ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR: UMA INTERSECÇÃO ENTRE CINEMA E DIREITO NACIONAIS8/7/2020 Artigo do colunista Gabriel Teixeira na intersecção direito e cinema, vale a leitura! ''Trazendo para o campo do Direito (seria ele próprio uma questão de fé?), não são raras as vezes em que a epistemologia cede espaço para a crença (muitas vezes até e igualmente metafísica). Alguns dogmas são repetidos e reverberam das salas de aula aos tribunais sem que haja qualquer tipo de reflexão''. Por Gabriel Teixeira Olê Iê Iê
Cadê meu carnaval O carnaval está morrendo Cadê meu carnaval Se o samba acabar Também vou morrer O carnaval está morrendo Cadê meu carnaval (Cadê meu carnaval – Geraldo Azevedo) O carnaval é um evento simbólico. Ele traduz a renovação, a quebra de qualquer pacto social e a simplicidade. Uma festa de todos os povos e culturas, tão antigo quanto à própria concepção do metafísico (comumente associado como uma celebração humana aos “deuses pagãos”), e esperada, pela grande maioria, o ano inteiro. Em Toritama, no clima semiárido e na caatinga típicas de Pernambuco (e da maioria do nordeste brasileiro), a história não é diferente. As lentes afetuosas (num misto de nostalgia, surpresa e provocação) dirigidas por Marcelo Gomes captaram em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” a transformação de uma pacata cidade em um antro capitalista do jeans (ou do “ouro azul”, como uma das personagens/entrevistados menciona). Uma história tão detalhista e recheada de memórias que, se não tivessem sido captadas da forma como foram (com um tom biográfico e provocador aos habitantes), pareceria uma fantasia - recortada e fragmentada como “o curto verão da anarquia: Buenaventura Durruti e a Guerra Civil Espanhola”, de Hans Magnus Enzensberger. Este documentário, de sensibilidade ímpar, percorre todo o trajeto de uma cidade abarrotada de fábricas caseiras individuais têxteis nas quais, os moradores, empresários de si [1], trabalham incessantemente (sem qualquer tipo de supervisão ou tutela trabalhista) para sua subsistência e para atingir a tão sonhada meta (fora a melhora na qualidade de vida): ir para a praia no carnaval ou nas festas de final de ano. Foucault ganha ares proféticos ao ser demonstrada a mudança de mentalidade dos habitantes [2], que ultrapassou a mera mudança arquitetônica da cidade. Sem embargo, um recorte particularmente é gritante: a reiteração cíclica das condutas, pensamentos e objetivos sociais. A concepção ritualística (e da crença) da vida não é exclusiva dos habitantes de Toritama. É de toda a sociedade brasileira. Trazendo para o campo do Direito (seria ele próprio uma questão de fé?), não são raras as vezes em que a epistemologia cede espaço para a crença (muitas vezes até e igualmente metafísica). Alguns dogmas são repetidos e reverberam das salas de aula aos tribunais sem que haja qualquer tipo de reflexão. Princípios são tidos como valores e decisões judiciais pecam pela falta de fundamentação (ou sua padronização). Exasperamos reprimendas, criminalizamos novas condutas e entregamos ao Direito Penal a esperança de dias melhores – um ramo repressivo, que chega tarde, com violência e atrasado [3]. Sabidamente este não é o melhor ou único caminho. Mas, o legislador brasileiro ignora isto (será mesmo?) e segue repetindo esta prática, como demonstram as leis 13.834/19 e a 13.964/19, dentre inúmeros exemplos [4]. Ironicamente, existem (variadas) formas de romper o ciclo de absurdos e reproduções impensadas no direito e no capitalismo atroz que acomete os residentes em Toritama (e as denúncias são antigas): a literatura, o aperfeiçoamento e investimento em uma educação jurídica de qualidade (obviamente, aqui, incluem-se os docentes e o estímulo a uma formação continuada), a fuga das padronizações/esquematizações/simplificações, derrocada do atual modelo neoliberal, dentre inúmeras (a denúncia não é de hoje, bastam ver os escritos de Lenio Luiz Streck, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Luiz Eduardo Cani, Paulo Silas Filho e José Calvo González, dentre outros). Entretanto, como anunciava a banda Los Hermanos: “Todo carnaval tem seu fim”. Há de se ver luz no fim do túnel, ainda que a escuridão se fortaleça a cada dia. Gabriel Teixeira Santos Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG e em Direito Civil e Processo Civil pela Toledo Prudente Centro Universitário. Advogado. E-mail: [email protected]. NOTAS EXPLICATIVAS: [1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal; tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. [2] FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979); edição estabelecida por Michel Senellart; sob à direção de François Ewald e Alessandro Fontana; tradução Eduardo Brandão; revisão da tradução Claudia Berliner – São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 161/162. [3] https://www.youtube.com/watch?v=AU27EGDBdG0 [4] A primeira tratou de criminalizar a atividade de dar ensejo a qualquer ato investigativo ou ação judicial com finalidade eleitoral baseado em falsidade (fake news). Já a segunda promoveu uma situação atroz no que diz respeito ao cumprimento das reprimendas em sede de execução penal, englobando-se, aqui, a concessão de benefícios e até mesmo o aumento da pena máxima.
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