O ano é 1842. Entre 25 de outubro e 3 de novembro, um jovem de 24 anos, se identificando como “Um renano”, publica uma série de artigos, onde, entre outras coisas, se dedica a tratar das discussões ocorridas, no ano anterior, na Sexta Dieta Renana (uma espécie de órgão parlamentar da região do Reno, oeste da Alemanha). Na ocasião, discutia-se a criminalização da coleta de madeira pelos mais pobres, o que, até então, não passava de um de seus direitos consuetudinários.
À época, a Dieta aprovava uma proposta pela qual o valor do prejuízo causado ao proprietário florestal, em função da subtração da madeira, deveria ser fixado pelo guarda da propriedade, que, em geral, era o responsável por capturar os delinquentes e realizar a denúncia do fato. O fundamento para tanto era que o funcionário gozava de “fé-pública” em suas declarações. Sobre o assunto, em uma de suas análises, o jovem renano disse:
O excerto acima pertence ao artigo “Debates sobre a lei referente ao furto de madeira”, escrito por Karl Marx, o jovem renano, e publicado no 300º número do periódico “Rheinische Zeitung”, em 27 de outubro de 1842. A contemporaneidade de suas reflexões é assustadora, enquanto os paralelos com as práticas da justiça criminal se tornam evidentes. Conceitualmente, não nos aprofundando em seus aspectos políticos, nem em sua função de legitimação da pena, podemos determinar que o processo penal é um instrumento de retrospecção de fatos que ensejaram a captura do cidadão pelo Estado, no exercício de seu poder punitivo. Desta forma, o mesmo se constrói, essencialmente, pelas provas colhidas em seu curso ou, então, pelos elementos de informação, extraídos das investigações preliminares. Eugênio Pacelli ensina que:
Com efeito, tais provas são os materiais que permitem a reconstrução histórica dos fatos, permitindo a verificação das hipóteses através da edificação da narrativa processual, almejando convencer o juiz[3]. A fim de efetivar esta função, a lei processual penal admite o uso de diversos instrumentos probatórios, dentre os quais convém destacar a via testemunhal, estabelecida no artigo 202 do Código de Processo Penal. Tais dinâmicas de produção probatória integram a série de mecanismos que irão compor a situação jurídica processual. Estes, por sua vez, nada mais são que “mecanismos que nós, seres humanos, utilizamos para prender nossos semelhantes dentro de jaulas”[4]. A experiência não poderia ter-nos demonstrado maior sucesso neste fim, já que contamos com 726 mil pessoas encarceradas. Cabe mencionar que, desta população total, 151.782 dos detentos têm sua custódia motivado pelo crime de tráfico de drogas, o que é alarmante quando se compara às 35.155 pessoas encarceradas por furto simples, ou, ainda, às 52.236, que foram condenadas e presas por roubo simples[5]. Com isto se percebe que boa parte dos esforços do sistema penal brasileiro, se direcionam à repressão um tipo penal que não se constitui pelo uso da grave ameaça ou da violência, seja própria ou imprópria. Em verdade, este possui natureza consensual, se tornando violento, apenas, após a intervenção criminalizante do Estado. Sem prejuízo, o crime mencionado ainda possui vítima imaginária (a saúde pública), o que, junto aos outros fatores, colabora à construção de um cenário onde o substrato probatório é profundamente limitado, fazendo com que a prova testemunhal passe a deter grande relevância, se convertendo na base da imensa maioria das sentenças condenatórias[6]. Indo mais além: em vistas à atividade ostensiva, repressiva e de preservação da ordem pública (artigo 144, §3º da Constituição Federal) realizada pela Polícia Militar, as testemunhas cuja palavra é utilizada à aplicação da sanção, com gigantesca frequência, são, justamente, os Policiais Militares que acompanharam o acontecimento criminoso. O relatório final da pesquisa sobre as Sentenças Judiciais por tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio De Janeiro, realizada pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro demonstra que, na análise de 2257 (dois mil duzentos e cinquenta e sete) processos em que houve a condenação total dos réus, cerca de 65,35%, ou seja, 1457 deles, foram principalmente baseada na palavra dos Agentes de Segurança[7]. De modo geral, o argumento utilizado para legitimar a utilização do testemunho de policiais militares que diligenciaram o injusto objeto de julgamento, como fundamento de uma decisão condenatória, circundam duas assertivas: (a) a não delimitação, por parte do CPP, de quem pode ou não ser testemunha; e (b) o fato de gozarem, as declarações das autoridades, de presunção de veracidade. Quanto à primeira assertiva, deriva daquilo que prevê o artigo 202 do Código de Processo Penal. Este, em reação ao Código de processo criminal, de 1832, que impunha uma série de restrições à possibilidade de serem, as pessoas, testemunhas[8] (impedindo, por exemplo, aos escravos, de ocuparem a posição), dispôs “Qualquer pessoa pode ser testemunha”. Contudo, isto não significa que as autoridades policiais não sejam infectadas pelos fatos, devendo ter sua palavra posta à contraprova, em especial quando pensada sua atuação na concretude do sistema penal latino-americano e, mais especificamente, brasileiro. Há uma relação de interesse evidente entre o policial e a causa para a qual serve de testemunha. Ao mesmo tempo, há a influência sofrida pelo modus operandi das polícias (e o papel que estas cumprem no sistema punitivo), que atuam reproduzindo as distorções do tecido político que lhe dão causa, abdicando da legalidade que formata a criminalização secundária, o que leva à necessidade de um discurso que distorça os fatos para que se adequem à racionalidade que os tornariam legítimos. Não por outro motivo a realidade nos informa sobre a atuação arbitrária destes órgãos repressivos, com altos índices de abusos de poder e violação dos direitos individuais. Tudo isto torna evidente que “o envolvimento do policial com a investigação gera a necessidade de justificar e legitimar os atos praticados"[9], por mais escusos que estes possam vir a ser. Tal qual o segurança florestal que, no início do século 19, assumia papel central no modo como os julgadores determinariam o destino do delinquente, o policial-testemunha, ao defender a legalidade de sua ação, defende seu próprio valor, atuando num juízo de si, o que, muitas vezes, se traduz numa supressão dos fatos ou, até mesmo, criação destes. A segunda assertiva, em seu turno, avança por sobre a constituição subjetiva do agente e sua relação com a realidade, ingressando no campo das premissas jurídicas manipuladas à construção do alicerce exigido à validação de suas declaração, que, à mesma medida, se revelam insuficientes no trato com a realidade. Afirmar que o policial goza de presunção de veracidade mantém uma conexão lógica com o fato de serem, os atos de administração pública, constitucionalmente comprometidos com a boa-fé e probidade, o que lhes cede a dita presunção, derivada, por óbvio, dos princípios que informam sua existência, resguardados no bojo do direito administrativo. Contudo, conforme ensina o professor Salo de Carvalho, esta compreensão confunde vigência com validade, conceitos assimétricos e independentes:
Ao determinar que o depoimento de policiais são o suficiente para que se motive uma condenação, o poder judiciário afirma que os atos destes são, por sua mera existência formal, válidos. Ocorre que sua mera subsunção aos mecanismos legais necessários à sua existência formal (vigência), não são capazes de fazer-lhes corresponder aos princípios constitucionais de moralidade e impessoalidade. Assim, não há sua automática validade, em especial no caso do sistema punitivo que nunca se mostrou vinculado à legalidade, utilizando-a, apenas, como um discurso legitimador de sua incidência, mas, não, como um instrumento limitador de sua atuação. Rememora-se, à este respeito que:
Desta forma, o processo penal, como instrumentalização da forma de violência aceita – e formalmente monopolizada – pelos órgãos oficiais, legitima o encarceramento seletivo e os processos de violência estrutural, perpetuando a estrutura de classes sob a falsa percepção de defesa da sociedade como um todo (simbolizada na tutela da saúde pública), quando, em verdade, não passa da “expressão de um poder de classe.”[12], que estabelece os bens e valores tutelados de acordo com sua conveniência. A questão atual é diretamente semelhante àquela que inaugurou este texto. Não apenas pelo impasse que se constrói no ânimo do agente de segurança, mas, também, pelo valor que se atribui à palavra deste. Se, naquela oportunidade, através da compreensão de que o funcionário florestal era “perito, cujo veredicto obriga o tribunal”[13], a pobreza era criminalizada, em razão dos atos que só praticava por ter sido expurgada da propriedade fundiária, atualmente, do mesmo modo, ainda se busca criminalizá-la; porém, nestes tempos, os argumentos jurídicos dos quais se dispõe apresentam-se mais afinados, fundados em novas teorias e proposições. Todavia, como nos velhos tempos, ainda são elencadas, como justificação ao encarceramento e à incidência da violência estatal, práticas que apenas se tornaram próprias da pobreza em função de sua miséria, fixada por um expurgo em muito semelhante àquele que, há séculos, a antecedeu, como tragédia. Gabriel Coimbra Rodrigues Abboud Advogado no Estado de São Paulo Graduado em direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF) Caio Luís Prata Graduando em Direito pela Faculdade de Educação São Luís, de Jaboticabal – SP. Referências ENGELS, Friederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN – Junho de 2016. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2016. MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. 1ª ed. São Paulo. Boitempo Editorial, 2017. Parecer “Depoimentos Policiais e Regras de Experiência no Juízo de Tipicidade dos Crimes dos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06: o caso Rafael Braga”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-rafael-braga.pdf . Relatório final da pesquisa sobre as Sentenças Judiciais por tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio De Janeiro, realizada pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Carolina Dizimidas Haber. p. 36-37. Disponível em: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf . TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. Madrid, Trotta, 2002. [1] MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. p. 86-96. [2] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017.p. 174. [3] TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. Madrid, Trotta, 2002. p. 83. [4] BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Rio de Janeiro: Editoria Lumen Juris, 2003 [5] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN – Junho de 2016. p. 41 [6] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 345. [7] Relatório final da pesquisa sobre as Sentenças Judiciais por tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio De Janeiro, realizada pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Carolina Dizimidas Haber. p. 36-37. Disponível em: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf . Acesso em: 25/08/2018. [8] Art. 89. Não podem ser testemunhas o ascendente, descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo gráo, o escravo, e o menor de quatorze annos; mas o Juiz poderá informar-se delles sobre o objecto da queixa, ou denuncia, e reduzir a termo a informação, que será assignada pelos informantes, a quem se não deferirá juramento. [9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I, fl. 642 [10] Parecer “Depoimentos Policiais e Regras de Experiência no Juízo de Tipicidade dos Crimes dos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06: o caso Rafael Braga”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-rafael-braga.pdf . Acesso em 27/08/2018. p. 11 [11] Ibidem. p. 14. [12] GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006. p. 36. [13] MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2017, p. 94. Comments are closed.
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