Artigo de Isabela Bueno no sala de aula criminal, sobre a verdade real e a discursividade no âmbito jurídico, vale a leitura! "Seria a “verdade real”, portanto, possível de ser alcançada? A(s) narrativa(s) contida(s) dentro do processo pode(m) atingir uma verdade correspondente? No que concerne à própria sentença dada pelo juiz ao final do processo, considerada enquanto fruto da representação narrativa dos fatos do passado, qual o seu grau de correspondência com a “verdade real?''. Por Isabela Bueno “Não há uma resposta unívoca sobre a verdade: numa palavra, ela é inteiramente problemática”
(Fernando Gil) “O objetivo básico do processo é determinar a verdade”. A frase proferida pela Suprema Corte estadunidense no caso Tehan vs. Shott, em 1966, reflete o ideal norteador do instituto do processo penal como revelador da verdade. Trata-se de uma tentativa de legitimar a prática jurídica a partir de uma pretensa determinação dos elementos da verdade trazidos para dentro do processo, cujo objetivo seria o de justificar o exercício do poder penal. Tal percepção acerca da verdade recebeu a denominação de “verdade real”, enquadrando em seus moldes a dita “realidade” e trazendo-a para dentro do discurso jurídico. Há de se considerar, porém, que a produção da verdade no processo é feita a partir da reconstrução narrativa dos rastros do passado – narrativa essa que se molda e se produz a partir da produção de provas, sejam elas de natureza pericial, oriundas de interrogatório, confissão, testemunho, documentos, etc. Seria a “verdade real”, portanto, possível de ser alcançada? A(s) narrativa(s) contida(s) dentro do processo pode(m) atingir uma verdade correspondente? No que concerne à própria sentença dada pelo juiz ao final do processo, considerada enquanto fruto da representação narrativa dos fatos do passado, qual o seu grau de correspondência com a “verdade real”? A breve problematização da busca pela verdade real no processo penal apresentada no presente texto possui o objetivo de sedimentar o solo para uma reflexão sobre a função da verdade dentro desse contexto. Intenta-se compreender os limites do alcance da verdade dentro das práticas jurídicas, entre elas o processo penal, considerando-as suscetíveis a falsos testemunhos, sentenças condenatórias injustas, falhas – propositais ou não – nas reconstruções fáticas, entre outros elementos que tornam turvas as relações entre o verdadeiro e o falso. Para isso, primeiramente, buscaremos explanar com mais propriedade o problema que acompanha o termo “verdade real” e sua busca dentro do processo penal, de maneira a repensar os limites discursivos da narrativa jurídico-penal como portadora incontestável da verdade. Após esse momento, utilizar-nos-emos dos escritos de Foucault (2003) para fomentar nosso entendimento sobre a verdade como forma de conferir poder a certos discursos e narrativas para, por fim, de maneira experimental, pensar um discurso liberto das amarras da “verdade real” ou da “objetividade”, a saber, a ficção. O problema da “verdade real” no processo penal Bettiol (1973, p. 250) caracteriza o processo penal como regido por uma lógica correspondente ao real, que brota do que definem como “fatos”, e ainda que: Em razão da intensidade com que se anseia pela busca na verdade no processo penal, podemos dizer que um princípio fundamental do processo penal é o da investigação da verdade material ou substancial dos fatos em torno dos quais se discute, para que sejam provados em sua subsistência histórica, sem obstáculos e deformações. Isso faz com que o legislador tenha que eliminar do código toda limitação à prova e que o juiz tenha que ser deixado livre para formar seu próprio convencimento. Ocorre que a perspectiva dogmática do discurso jurídico-penal que carrega consigo a busca pela “verdade real” pouco ou nada leva em conta seu próprio limite, a saber: a impossibilidade de se atingir uma verdade, a partir da produção de provas e da reconstrução de narrativas, correspondente ao fato concreto que se busca julgar. Sob esse prisma, o conceito de verdade englobado pela nomenclatura de “real”, “material” ou “substancial” resguarda em si mesmo um artifício argumentativo inteiramente falacioso (KHALED JR., 2016, p. 164), ao passo que conserva uma pretensa postura de cientificidade que conecta diretamente a verdade à neutralidade e à correspondência estrita entre o que aconteceu de fato e o que o processo supostamente teria verificado. Paradoxalmente, o emprego desse entendimento, conforme nos ensina Prado (apud KHALED JR., 2016, p. 18), acabou por contribuir para aquilo que, em tese, tentaria afastar: práticas inquisitórias, autoritárias e excessivamente punitivistas. Nas palavras do professor: A percepção do vínculo entre verdade, prova penal e inquisitorialidade significa um giro metodológico fundamental: o inquisitório se traduz em práticas de poder autoritário, poder que se justifica em si mesmo; quando a busca da verdade se acomoda em seu leito é porque não é mais da verdade que se trata, mas de distribuição de castigos, em arranjos sociais inconcebíveis nos moldes republicano e democrático. (PRADO apud KHALED JR. 2016, p. 18 – grifos nossos). Para observarmos esse fenômeno com mais cautela e propriedade, voltemos nossos olhos ao exemplo paradigmático de práticas inquisitórias: o Tribunal do Santo Ofício, cujas origens remontam ao Direito Romano e cuja atuação tem início no ano de 1233. Seu caráter estritamente repressivo e sua estrutura maximizada e onipresente de poder trazem consigo os germes do que viria a ser o sistema jurídico fundado na busca de uma “verdade real” (CARVALHO, 2008, p. 58): os mecanismos utilizados no campo da produção de provas no século XIII, seguindo os moldes de Roma, tornam-se meios de fixação da verdade. Não qualquer verdade, porém. Ao juiz era atribuída a competência – de maneira quase onipotente – de manipular livremente os dados do processo, tornando esse instrumento jurídico nada mais do que uma afirmação do poder em busca de seus próprios fins. Dessa maneira, o Tribunal do Santo Ofício e a Inquisição trouxeram consigo uma mudança substancial no papel do juiz, que “deixou de ser um espectador impassível e tornou-se protagonista do sistema” (KHALED JR., 2016, p. 64). Nesse momento, não mais existe o direito ao debate contraditório e muito menos a transparência na condução do processo, que corre de maneira secreta e permanece nas mãos do juiz inquisidor. Ademais, é no Directorium Inquisitorium, o manual dos inquisidores redigido por Nicolau Eymerich, que se estabelecem as bases e as premissas desse sistema cuja estrutura orbita em torno da busca da verdade de maneira nitidamente persecutória. Faz-se notar, ainda, que o modelo processual da Inquisição dispensava critérios objetivos, em prol da ambição de verdade que o movia: a máquina processual estava à disposição dos inquisidores para que se gerassem cada vez mais condenações baseadas em “verdades” produzidas arbitrariamente. Ferrajoli (2002, p. 435) elucida: [o modelo inquisitório se configura] na busca pela verdade substancial, que por isso se configura como uma verdade máxima, perseguida sem qualquer limite normativo aos meios de aquisição das provas ao mesmo tempo não vinculada, mas discricionária, no mínimo [...], mais que provas, juízos de valor não consideráveis pela defesa. O fim de (de atingir a verdade qualquer que seja) justifica os meios (os procedimentos quaisquer que sejam). Isto posto, cabe clarificar os resquícios da Inquisição em nosso ordenamento jurídico contemporâneo, que, como vimos, ainda baseia-se na busca pela “verdade real”. A verdade e o poder na esteira de Michel Foucault Conforme notoriamente explicitado por Foucault (2003, p. 12), a produção da verdade é forçada pelo poder que a exige e que dela necessita para funcionar, de sorte a sermos coagidos a dizê-la, confessá-la ou encontrá-la. O pensador afirma que são as condições políticas que dão o solo para a formação de determinados tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade e certos domínios de saber (FOUCAULT, 2003, p. 27). Foucault ainda salienta que a enunciação de certos discursos corresponde à justificação racional da verdade, ou, ainda, à tomada desses mesmo discursos como verdadeiros. Tal afirmação é consequência de uma perspectiva crítica da história do pensamento tomada pelo filósofo, na qual não há sujeito e objeto enquanto unidades universais e necessárias (CANDIOTTO, 2006, p. 66). Ao contrário, eles assim se tornam a partir de práticas sociais, teóricas ou científicas: o sujeito constituinte e o objeto empírico, portanto, dentro dessa perspectiva, distanciam-se e dissociam-se, e sua relação é historicamente produzida. Assim também ocorre com a produção da verdade, que se constitui de acordo com a relação do sujeito com o objeto – relação essa que, como vimos, pode ser estabelecida através de modos completamente distintos e práticas variadas. Candiotto (2006, p. 67), comentando Foucault, ressalta que “não existem objetos naturais tais como a verdade, a doença mental, o poder ou a sexualidade; eles assim se tornam mediante práticas históricas específicas e raras”. Por conseguinte, aquilo que é tomado como verdadeiro não está no objeto, ao passo que não preexiste e não é dado, e tampouco no sujeito, pois não é uma essência e nem originário. É a maneira – ou, ainda, as maneiras – como a história se articula que constituem o verdadeiro e constantemente o modificam. Em adição, Foucault cita como exemplo paradigmático de produção e autenticação da verdade o inquérito[1]. É por meio dele que o poder se exerce, e, considerando a verdade como produto do poder, o inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. (FOUCAULT, 2003, P. 78). No campo jurídico, a introdução do elemento inquérito ganha a função de estabelecer se houve ou não crime, qual foi ele e quem o cometeu, do mesmo modo como o faz o flagrante delito. Nas palavras de Foucault (2003, p. 72), ele poderá “tratar de gestos, atos, crimes que não estão mais no campo da atualidade, como se fossem apreendidos em flagrante delito”. O inquérito, portanto, constitui um novo saber e um novo conjunto de técnicas e procedimentos cujo objetivo era o de “desvendar o passado” – em outras palavras, atingir a verdade real. No que concerne ao processo penal contemporâneo, verificamos, portanto, ser insustentável basear um sistema de punição na busca pela “verdade real”. De forma resumida e considerando as constatações feitas ao longo dessa seção, destaca-se a constatação consonante de Khaled Jr. (2016, p. 169): Não há mecanismo capaz de eliminar os inúmeros impedimentos à obtenção de uma verdade correspondente ao real, que efetivamente possibilite essa ideia de que o historicamente verificável possa ser obtido sem qualquer espécie de deformação. Trata-se de uma concepção superada de cientificidade para as próprias ciências naturais que a originaram: é uma negação explícita da complexidade [...]. A ideia de verdade correspondente ao real não corresponde ao desafio que representa a obtenção de conhecimento sobre o passado e é manifestamente inadequada para expressar a dinâmica característica do processo. Destarte, defende-se neste presente texto que a produção da verdade, dentro das práticas do Direito, deve ser pensada a partir de outra racionalidade para além da ideia da verdade como correspondência aos fatos e da neutralidade de atuação do poder punitivo. Isso porque, na esteira de Khaled Jr. (2016, p. 22), constatamos que tal perspectiva não considera a complexidade dos eventos passados, tampouco de suas evidências e seus rastros no mundo concreto presente. Entendemos, portanto, o processo e a sentença dele decorrente como uma articulação, em âmbito jurídico, entre discursividades múltiplas que almejam uma reconstrução da narrativa do passado. Se não a verdade, o quê? Nossas considerações no presente texto não acarretam, necessária e propositalmente, a defesa ou a proposição de um probabilismo jurídico. Trata-se, no entanto, de negar a verdade nos moldes como foi apresentada na seção anterior. Aury Lopes Jr. (apud KHALED JR., 2016, p. 164) convida-nos a negar a “verdade” como função do processo a fim de “fugir da armadilha do sistema inquisitório, fundado, como vimos, na busca da verdade”. Isso porque, para o autor, tal concepção reflete a crença na onipotência do conhecimento jurídico moderno, cuja negação implica na libertação do processo – e, por conseguinte, também da sentença – de sua missão de revelador da verdade. Significa, ainda, caminhar em direção ao processo penal acusatório e democrático. Dada a impossibilidade da verdade entendida como “real”, “material” ou “objetiva”, conforme já exaustivamente mencionado, entendemos necessário negar essa concepção. Não parece equivocado considerar, dentro dessa perspectiva, os elementos do processo como ficcionais – desde a produção de provas, não excluindo a sentença penal, condenatória ou não. Isso porque os elementos trazidos ao processo constituem discursividades próprias, muitas vezes antagônicas e incompatíveis entre si, a respeito das quais deve-se deliberar, trazendo efeitos jurídicos reais e concretos. Novamente enfatizamos que não buscamos defender, com isso, uma arbitrariedade processual dentro do ordenamento jurídico: antes de tudo, queremos desmistificar a hierarquia da verdade sobre a ficção. Conforme apontado por Saer, “quando optamos pela prática da ficção, não o fazemos com o propósito turvo de tergiversar a verdade” (SAER, 2012, p. 2). Em suas precisas palavras: Quanto à dependência hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a primeira possuiria uma positividade maior que a segunda, desde já, no plano que nos interessa, é uma mera fantasia moral. Mesmo com a maior boa-vontade, aceitando essa hierarquia e atribuindo à verdade o campo da realidade objetiva e à ficção a duvidosa expressão do subjetivo, persistirá sempre o problema principal, ou seja, a indeterminação existente não na ficção subjetiva, relegada ao terreno do inútil e caprichoso, mas sim na suposta verdade objetiva. (SAER, 2012, p. 2) Nossa argumentação e defesa da ficção buscam evidenciar a complexidade, o empobrecimento e a redução abusiva de uma concepção de narrativas limitadas somente ao verificável. Por conseguinte, podemos entender a ficção como uma narrativa, uma discursividade que vai em direção ao não verificável, o que não significa, no entanto, uma aversão à uma suposta realidade objetiva: o que se faz é desdenhar da atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como essa realidade se conforma (SAER, 2012, p. 3). Em suma, na esteira de Saer (2012, p. 5), buscamos argumentar a favor da ficção como o meio mais apropriado para tratar as relações complexas entre o verdadeiro e o falso, considerando-a como uma narrativa liberta das amarras da busca pela “verdade real” ou “material”. Sob ótica similar, Khaled Jr. (2016, p. 171) assertivamente compara o discurso que almeja a “verdade real” a um monólogo, haja vista que os autores que saem em sua defesa a tomam como um dogma inatacável e jamais a problematizam. Ao entendermos toda discursividade como ficcional, recuperamos a dimensão narrativa de elementos probatórios dentro do processo penal e das demais práticas jurídicas. Narrar é, por sua vez, fundamental para os seres humanos, e a narrativa, nosso modelo mais antigo de transmissão de conhecimento. ISABELA SIMÕES BUENO Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política, e bolsista CAPES. Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Referências BARROS, Marco Antonio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de derecho penal y procesal. Barcelona: Bosch, 1973. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. CANDIOTTO, Cesar. Foucault: uma história crítica da verdade. Revista Trans/Form/Ação [online]. 2006, vol. 29, n. 2, pp. 65-78. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v29n2/v29n2a06.pdf (Acesso em: 07/07/2020) FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3a edição. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2015. KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2ª edição. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2016. SAER, Juan José. O conceito de ficção. Revista FronteiraZ. São Paulo, n. 8, julho de 2012. Disponível em: https://www.pucsp.br/revistafronteiraz/ download/pdf/TraducaoSaer-versaofinal.pdf (Acesso em: 03/07/2020) THOMAS, Yan. Los artificios de las instituciones: ensayos de derecho romano. Buenos Aires: Eudeba, 1999. NOTAS: [1] O termo “inquérito”, na tradução para o português de A verdade e as formas jurídicas (FOUCAULT, 2003), não assume o mesmo sentido de investigação preliminar ao processo penal brasileiro, ou seja, de inquérito policial. Aqui, “inquérito” significa “inquirição”, ou “interrogatório”, elemento crucial ao processo inquisitório nos moldes supracitados do Tribunal do Santo Ofício e que foi difundido pela Europa.
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