O propósito da arte é entreter, proporcionando um momento de lazer e catarse. Mas, como pode ser visto facilmente, diversas manifestações artísticas vão muito além disso, pois fazem com que quem quer que a veja, a experiencie ou interaja de alguma forma fique com um questionamento, instigando para uma reflexão posterior.
O filme Beleza Americana retrata bem uma sociedade de abusos. E não estamos falando de Kevin Spacey, mas um abuso de proporções globais: o da própria natureza humana. Ao retratar a vida de uma família norte americana aparentemente comum, também traz uma série de questões não resolvidas de cada um de seus personagens, combinando-os para que se delimite um estilo de convivência vazio. Assim, a típica “família feliz americana” é permeada por conflitos internos que refletem no dia-a-dia. Logo de início, o personagem principal já declara seu fim, dizendo que, em menos de um ano, estará morto e que, de certa forma, já se considera uma pessoa neste estado. Essa constatação já denota uma crise interna e mostra alguém com uma vida afetivamente seca, sem habilidade suficiente de abstração, que é descrita por Trindade e Trindade ao falar de Lester: “sua monotonia, seu riso passivo e quase bobo, sem expressão para nada-além, simboliza tudo aquilo que pode ser definido como simplesmente comum e mediano”. Com ele, identificamos a esposa Carolyn que o infantiliza, não lhe dá crédito e não o leva a sério, mas que é uma pessoa que também evidencia mais as aparências que o conteúdo. Internamente, passa e entender que tem no marido todas as desculpas por seu fracasso como mulher. Além disso, a filha Jane, adolescente, não tem o pai como uma figura de identificação, pois também o considera um derrotado, não alimentando qualquer tipo de vínculo entre eles. Nessa dinâmica familiar, percebemos um pai que tem sua função cada vez mais apagada e uma mãe totalmente alienada ao que acontece de fato em casa. Essa estrutura é caracterizada pela ausência dos progenitores e tem uma grande influência na filha, uma jovem que não tem características marcantes em sua personalidade, já que as figuras tanto paterna quanto materna estão presas em sua própria história narcisista. Baixa auto estima, confusão e desamparo são notados em suas decisões e ações. A situação não melhora quando ela chega em casa com sua melhor amiga, que, quase instantaneamente, tira Lester de seu limbo pessoal, pois desperta um interesse e desejo nele de forma que as consequências disso não são consideradas, deixando a filha cada vez mais excluída e não merecedora de sua atenção. É preciso um fator externo, a amiga Ângela, para introduzir uma quebra de padrão que irá testar cada personagem, mas que, por fim, reforçará determinados comportamentos, apresentando uma chance de mudança apenas para a filha, praticamente. Esse tipo de “família feliz” é apresentado de maneira bastante didática no filme, mostrando os detalhes de seus componentes, de forma que não podemos deixar de perceber a possibilidade de repetição desses padrões não somente na sociedade norte americana, mas em qualquer sociedade atual. É mostrado um sistema familiar com pessoas “vazias”, que se relacionam de maneira precária afetivamente, e que, justamente por causa disso, Beleza Americana acaba por prender de forma única a quem assiste. Não é só pelo fato de que Lester anuncia sua morte nas primeiras cenas que ficamos curiosos para saber o que motivou o desfecho, mas esse reflexo de família e seus comportamentos que nos cativam. A transformação que Ângela, a personagem que mais personifica essa vida de aparências, representa no desenrolar da trama é imprescindível para que o filme passe de uma premissa comum para uma das melhores obras cinematográficas de 1999. Pensando nisso também, podemos detectar que a época não altera a percepção do estilo, sendo que encontraríamos semelhante situação tranquilamente nos dias de hoje, e que chamaria a atenção tanto quanto um filme de sucesso, mas não o suficiente para tentarmos mudar algo nesta triste realidade. Tal história poderia acontecer com um vizinho, um amigo de algum parente, e ficaríamos igualmente ávidos por saber o desfecho. Independente da origem, um forte complexo paterno que aprisiona sua prole, onde o pai é tipicamente narcisista e não consegue reconhecer o filho como um outro e uma mãe que enxerga apenas imagens e não aquilo que é palpável (VETORAZZO, 2017)... não é uma imagem tão difícil de se imaginar atualmente. E quem sabe essa dinâmica nos interesse tanto, pois podemos nos ver, talvez muito, talvez pouco, em alguns desses personagens. Mas ainda podemos direcionar nossas vidas para um final como o de Jane ou como o de Lester. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS Trindade, Jorge. TRINDADE, Laetitia M. Beleza Americana: comentários psicológicos. Disponível em: <http://www.telacritica.org/ArtigoTelaCriticarevista9_BelezaTrindade.htm> Acesso em: 12 nov. 2017. VETORAZZO, Sophia. Análise do filme Beleza Americana. Disponível em: <http://www.pucsp.br/jung/portugues/publicacoes/analise_beleza_americana.html> Acesso em: 12 nov. 2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |