A necessidade de resposta à pergunta proposta como título deste texto surge do seguinte fato: nos discursos que clamam por um aumento da efetividade punitiva estatal e a elevação do rigor de seus castigos[1] é pouco comum encontrarmos pesquisas e estudos empíricos, de cunho sociológico, embasando tais clamores em dados que permitam a apreciação científica do binômio necessidade/adequação das medidas aventadas. Este discurso acaba sendo sustentado ora pela manipulação quase ilusionista de dados estatísticos ora pelo uso de algo que parece ter virado uma daquelas palavras-passe que permitem a entrada no reino das delícias nas mais diversas fábulas: a impunidade.
Diante desse cenário surgem as questões: é possível um conceito ontológico de impunidade? É possível o uso deste conceito como fundamento da pena ou como justificante de determinada medida de política criminal? De modo bastante conciso esboça-se a seguir uma resposta. Quanto a primeira pergunta levantada defendo que não. Não é possível a construção de um conceito de impunidade que se sustente por si. Ainda que se perceba no senso comum compartilhado (pleonasmo?) uma noção mais ou menos clara do que significa a impunidade é preciso reconhecer que esta significação não se dá pelo uso da razão pura e prática ou mesmo pela mera abstração colocada frente a uma empiria. Na realidade aquilo que se convencionou nomear como impunidade pode melhor ser esclarecido se entendido como produto de uma ideologia, ou seja, uma racionalização que permite introjetar (naturalizar) em nosso imaginário a noção de que a batalha (via direito penal) contra esse “mal” poderá trazer paz e segurança. A impossibilidade de um conceito ontológico de impunidade e a inutilidade deste conceito para as ciências sociais como critério para qualquer estudo sério dos conflitos em sociedade se dá pelo fato de que ele reclama sempre um outro referencial externo para que possa sequer ser falseado. Assim, se falo de impunidade preciso me perguntar: em relação a que crimes? Com que base comparativa? Esta base é legítima para apreciação? Qual a medida de aferição que deve ser utilizada? Com um pouco de estudo criminológico, revelada a ampla seletividade penal, chega-se por fim a pergunta fundamental: impunidade em relação a que agentes? Tão presente é a dificuldade acima mencionada que quando feita a manifestação em torno do conceito é comum que se utilize do mesmo dizendo que há “um sentimento de impunidade”. Ora, quanto a isso acredito não ser necessário gastar muitas linhas para concluir como absurdo qualquer diálogo acerca de sanções penais ou outro tema correlato em estudos sociais que busque se referenciar em algo tido como uma sensação ou um sentimento. Para finalizar este primeiro ponto cabe destacar que a aferição de impunidade com base em dados estatísticos é extremamente temerária. Como já dito, tratando-se de um estudo de ciências sociais em que há uma série de fatores que precisam dar suporte às conclusões que serão tiradas (De quem se fala? Em que tempo se fala? Em que contexto se fala? De que época se fala?) não é adequado basear-se em dados “crus”. Em outros termos, não se pode simplesmente inferir dos números uma conclusão fria e definitiva. Dando um exemplo para clarear: não posso colher o dado de que determinado número de homicídios não chegam sequer a ser notificados às autoridades para concluir tratar-se de um caso (ou casos) de impunidade. Isso porque se assim fizer estou me permitindo excluir uma série de outras possibilidades que poderiam com igual ou melhor grau de precisão esclarecer o fenômeno. Ainda em outras palavras: dizer que os homicídios não notificados retratam um quadro de impunidade não me diz nada, porque não me permite sequer perguntar de que homicídios se trata; ocorridos em que circunstâncias, perpetrados por quem, se com presença de dolo ou culpa, etc. Pior, quando se parte da premissa de que a cifra não sancionada de determinado delito retrata um quadro impunidade invariavelmente se deduz disso que é essa a causa da manutenção ou aumento da ocorrência daquele delito em certo contexto, numa grosseira manipulação retórica que permite alavancar o uso do direito penal como suposto remédio para um mal que nem mesmo ficou claramente desenhado. Com isso chegamos a segunda a pergunta. Entendo que de forma satisfatória, ainda que sucinta, foi possível demonstrar a completa inviabilidade de um conceito ontológico de impunidade. Disso decorre a próxima indagação: pode-se falar em impunidade para fundamentar a necessidade de aplicação da pena ou justificar determinada medida de política criminal? Com base no esboçado na primeira resposta é imperioso dizer que não. O conceito de impunidade é poroso, manipulável e carrega em si uma dose de ideologia tão forte que o torna completamente inadequado para um debate sério sobre a sanção penal. Infelizmente, porém, uma breve visita às decisões judiciais em esfera penal em nosso país revelará um grande número de sentenças e acórdãos que, explícita ou implicitamente, se arvoram no conceito de impunidade para justificar a aplicação ou majoração da pena. Não raro se pode notar até mesmo uma distorção da função preventiva geral da pena, admitida em nossa legislação, no sentido de fundamentar a sanção no combate à impunidade sob o disfarce retórico de efetivação desta função. Assentar uma decisão judicial desta forma significa admitir um uso ilegítimo (funcionalista) do aparato penal, em clara afronta a preceitos mandamentais básicos de nossa Constituição Republicana como a individualização da pena e a responsabilidade penal subjetiva, para ficar só com dois exemplos. Também nas manifestações públicas perpetradas por aqueles que possuem função decisória quanto a política criminal a ser adotada percebe-se uma argumentação pasteurizada e vendida em recipientes recicláveis para ser rapidamente digerida, tendo por ingrediente principal o combate à impunidade. Não se oferecem estudos que demonstrem que este “combate”, através do uso ou agravamento da sanção, é eficaz. Muito menos se observa uma preocupação em produzir e apresentar pesquisas dos efeitos sociais mediatos previstos para tais medidas. Funcionam como uma profecia a clamar por fé. Não explicitam o teor da “impunidade” a ser combatida (ou o fazem simplesmente explorando dados quantitativos como já abordado) e não delimitam seu objetivo de modo claro. Golpeiam o ar, ou melhor, continuam a golpear seletivamente os bodes expiatórios contemporâneos. Antes de encerrar quero fazer um breve comentário sobre qual seria o resultado prático se o discurso de combate à impunidade fosse ao menos sincero. Considerando que temos em nosso arcabouço legislativo mais de 1.600 atos tipificados penalmente e tomando como projeto a ideia de real contração ou eliminação da impunidade onde chegaríamos? Zaffaroni responde (2014, p. 249):
Com isso não se quer argumentar, que fique claro, no sentido de que o cometimento de delitos graves deve ficar livre de qualquer sanção. O que se pretendeu debater aqui foi o fato de que o uso do conceito de impunidade não apenas falha em prover um critério seguro e científico sobre o qual se possa construir uma fundamentação para pena ou para definições de política criminal como elucidar o fato de que ele opera retoricamente como um reforço da ideologia que pretende racionalizar a violência punitiva e naturalizar a perseguição estigmatizada típica do sistema penal, retroalimentando uma lógica de guerra interna (combate) e de destruição de vidas (de combatentes e combatidos) que precisa ser estancada. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Referências: [1] Apenas para delimitar melhor do que se trata relaciono alguns tópicos na pauta deste clamor: desejo de redução do marco cronológico de imputabilidade penal, possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado, solicitação de criminalização de diversas condutas que sequer se enquadram no conceito de ação, desvirtuamento e esvaziamento da funções das audiências de custódia, entre muitas outras. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014. Comments are closed.
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