O conceito de culpabilidade ocupou, por décadas, o centro do debate dogmático penal. Hoje esta discussão parece arrefecida. Isto não significa, porém, que se tenha chegado a um denominador comum e tenhamos um conceito homogêneo e efetivo.
O fato é que a culpabilidade acabou sofrendo as mazelas de um direito penal mecanizado, tecnicista. Significa dizer que seu manejo é feito sem qualquer preocupação com uma valoração ampla e profunda. Em geral as decisões judiciais fazem referência à culpabilidade meramente para justificar justamente aquilo que, na teoria finalista, ela veio modificar – um juízo subjetivo de subjetividades. Avaliar a culpabilidade se tornou, na prática forense, sinônimo de valorar a personalidade. Em que pese este triste cenário e desgaste do debate, cumpre aqui revisitar alguns pontos sensíveis da discussão, na tentativa de demonstrar a pertinência do contínuo estudo acerca deste conceito basilar da teoria do delito. Pretende-se ainda, de modo breve, defender uma visão que não peque por extremos, na tentativa de superar o embate entre deterministas e voluntaristas. Me valerei primordialmente das lições de Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Claus Roxin e Zaffaroni. Em primeiro lugar é necessário localizar o centro do debate. A culpabilidade, como elemento do conceito analítico de crime funciona como um juízo de reprovabilidade. Destaque-se que este juízo é puramente normativo (na teoria finalista), o que significa dizer que seus elementos não podem ser relativizados com base numa construção retórica sobre periculosidade ou finalidades preventivas exacerbadas. Dentro do juízo de reprovabilidade, em sua estrutura mais aceita, questiona-se a imputabilidade, o conhecimento real ou possível do injusto e a exigibilidade do comportamento de acordo com a norma (SANTOS, 2014:279). Esta é uma conceituação técnica, sintética, do que se entende por culpabilidade em sua modalidade normativa. O cerne do problema está na questão do fundamento da exigibilidade de conduta conforme a norma. Qual é o fundamento material, ontológico, que permite a definição de que um comportamento é individualmente reprovável? Por muito tempo se tentou sustentar que este fundamento estava alicerçado no livre arbítrio. Ocorre, porém, que a autodeterminação, a livre escolha, é um fenômeno psíquico não demonstrável. Tanto a psicologia quanto a sociologia já o abandonaram há um bom tempo. Conforme Juarez Cirino dos Santos bem destaca, no máximo hoje a psicanálise trabalha o conceito de livre arbítrio como um “sentimento” indissociável do pensamento moderno. Desta forma, não seria prudente, nem cientificamente coerente, fundar a necessidade de aplicação da sanção penal e a reprovabilidade individual sobre uma base que, de modo empírico (demonstrável), não existe. A tentativa de superação deste problema deu ensejo a toda uma séria de construções teóricas, que procuraram oferecer critérios materiais (e daí normativos) que pudessem fundamentar a culpabilidade. Não cabe aqui analisar cada uma destas. Há uma farta e interessante literatura a respeito. O que é importante destacar é que, diante do impasse, o conceito mais aceito é o da exigibilidade fundada no “poder agir diferente: o autor é reprovado porque se decidiu pelo injusto, podendo se decidir pelo direito” (SANTOS, 2014:281). Não se questiona, nesta vertente, se o agente podia concretamente, com base numa avaliação de sua autodeterminação, agir diversamente, mas hipoteticamente, com base na colocação imaginária de outro sujeito, em mesmas condições, em seu lugar. É cediço que esta construção possui brechas e dificuldades, mas por conseguir escapar do esforço metafísico de demonstração da livre vontade, acabou por ser a mais aceito na doutrina. Desta feita, o conceito normativo de culpabilidade passou a ser assim compreendido: o sujeito é reprovável porque é livre. Sua liberdade não é demonstrável empiricamente, mas a reprovação se baseará num juízo hipotético que toma em conta o raciocínio imaginativo de colocar outra pessoa (com condições análogas) no lugar do agente e questionar se esta teria agido de outra forma ou não. O ponto sensível deste modelo está no fato de que o cotidiano penal, principalmente em países marginalizados, coloca frente a frente dois sujeitos muito diferentes. O juiz, regra geral, não possui a mínima condição de sequer supor as condições reais do que significa “estar na pele” da grande maioria daqueles que tem diante de si como réus. Estes são provenientes de círculos de vida, condições sociais e oportunidades profundamente distantes das dele. Com isso, a tendência é que o “homem médio”, utilizado como critério naquele juízo hipotético, eleve a reprovabilidade a níveis indesejáveis, na contramão daquilo para o qual o conceito de culpabilidade foi instrumentalizado. Faz-se mister justificar esta última afirmação, colacionando algumas observações sobre a razão de ser do conceito de culpabilidade. A tese de que a culpabilidade serviria como fundamento da pena vigorou por algum tempo. Nesta visão, a culpabilidade atuava como instrumento de legitimação do castigo penal, do poder de punir. Pune-se porque o agente é reprovável; e porque o agente é reprovável, pune-se. Um sistema autolegitimante, então. Num Estado Democrático de Direito já não se sustenta essa possibilidade. É a partir do surgimento deste modelo de Estado que é possível afirmar a existência de um direito penal, e não meramente um instrumento legal de punição. Quando se fala em direito penal, está se apontando para um sistema de garantias (normas dos mais diversos graus hierárquicos – principiológicos e textuais) que tem por objetivo primordial limitar o poder do Estado. Assim, a culpabilidade, para que se adeque a esta concepção de Estado Democrático de Direito, passa a ser vista como instrumento de redução da intervenção estatal na esfera de liberdade dos indivíduos. Dentro desta concepção, a culpabilidade deixa de cumprir a tarefa metafísica de fundamentar o castigo, para passar a exercer o papel político de restrição ao poder de punir do Estado. Este se vê obrigado a fundamentar a punição objetivamente, obedecendo a critérios normativos, democráticos. A grande dificuldade, evidenciada na segunda metade do século XX, quanto a possibilidade de criação de um fundamento material de culpabilidade, diz respeito ao embate aparentemente insolúvel entre deterministas e voluntaristas. Para os deterministas, pautados por respeitável número de achados da neurociência, psicologia e sociologia, o livre arbítrio não passa de uma ilusão. No máximo, um sentimento consensual. Todas as nossas escolhas e decisões são influenciadas de modo determinante por forças externas, que sobre nós exercem pressão desde nossa formação intrauterina até a morte. De um outro lado, voluntaristas afirmam o contrário: que o desenrolar de todo dos eventos que nos cercam são resultado de decisões de vontade e que esta é o fundamento último de todo desencadeamento dos acontecimentos na história do mundo. Dentro destas concepções existem, como é comum, teóricos extremistas e moderados. Ainda assim, o direto penal se viu confinado a pender para alguma destas visões. Com isso, a culpabilidade nunca pode cumprir com eficácia sua função limitadora, comentada acima. Qual seria uma saída possível? Diante da impossibilidade de compatibilizar, em termos definitivos, as teses sobre culpabilidade com as visões opostas sobre liberdade individual aludidas, a solução viável parece ser enxergar na culpabilidade um conceito que admite gradações, fundando seu elemento material no princípio da alteridade (SANTOS, 2014: 285), não da necessidade. A vida em sociedade impõe a responsabilização por atos que ferem direitos alheios. A atribuição desta responsabilidade está, ao menos hoje, sequestrada ao uso da sanção penal. Diante disso, qual seria a construção de um fundamento material de culpabilidade que tome em conta tudo o que foi aqui exposto? A tese que nos parece mais viável é a da culpabilidade por vulnerabilidade, de Zaffaroni. Isso porque ela oferece uma base concreta para gradação na valoração da culpabilidade, fundada em dados empíricos: não consigo afirmar que o cidadão é livre em sentido absoluto/concreto (conceito metafísico de autodeterminação), mas consigo avaliar e estabelecer proporcionalidade diante das reais possibilidades de escolha a que este sujeito foi exposto até o momento do delito. A concretização deste modelo, com o estabelecimento de critérios quantitativos, é um trabalho que valeria a pena ser realizado. Não creio que se deva deixar que o impacto do conceito de culpabilidade (mesmo por vulnerabilidade) fique sob a discricionariedade dos magistrados. A vinculação desta avaliação à necessidade de fundamentação da sentença/acórdão poderia oferecer resultados mais precisos. O estabelecimento de elementos a que o magistrado se visse obrigado a enfrentar, como grau de escolaridade, local de habitação, ambiente familiar razoável e outros poderiam contribuir com a efetivação de um conceito de culpabilidade por vulnerabilidade prático e funcional. Não se olvida que esta tese possua pontos frágeis e apresente perigos, podendo ser até mesmo prejudicial àqueles que visa beneficiar, como tantos outros instrumentos criados para restrição do poder punitivo que acabaram utilizados com objetivos diametralmente contrários (como a teoria do domínio do fato). Ainda assim, o estudo sobre a edificação de um fundamento material da culpabilidade precisa continuar. O debate acerca da opção oferecida por Zaffaroni deve ganhar espaço na doutrina e na jurisdição. O que não pode continuar é a deformação do conceito de culpabilidade, ficando restrito ao mero cumprimento mecânico e retórico de uma etapa do jogo de cartas marcadas da sentença penal. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. Alaor Leite (org.); Luís Greco (trad.) São Paulo: Marcial Pons, 2014. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Fundamentos. La Escrutura de La Teoria Del Delito. Parte Geral. Tomo I. Madrid: Editorial Civitas, 1997. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba, PR: ICPC: 2014. TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Instituto Latino-Americano de Cooperação Penal, 1996. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. Eugênio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangelli. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. Comments are closed.
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