“Ensaio Sobre a Cegueira” é um famoso romance do notório escritor José Saramago. Provavelmente sejam poucos os que não conhecem a história, seja pelo contato direto com a obra, seja pela adaptação para o cinema que o livro recebeu, seja ainda por se ter ouvido falar sobre o angustiante enredo. Saramago, em seu brilhante estilo típico de escrita, transmite as reações da humanidade às diversas privações sofridas ao longo da obra. Sem a visão, a sociedade vê o mundo aos seus pés ruir. Não há um direcionamento, já que as vozes dos líderes que buscaram conter de alguma forma a praga acabaram se vendo assoladas pelo mesmo mal. O homem se transforma numa criatura de puro instinto, rompendo com a moral, os costumes, o respeito e a dignidade. O direito não tem mais espaço neste caótico mundo. Culpa da cegueira branca ou da inexistência de qualquer estabelecimento de base moral sólida e concreta no indivíduo que sempre esteve presente? Seria o direito, sob tal perspectiva, uma forma de contenção do arbítrio imanente do ser humano? Na obra em questão, diante de várias adversidades, o homem se transforma num verdadeiro animal. As formalidades de condutas e modos de se portar frente aos outros acabam. O respeito simplesmente desaparece. Poucos são aqueles que tentam se agarrar num mínimo de dignidade e respeito ao próximo enquanto também lutam para sobreviver, a saber, justamente os personagens que mais ganham destaque na obra. O médico, a mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o velho da venda preta, o rapazinho estrábico: o autor faz a diferenciação de personagens de acordo com suas características, de modo que não há qualquer menção de nomes em toda a obra. Cada qual exerce o seu papel na história, corroborando direta ou indiretamente pela manutenção do grupo. Mesmo naqueles que são vistos como “os bons” (digo aqui numa dicotomia clássica de “bem x mal”), o mal consegue lhes atingir. Tome-se como exemplo a traição do médico: um dos pontos altos do livro que demonstra a perseverança da mulher do médico na esperança da superação do problema que os aflige. “Homo homini lupus”: poderia a obra também ser lida como uma confirmação da sentença popularizada por Hobbes? Os necessários regramentos determinados pelo convívio em sociedade, via direito, se tratam de condição necessária para frear os ânimos imoderados de cada ser? O livro é um tanto quanto pesado em seu clima transmitido. É uma história narrada de forma nua e crua. Sem nuances de eufemismos, a brutalidade dos diversos episódios que vão sendo contados no decorrer da trama é sentido na alma pelo leitor. O enredo é dito de maneira direta, suja, dolorosa. Não há espaço para estômagos fracos. A Leitura choca, sendo tal a intenção de Saramago, o qual pontuou na ocasião de definir seu livro:
E assim o é. A aflição permeia o espírito do leitor do início ao fim da obra. Choca-se de maneira pontual, sendo necessário para que a mensagem transmitida seja absorvida pelo leitor. Mas e diante de toda a história carregada constante na obra, a que conclusão o leitor pode chegar após o término da leitura? Podemos ter alguns pontos de vista, porém, foquemos neste momento naquele que mais se assemelham em tais análises. O homem, quando num estado de tremenda dificuldade, tal como na obra, perderia toda a sua civilidade? O direito perderia razão de o ser? Observamos em diversas obras pós-apocalípticas que o desespero sempre assola a humanidade, de modo que “humanidade” acaba perdendo um de seus sentidos semânticos. A civilização cede, transformando-se em ruínas. Em “Ensaio Sobre a Cegueira” não é diferente. Num primeiro momento, com a sociedade já assombrada pelo desespero da cegueira branca que acomete cada vez mais pessoas, são feitas tentativas de pelo menos conter a situação até que uma medida mais efetiva possa ser estudada e eventualmente posta em prática. O agir sem pensar (até mesmo diante da falta de tempo para pensar – será?) resulta no enclausuramento forçado de indivíduos, os quais passam a ser tratados como doentes infecciosos, sendo tremendamente perigoso qualquer tipo de contato. Pudera, dado o fato de que ninguém sabe explicar a provável causa, motivo, forma de transmissão da moléstia ou mesmo em que consistiria o mal da cegueira branca. Na sequência, todos os demais acabam sendo acometidos pela mesma cegueira. Deixam de existir “cuidadores” e “observados” (numa perspectiva foucaultiana), passando todos a fazer parte do mesmo time. O abandono gradual até que estejam todos por conta resulta no aumento do desespero, porém, ao mesmo tempo, numa sensação maior de liberdade. Ora, antes estavam todos reclusos, confinados num estabelecimento arranjado às pressas para manter os doentes cativos. Depois, não havendo mais soldados para manter os primeiros doentes presos, puderam os outrora reclusos romper os muros que os cercavam rumo à liberdade. Mas que liberdade? Seria tal uma liberdade plena, considerando como o grupo que se manteve unido encontrou o mundo? Desolado e sem controle. Abandonado e entregue ao caos. Pior, a cegueira branca permanecia vigente. Ao menos o grupo contava ainda com a ajuda da única mulher que não fora tomada pela supressão da visão. Um mínimo de esperança ainda se tinha, já que o instinto de sobrevivência ainda permanecia latente em todos os membros daquele grupo. Tem-se assim uma visão cruel de mundo. Bastou a limitação de um sentido essencial do homem para que a sociedade como um todo rompesse. Não havia mais contrato. Não havia mais direito. Não havia mais paz, mesmo que aparente. Poucos foram os que se mantiveram resolutos. Alguns se entregaram ao desespero da nova vida, outros viram a oportunidade para mostrar o seu lado vil (ou apenas mantiveram a ausência de caráter como sempre o foi). A esperança era uníssona: voltar a enxergar. Mas quando? Os que se comprometeram em estudar o fenômeno e encontrar uma cura (ou pelo menos uma resposta) foram afetados pelo mesmo mal. Ainda podia se falar em esperança? Ou tal permanecia intacta, ou esta foi substituída pela esperança de sobrevivência, ou seja, apenas o instinto ainda dominando o espírito dos sobreviventes. A mensagem é tal. Dura, cruel, sofrível, terrível. Assim como a história. Há outros pontos de vista, outros aspectos e outras complementações que merecem ganhar corpo para corroborar para com o diálogo. Estão por aí e devem ser vistos em conjunto com os demais, assim como o presente, cujo texto buscou evidenciar a parte mais perceptível da obra, a que mais aflige, a que mais causa desespero. O mundo como é, ou como seria numa situação hipotética como a do romance. Nossas bases éticas e morais, de respeito, de conduta e de convívio em sociedade possuem um limite que se transpassado simplesmente ruiriam e deixariam de existir? Em qual dos grupos visto na história nos enquadraríamos? A base moral seria a mesma ou teria motivo para que assim fosse? O que deveria falar mais alto em tal situação? Até que ponto o direito influencia concretamente na limitação do poder? Pensemos... Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia BIBLIOGRAFIA CONSULTADA SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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