Entre outras variáveis o que demarca um “Pensador” é sua extemporaneidade. É a paradoxal condição de pertencer a um determinado tempo e, concomitantemente, de afastar-se de seu tempo como possibilidade de interpretá-lo, analisá-lo e procurar compreender determinados aspectos que o constituem. A potência do pensamento de um pensador, ao olhar as obscuridades do próprio tempo, em plena luz do dia, o torna estranho aos seus contemporâneos. Incompreensível para a maioria. Arduamente refutáveis pelos seus pares e, pelos ideólogos do status quo.
Quando a partir de meados dos anos 90 do século XX, o filósofo jurista Giorgio Agamben (1942...) anuncia o permanente estado de exceção em que se encontram as sociedades ocidentais, senão mundiais e, que por decorrência de tal condição, o campo de concentração tornou-se o paradigma ontológico da ocidentalidade, sobretudo na contemporaneidade não lhe faltaram, nem lhe pouparam as críticas. Afirmavam alguns que a democracia liberal havia vencido. A queda do Muro de Berlim (do regime socialista soviético) era a prova inconteste do “fim da história” anunciado por Francis Fukuyama. Um mundo globalizado, ancorado nos valores da democracia liberal de mercado, senão financeirizada, prometia ao mundo prosperidade. Enfim, a utopia da liberdade de iniciativa, de empreendedorismo, de fazer-se a si próprio, chamada de self-fulfilling prophecy por Robert K. Merton, estava a caminho a passos largos. Noutras épocas e tempos as tempestades se manifestavam localmente com a possibilidade de se estender internacionalmente. Neste ínterim, do local ao internacional, havia condições de se prevenir contra os riscos e as consequências de tais tempestades. Porém, num mundo globalizado, que comprimiu o tempo e o espaço compartilhando diuturnamente suas contradições, as tempestades e suas intensidades se apresentam cada vez mais ameaçadoras. Tensões e conflitos se intensificam. Diametralmente oposto ao anunciado após a vitória da economia liberal de mercado, nega-se a povos e comunidades o pleno exercício de se fazerem por si próprios, de exercerem sua soberania na definição das bases e dos rumos de seu desenvolvimento. “Davos é quem dá as ordens”. Sob tais condições e sob a égide do discurso de afirmação e garantia da democracia e de suas instituições, constata-se o avanço do pensamento político reacionário que suspende direitos e lança na insegurança jurídica os cidadãos-consumidores, nos planos local, nacional e global. Parafraseando o primeiro parágrafo do “Manifesto Comunista” publicado por Marx e Engels em 1848: “Um espectro ronda o mundo, o estado de exceção”. Culpa da esquerda? Da social democracia? Excesso de direitos? É a manifestação do niilismo (Nietzsche)? É o ódio à democracia (Ranciére)? É a crise da democracia? O que está acontecendo? Onde foi que nos equivocamos? Como passamos de uma condição de afirmação de plenos direitos a uma condição de insegurança jurídica? “A regra não explica nada, a exceção explica tudo” (Carl Schmitt). Agamben demonstra, à luz das contribuições de Schmitt e de Walter Benjamin, de que no fundamento da instituição do direito (do ordenamento jurídico) o que reside é a violência. Na afirmação do direito reside a garantia do próprio direito. Ou, dito de outra forma, na afirmação do direito reside a possibilidade do exercício da violência por parte do poder que o institui e, na razão inversa, a destituição da possibilidade do exercício do poder sobre àqueles em se institui o direito. Nesta direção, Agamben demonstra que o estado de exceção é inerente, é constitutivo do direito (ordenamento jurídico), do exercício do poder por parte daquele que exerce o poder soberano, o poder de determinar a vida e a morte. A manutenção da violência do poder pressupõe a constante afirmação do estado de exceção. Sob tais pressupostos é possível compreender o que significa a assertiva de que estamos em permanente estado de exceção. Vinte nove anos após a promulgação da Constituição de 1988, é flagrante a insegurança jurídica que assiste à sociedade brasileira. Conduções coercitivas, delação premiada, vazamentos de informação e de ligações, caçada político-jurídica perpetrada por juízes e procuradores de primeira e segunda instância, decisões oportunistas pelo Supremo Tribunal Federal, exposição à opinião e linchamento público de suspeitos desconsiderando o princípio da presunção da inocência são alguns indicadores da suspensão da norma e a operacionalidade do estado de exceção por parte do poder judiciário. Ademais, a efetivação de um estado de exceção avança sobre o parco estado de bem-estar social constituído a duras penas após o regime militar, retirando direitos sociais, entre eles os direitos trabalhistas, e promovendo o discurso do desmonte dos direitos à saúde, à educação de qualidade, à previdência, dentre outros direitos ameaçados. O desafio que nos assiste à compreensão de que estamos em estado de exceção permanente é o reconhecimento de que, aquilo que se anuncia nos discursos cotidianos como democracia, é estratégia de legitimação do estado exceção como necessidade premente, frente às exigências do poder soberano (economia financeirizada global), e, sobretudo neste contexto, de que somente a ação comum (política) dos indivíduos-cidadãos comprometidos com o mundo poderão propor um direito puro, destituído da violência originária que lhe é constitutiva. Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas Mestre em Educação e Cultura Graduado em Filosofia Professor titular de filosofia da Universidade do Contestado Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional Luiz Eduardo Cani Professor na Universidade do Contestado Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado Advogado e consultor jurídico Comments are closed.
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