo, do sistema inquisitivo, orientado pelo inquisitivo. Muitos outros doutrinadores procuraram definir o sistema inquisitivo como sendo aquele orientado pela gestão da prova nas mãos do julgador, afirmando, assim, que nosso sistema é inquisitorial. Quanto às inúmeras definições de sistemas processuais, Chemim demonstrou que há grande divergência na doutrina, ao afirmar “como se viu acima foram identificadas pelo menos quatorze formas diferentes de tentar distinguir um sistema do outro”[4]. Para fins deste artigo, quer-se destacar que as possibilidades quanto à definição de um sistema giram todas em torno de um princípio, o qual se entende como unificador do processo penal democrático, qual seja: a imparcialidade. Esta, sabe-se, é pressuposto da jurisdição, como bem pontua Badaró, “a ideia de jurisdição está indissociavelmente ligada à de juiz imparcial, na medida em que, se o processo é um meio de heterocomposição de conflitos é fundamental que o terceiro, no caso, o juiz, seja imparcial, isto é, não parte”[5]. Tem-se que é inconcebível que um juiz possa ter “lado”, possa atuar em favor de uma parte, razão pela qual as discussões acerca do sistema processual adotado no país passam inevitavelmente pela possível parcialidade ou não do julgador. A respeito, leciona Pacelli: A necessidade de superação de um modelo processual de feição inquisitiva trouxe como consequência mais importante do advento do sistema acusatório (como o nosso) e do sistema adversary (sistema de partes, do Direito anglo-americano), a preocupação com a imparcialidade do juiz.[6] Ou seja, os debates acerca do princípio unificador para um sistema acusatório (único possível num estado que se pretende democrático de direito) devem ocorrer sobre o princípio da imparcialidade. O julgador deve se manter equidistante das partes, não deve ter vinculação com a pretensão deduzida, nem qualquer interesse direto ou indireto quanto ao julgamento do caso. Conforme pontua Ferrajoli, “é necessário, para que seja garantida a imparcialidade do juiz, que este não tenha de modo algum qualquer interesse na causa, seja público ou institucional”[7]. Tem-se que muito embora o princípio da imparcialidade não esteja expresso na Constituição Federal, diversas outras garantias existem a fim de resguardar a imparcialidade, de modo que ela se encontra implícita, para citar algumas: na proibição de tribunal de exceção, delimitação de competências, na privatividade de ação penal pública, contraditório, motivação. Pode-se, então, afirmar que para que exista um devido processo legal substancial, o juiz imparcial é essencial. Outrossim, importante consideração sobre o caráter dinâmico dos direitos fundamentais, os quais não podem ser limitados (dentre eles a imparcialidade), foi feita pelo Juiz Sergio Garcia Ramirez, quando de seu voto conjunto no caso Fermin Ramirez Vs. Guatemala, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante IDH), no ano de 2005: 13. Añadí entonces: “Los derechos y garantías que integran el debido proceso --jamás una realidad agotada, sino un sistema dinámico, en constante formación-- son piezas necesarias de éste; si desaparecen o menguan, no hay debido proceso. Por ende, se trata de partes indispensables de un conjunto; cada una es indispensable para que éste exista y subsista. No es posible sostener que hay debido proceso cuando el juicio no se desarrolla ante un tribunal competente, independiente e imparcial, o el inculpado desconoce los cargos que se le hacen, o no existe la posibilidad de presentar pruebas y formular alegatos, o está excluído el control por parte de un órgano superior. De tal modo, a figura do terceiro imparcial, assegurada pelo princípio do juiz imparcial deve ser resguardada em sua plenitude a fim de que o exercício da jurisdição seja legítimo, de modo a assegurar um sistema acusatório. Iuri Victor Romero Machado. Advogado. Professor de Direito Penal e Processo Penal em cursos preparatórios. Pós graduado em Direito Penal e Processo Penal. NOTAS: [1] FAYET, Fábio Agnet. Ânimo persecutório do magistrado: a quebra do dever de imparcialidade e sucessivas decisões contrárias ao direito à prova defensiva. Disponível em: <http://www.ibraspp.com.br/revista/index.php/RBDPP/article/view/143>. Acesso em 28/04/2020. [2] GOMES, Luiz Flávio; SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação. , Salvador: JusPodivm, 2015. p. 322. [3] Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/rodrigo-chemim-guimaraes/o-conceito-de-sistema-e-sua-importancia-para-a-reforma-do-processo-penal-d8d6yw585dmsewuumi3muljt9/>. Acesso em 26/04/2020. [4] Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/rodrigo-chemim-guimaraes/reforma-do-codigo-de-processo-penal-de-qual-sistema-acusatorio-estamos-falando-bqxmzx2pddfjj4kdxowmyg585/?ref=link-interno-materia>. Acesso em 26/04/2020. [5] BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 31. [6] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 343. [7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 536.
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ISSN 2526-0456 |