A Constituição Federal, em seu art. 5º, XLVI, estabelece que a necessidade de individualização da pena aplicável em decorrência de ilícito penal, atribuindo à lei infraconstitucional a obrigação de realizar o delineamento para esta aplicação individualizada da sanção criminal.
O art. 59 do Código Penal determina, por sua vez, critérios gerais a partir dos quais o juiz elabora a primeira fase de aplicação da dosagem da pena, dano vida ao mandamento constitucional de individualização. Ocorre que, ao elencar estes critérios, o legislador lançou mão de conceitos que trazem para dosimetria da pena dois sérios problemas: um primeiro deles tem que ver com o esvaziamento do juízo de culpabilidade, realizado na fase de determinação da existência de ilícito culpável, segundo os elementos de teoria do delito. Mais do que causar uma dupla valoração negativa (bis in idem) de circunstâncias ou características, estes elementos terminam por relativizar o juízo de recebimento da denuncia ou de necessidade da reprovação penal, uma vez que permitem a confortável posição de se afirmar levianamente a culpabilidade, para simplesmente mitiga-la com reduções no quantum de pena. Para além deste problema, nota-se que estes elementos, abaixo indicados, dão vazão a uma forma de “culpabilidade por condução de vida”, defendida por Mezger, não coincidentemente o penalista mais influente da Alemanha nazista. Esta percepção da culpabilidade não apenas funda o direito penal de autor, mas faz com que o juízo sobre a ilicitude antecipe de modo quase absoluto a punibilidade, uma vez que a culpabilidade é aferida como resultado lógico do ato contrário ao direito posto. Quem pratica um ilícito é presumidamente culpável neste modelo. O ônus de demonstrar a reprovabilidade da conduta é quase nulo, sendo repassado ao acusado a necessidade de demonstrar sua antítese, ou seja, de provar sua inocência. Neste diapasão, é interessante notar que o direito penal democrático deve estar adstrito à sua função preventiva, sem se arrogar à posição de “gestor da moral” ou “ortopedista” de valores internos dos cidadãos. É digno de nota que, diferente do cânone bíblico, a lei penal não é redigida a partir de imperativos morais, como “não mate”, “não furte”, “não lesione”. O que se determina com a lei penal são as consequências previsíveis caso a pessoa decida atuar do modo como descrito na lei. Como se a norma penal dissesse: caso mate, esteja disposto a sofrer a seguinte consequência, imposta pela sociedade, consubstanciada no Estado – pena de tanto a tanto. Isso é relevante na medida em que aquele que decide pelo cometimento do delito e sofre a pena prevista, enquanto se submeter a estas, permanece tendo seu direito de nutrir os valores morais, de si para si, que bem entenda. É dizer que, se aquele que matou considera que agiu corretamente em sua percepção interna, para o Estado pouco importa, desde que se submeta à sanção aplicável. Não quer dizer que a lei penal seja criada simplesmente com fins retributivos, como puro castigo pelo cometimento do injusto penal. Atribui-se a ela, como tarefa precípua, a função de prevenir delitos mediante ameaça de sanção. Porém, o que se quer destacar neste momento é que a aplicação da pena não poder operar uma espécie de “juízo final” do acusado, como se submetesse o mesmo a um balanço geral sobre seu caráter, índole ou valores internos. Qualquer direito penal moldado neste sentido gerará atrozes injustiças, como a história não nos permite esquecer. Diante disso, mostra-se periclitante a permanência, em nosso código penal, especificamente no art. 59, de critérios como a avaliação da “culpabilidade” (aqui completamente subjetiva), da “personalidade”, dos “motivos” e da “conduta social” do agente para dosimetria da pena. São inúmeros os exemplos que podem ser colhidos na jurisprudência afim de demonstrar que estes elementos acabam por permitir ao magistrado a imposição de seus valores, sua visão de mundo, sua avaliação subjetiva daquele a quem precisa determinar o castigo penal. Partindo desses apontamentos, três conclusões parecem cabíveis, ainda que a análise tenha sido suscitada de forma bastante breve: a primeira diz respeito à ilegitimidade de agravamento da pena com base na personalidade, na conduta social e nos motivos supostamente aferidos na análise dos fatos contidos na denúncia. A segunda, decorrente da primeira, diz respeito a impossibilidade de uso destes elementos para concretizar o juízo positivo de tipicidade, como é feito pelos tribunais ao analisar a aplicabilidade do princípio da insignificância. Por derradeiro, afirma-se que é preciso revisar o impacto que a reincidência possui em nosso sistema de “justiça” criminal, seja na fase de imputação (sacada como elemento de prova), seja na análise da culpabilidade como pressuposto de punibilidade, seja na condição de agravante da pena (art. 61). A individualização da pena é uma garantia constitucional, voltada a permitir que a sanção não seja instrumentalizada como meio de controle de grupos determinados. Funda também um direito penal de culpabilidade, na medida em que a sanção penal prescinde de responsabilidade subjetiva e deve ser aplicada de acordo com a reprovabilidade social da conduta. Não pode, porém, servir de álibi argumentativo para agravar a situação do réu, deturpando a garantia e deformando-a para transforma-la em critério de agravamento do castigo. No final, a questão será: teremos um dia a maturidade necessária para aplicar um direito penal voltado a condutas e não a autores? Superaremos um dia, realmente, a pretensão de usar o direito como meio de regulação moral? Até aqui não deu certo. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado Referências consultadas: BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlças, 2015. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6ªed. Curitiba, PR : ICPC, 2014 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão; teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2003. TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. ZAFFARONI, Eugenio R; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Comments are closed.
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