Artigo do colunista Iverson Kech no sala de aula criminal, vale a leitura! ''O modelo social de uma sociedade conexa perde-se por completo, substituída por um molde individualista que reitera e afirma a boa vida individual e a busca por sua experiência, excluindo o sentido de convivência em grupo.[1] Problemas como a liberdade individual e coletiva são grandes quando se entende que liberdade já é um conceito amplamente vivido por todos, quando de fato, as liberdades são colocadas à prova todos os dias, em várias partes do globo. Há um consenso de que a liberdade já está garantida e não há a necessidade de lutar por mais liberdade, ou até mesmo questiona-la''. Por Iverson Kech Ferreira ''Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas''.
Zygmunt Bauman. Trecho do livro "Modernidade líquida" Para Zygmunt BAUMAN, a liberdade individual somente pode ser produto do trabalho coletivo, e dessa forma, garantida também coletivamente. No entanto, o rumo que se toma hodiernamente segue ao contrario dessa afirmação, quando o caminho é a certa privatização dos meios de garantir a liberdade individual. Assim, ao invés de em coletivo existir o ajuizamento dos planos em prol de uma maioria, existe a crescente individualização dos valores e dos modelos. O modelo social de uma sociedade conexa perde-se por completo, substituída por um molde individualista que reitera e afirma a boa vida individual e a busca por sua experiência, excluindo o sentido de convivência em grupo.[1] Problemas como a liberdade individual e coletiva são grandes quando se entende que liberdade já é um conceito amplamente vivido por todos, quando de fato, as liberdades são colocadas à prova todos os dias, em várias partes do globo. Há um consenso de que a liberdade já está garantida e não há a necessidade de lutar por mais liberdade, ou até mesmo questiona-la. Por outro lado, o que se nota é o desestímulo geral da motivação de lutar por uma mudança, naquilo que realmente importa para que a vida tome rumos mais abrangentes, sendo privilegiada pela ampla liberdade. Há um conformismo generalizado e isso faz com que a permanência do status quo seja progressiva: “Caminhamos, porém, hoje, rumo à privatização dos meios de garantir/assegurar/firmar a liberdade individual” apenas.[2] O conformismo generalizado e a falta de aspiração são principais fatores que impossibilitam a busca por uma real mudança e que, por sua vez, escoram a situação em que se vive, sustentando-a. As ações descentralizadas, o envolvimento com tarefas que não possibilitam o exercício da reflexão e do questionamento, a privatização da utopia e a preocupação excessiva e fragmentada com os problemas pessoais; assumem com vivacidade a vida cotidiana, de modo que se torna difícil agrupar pessoas com essas faculdades e condensá-las numa força política. A perda de autoconfiança, a ansiedade, insegurança e apatia geram o desinteresse por tudo o que enseja a política ocasionando a sua exclusão da vida cívica. E os institutos, como o Direito, perdem também a sua força com isso. Tudo isso evidencia, que a falta de relevância entre as pessoas salienta o individualismo crescente onde cada um defende os seus próprios ideais e interesses[3]. Esse resfriamento das relações humanas causa a insegurança e o medo, e também, o erro de não lutar por uma causa que se defina como preponderante na vida humana, como a liberdade. Entretanto, ainda tendo esse desinteresse pelo que é público, por direitos e pela política, existe a afirmação comunitária, que se encontra quando a rotina da vida privada é quebrada por um acontecimento, como a fofoca. Algumas maneiras de enxergar o coletivo em conjunto lutando por um ideal, são permeadas por um aforismo gerado pelo espetáculo, pela mídia, pelas inseguras certezas conhecidas como especulação e maledicência. Isso faz com que haja a solidariedade, por determinado tempo, que perdure enquanto o entrave se sustentar, contra aquilo ou aquele considerado errado ou criminoso, que deve ser punido severamente. O grupo estabelecido, ou seja, a comunidade que se une em prol de uma luta contra uma discórdia disseminada e difusa encontra um inimigo mutuo, e é capaz de conectar essas pessoas que se esforçam na liquidez dos sentidos e da convivência. Destarte, na ausência de laços, a priori, concretos na vivência, temas como a segurança pública, a violência e até mesmo a fofoca; são o estimulo para a união das pessoas vazias no sentido de união social e política, agraciando-as com uma causa de fato, por intermédio de casos midiáticos de grande comoção.[4] Um dos motivos que causaram a decadência de uma segurança mutua é a diminuição do poder do Estado, onde não transmite mais a soberania política de outrora.[5] Assim, há a morte da soberania do Estado, que abre mão do seu controle para privilegiar a nova ordem mundial. Não se espera do Estado o mesmo papel de antes, este novo Estado que surge é uma máquina dependente dos processos produtivos do mundo capitalista, controlado pelos grandes conglomerados lucrativos. A associação entre o Estado e a nação está há muito sendo desfeita. Nos séculos XIX e XX, a nação e Estado situavam-se sob um mesmo entendimento e padrão, mas perderam sua autonomia diante às máquinas “mercenárias do capital”. [6] Nesse ponto, há um distanciamento entre o Estado e sua capacidade de se engajar nas exigências/demandas trazidas pela sociedade, que passa também dessa maneira a individualizar certos assuntos que antes eram prioridades do Estado, como a segurança e saúde. O sentido anterior que se vinculava ao ato de servir a nação é agora repassado ao indivíduo que precisa por si buscar sua própria segurança, e a possibilidade de se tornar cada vez mais consumidor.[7] Esse enfraquecimento estatal, causado pela ampla globalização, pelo desenfreado liberalismo e pelo considerável distanciamento do cidadão ao que significa público e político, têm, por si, seus interessados: Verdadeira novidade não é a necessidade de agir em condições de incerteza parcial ou mesmo total, mas a pressão contínua para desmantelar as defesas trabalhosamente construídas – para abolir as instituições que visam a limitar o grau de incerteza e a extensão dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforços de construção de novas medidas coletivas destinadas a manter as incertezas dentro dos limites. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza, praticamente todos os agentes institucionalizados eficientes de ação coletiva juntam–se ao coro neoliberal para louvar como 'estado natural da humanidade' as 'forças livres do mercado' e o livre comércio, fontes primordiais da incerteza existencial, e insistem na mensagem de que deixar livres as finanças e o capital, abandonando todas as tentativas de frear ou regular os seus movimentos, não é uma opção política entre outras, mas um ditame da razão e uma necessidade. Com efeito Pierre Bourdieu definiu recentemente as teorias e práticas neoliberais essencialmente como um programa para destruir as estruturas coletivas capazes de resistir à lógica do 'mercado puro.[8] Essa fragilização do Estado Nação passa então a ser parte de um estratagema de dominação do poder global, que se fortalece com o esvaziamento do poder coercitivo dos Estados nacionais, ampliando assim seu destaque, sempre em favor da garimpagem ao consumidor que o aguarda. Quanto mais insignificantes se apresentarem tais Estados, com maior facilidade o poder arbitrário das elites globais irá imperar. Essa elite é composta por grandes empresas, empresários, instituições, em sua enorme presença, pelo mercado e seus senhores. Em outro ponto, não há sentimento maior que consiga unir mais as pessoas do que a ameaça contra a vida, a segurança e subsistência. Todavia, esse inseguro sentido atinge de forma cabal o mundo do trabalho, onde antes haviam empregos duradouros nas empresas e fábricas, hoje existe a flexibilidade que exige cada vez mais uma desregulamentação dos direitos individuais do trabalhador, que se amolda às solicitações das empresas para que possa ter um contrato e seu salário ao fim do mês. A flexibilidade nas relações trabalhistas é excelente para o burguês, todavia péssima ao proletariado, destruindo os modelos tradicionais de segurança no labor. Ocorre que nos dias atuais se vive em uma estratégia de autonomia, criada pela efusiva falta de laços duradouros na convivência, que tende a ignorar questionamentos a respeito da existência e do porvir. Dessa forma, a tendência agora é agir de forma a aproveitar a vida imediatamente inflando-se com as pretensas sensações e emoções das novas experiências e inauditos prazeres, trazidos pelo mercado consumista e pelas novas tecnologias. A distração com as banalidades e futilidades da vida é método para evitar questionar e refletir sobre o dilema existencial humano, evitando responsabilidades que seriam elevadas a outros setores que não o individual. A falta de questionamento e reflexão é marcante na sociedade hodierna, o que legitima de toda forma o uso das tecnologias ao prazer individual e à busca pela felicidade, não importando causas ou consequências. O endividamento com bancos e cartões de credito, o desmatamento e poluição de rios, mares e florestas, as guerras que buscam cada vez mais riqueza e lucro perfazem o sentido da falta da reflexão do momento, da angustiante carência de questionamentos. No entanto, a motivação comunitária existe somente quando se aflora a fofoca ou a discórdia que se sobrepõe ao coletivo, uma vez que no lugar de uma coletividade social vive-se um período de individualismos que postergam a solidariedade social e dessa forma, a promoção humana. O pensamento de CASTORÍADIS[9], é de que não se deve deixar de questionar e perguntar, com intuito de criar discussões que venham a agregar ideias que façam funcionar o debate. Todavia, a busca pela comodidade e pela individualidade fez com que a sociedade vivesse em prol da demanda individual por prazer e consumo, negando as lutas passadas travadas em conveniência de uma agregação de pessoas livres e que poderiam e deveriam seguir peleando para que essa liberdade pudesse atingir o maior número de pessoas o quanto fosse possível.[10] A participação das pessoas na vida social, nas escolhas dos rumos da sociedade é um espelho daquilo que ocorre com os valores sociais considerados essenciais. Entretanto, se BAUMAN está correto quando afirma ser a perda do altruísmo e da sensação de coletividade a geradora também do sentido apolítico das pessoas, significa entender que as virtudes necessárias para o retorno das discussões que prezam o coletivo não estão mais entre nós. Desse modo, a real dificuldade em encontrar figuras que transformem e mostrem o caminho que deve ser seguido em prol do conjunto, ou seja, da real interpretação de comunidade, é uma missão áspera, e esse é um dos fatores desconcertantes, quando se constroem mais muros que pontes. Iverson Kech Ferreira Mestre em Direito pela Uninter. Advogado especializado em Direito Penal. Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Internacional. É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal. REFERÊNCIAS: Bauman, Zygmunt (2000) Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2003) Comunidade: a Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2006) Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água. ______(1999) Globalização: as Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(1998) O Mal–estar da Pós–modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2001) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2008) Vidas para consumo. Rio da Janeiro: Jorge Zahar. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011 . BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CASTORÍADIS, Cornélius. Uma sociedade à deriva. Ideias e Letras, 2006, São Paulo. ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade/ Norbert Elias e John L. Scotson. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. GOFFMAN, Erwing. Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1988. NOTAS: [1] BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2000, p. 14. [2]Em busca da Política, p. 15. [3] Os medos que cada um sente só podem ser contados, mas não compartilhados ou unidos numa causa comum com a qualidade nova da ação conjunta. Não há um caminho óbvio que leve dos terrores privatizados às causas comuns que podem se beneficiar do confronto e enfrentamento conjunto. Em busca da Política, p. 54. [3] [4] Em busca da Política, p. 18-19 [5] Em busca da Política, p.47. [6] ...sob as novas condições, a nação tem pouco a ganhar com sua proximidade do Estado. O Estado pode não esperar muito do potencial mobilizador da nação de que ele precisa cada vez menos, à medida que os massivos exércitos de conscritos, reunidos pelo frenesi patriótico febrilmente estimulado, são substituídos pelas unidades hightech elitistas, secas e profissionais, enquanto a riqueza do país é medida, não tanto pela qualidade, quantidade e moral de sua força de trabalho, quanto pela atração que o país exerce sobre as forças friamente mercenárias do capital global. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 212. [7] Em busca da Política, p. 49. [8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 2001, p. 36. [9]CASTORÍADIS, Cornélius. Uma sociedade à deriva. Ideias e Letras, 2006, São Paulo. [10] Em busca da Política, p. 09.
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