Os últimos fatos que movimentaram a imprensa nacional, todos relativos à (não)soltura do ex-presidente Lula, serviram para escancarar circunstâncias incômodas e, sobretudo, perniciosas dos rumos que toma o “direito” nacional. A completa crise institucional representada pelo desentendimento de instâncias do poder judiciário deixa patente o completo descaso dos operadores do direito não só com a unidade da interpretação da norma, como também demonstra o absoluto “jogar para torcida” adotado pelos inúmeros magistrados do país e demais “juristas”.
O estudo racional do direito hoje mais se assemelha a uma “subversão” do que uma necessidade inafastável. Infelizmente o caso vivido no último domingo, ao contrário de representar um caso isolado, é apenas mais uma demonstração do grande “oba-oba” que se tornou todo o sistema de justiça brasileiro. Ao que tudo indica, nem juízes, nem promotores e, inclusive, advogados, se importam com a ruptura institucional que vem sendo perpetrada por diversos anos. O afastamento da legalidade e do direito é algo mais que flagrante, porém, em vez de causar espanto, desperta comoção e aplauso. E pior. Não só dos entes estatais, como já dito, mas de muitos advogados, aqueles a quem a própria Constituição incumbiu o múnus público de indispensabilidade à justiça. Chega a ser deprimente, senão assustador. Sem adentrar no mérito de todas as decisões que sobrevieram naquele fatídico dia de domingo – uma aquarela de absurdos –, é preciso que se aponte o completo despreparo de muitos profissionais do direito no trato da questão. O que se viu não deixa nenhuma margem para esperança de evolução do direito brasileiro. O retrocesso absoluto parece ser o destino manifesto de nosso sistema jurídico. O dia de domingo foi só mais uma demonstração disso. A atuação na esfera criminal é demonstrativa no sentido de que o direito se tornou mero exercício de poder. Não há mais interpretação. Não há respeito aos princípios democráticos. Sequer há respeito à Constituição. Ou se simpatiza com o réu e, portanto, analisa-se o caso de maneira comedida (surgindo interpretações bastante legalistas e garantistas). Ou se odeia o jurisdicionado (e às vezes seu defensor), adotando todas as medidas possíveis para atormentá-lo (surgindo, com isso, princípios de defesa, argumentos de que nenhum direito é absoluto, dentre outros). E isso, diferente do que podem pensar, independe da existência de “provas” ou não da prática do crime. Isso independente da necessidade de punição ou não. É puro exercício de simpatia (e de poder). O dia de domingo, em verdade, apenas serviu para mostrar que, ao contrário do passado, no qual somente os mais pobres e desfavorecidos eram prejudicados com os desmandos do judiciário, hoje também os mais abastados (ou influentes) são vítimas da arbitrariedade. Nos últimos anos, a única democratização constatada no processo penal foi a da “sacanagem”. Não contentes com a submissão diária dos desvalidos aos mais variados mecanismos de arbitrariedade estatal, como prisões ilegais, violência policial e um “pornográfico” sistema penitenciário, o Estado atendeu os “anseios” do clamor popular e também submeteu ao “chicote” do desmando alguns (poucos) seres célebres, como forma de demonstrar o interesse da “justiça” em também perseguir os “bem-nascidos”. Como se extrai das falas comumente publicadas pelo Ministro Luís Roberto Barroso – um “ex-constitucionalista” – as mudanças jurisprudenciais vividas pelo país em tempos recentes, como a absurda violação do texto LITERAL da Constituição (com relação à prisão em segunda instância) e criação de princípios de defesa eficiente (o que justificaria a “sacanagem”), serviram para “democratizar” o sistema penal, antes restrito aos pobres. Com isso, ninguém mais poderá dizer que há uma desigualdade, todo mundo, a partir de agora, tornou-se um sujeito passível de ser violentado pelo Estado de forma ilícita. Em suma, como se infere das diversas falas de nosso Juiz da Suprema Corte, não devíamos “perder” tempo buscando uma reforma – pela via adequada (leia-se Congresso Nacional) – do sistema processual e penal (ambos dos anos 40), a fim de torna-lo mais efetivo e garantidor de direitos, o melhor é considerar todos iguais perante a lei submetendo qualquer um à fogueira e à violência ilegítima fruto de interpretações e entendimentos dos mais esdrúxulos. Mas ninguém parece se espantar com isso. Nem mesmo os próprios “juristas”. O dia de domingo serviu muito mais para demonstrar o ranço autoritário enraizado na maior parte de nós, do que como forma de reflexão. Assim como o 7x1 não serviu para mudar os rumos incertos de nosso futebol, que caminha para o limbo, a quantidade imensa de absurdos jurídicos noticiados diariamente também não. E vejam vocês que o destino tenta nos dar chances para notar os graves problemas que nos rodeiam, possibilitando uma reflexão e, talvez, uma correção dos erros. Mas nós, no alto de nossas ignorâncias (e arrogâncias), preferimos continuar buscando normalidade onde não há. E tal estado desolador de coisas não é algo recente. O Ministro Eros Grau[i], quando ainda integrava a Suprema Corte, no ano de 2008, já alertava, “a regra do Estado de Direito tem sido, no entanto, reiteradamente excepcionada entre nós. A classe média, sobretudo a classe média, já não a deseja senão para o irmão, o amigo, o parente de cada um. O individualismo que domina, o egoísmo que preside as nossas relações com o outro não quer mais saber da lei e da Justiça, ‘que só servem para soltar quem a polícia prende...’”. E arrematava, “este é o drama que suportamos. Agora somos mais originais. Pois é a própria sociedade que clama, de quando em quando, pela suspensão da ordem constitucional. Somos tão originais que dispensamos quaisquer déspotas para nos tornarmos presa do pior dos autoritarismos, o que decorre da falta de leis e de Justiça. O estado de sítio instala-se entre nós no instante em que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa, combatendo-os como se fossem ‘parcelas-fora-da-Constituição’”. Parece que ninguém mais se interessa com a lógica e racionalidade do direito. Todo ativismo (ainda que ilegal e perigoso) passa a ser bem-vindo, desde que nos favoreça (diretamente ou ideologicamente). E isso tem sido uma máxima também seguida pelos operadores do direito, inclusive da área criminal. O último domingo escancarou que muitos advogados e demais “juristas” estão mais interessados em questões partidárias do que propriamente em defender o próprio instrumento de trabalho. Preferem canibalizar o próprio “ofício”, em defesa de um sentimento político pessoal, a defender o direito, em primeiro plano. No dia em questão, poucos buscaram, racionalmente, discutir a sucessão de erros cometidas pelo judiciário e o quanto isso irá nos prejudicar (e muito) no futuro. O argumento era simplesmente de que determinado Paciente era politicamente bem aceito ou não. Se merecia, pelas suas condições pessoais, ser solto ou não para concorrer a uma eleição. Poucas discussões eram efetivamente direcionadas à ruptura do sistema processual, à quebra da hierarquia das instâncias e ao exercício da jurisdição. Nunca vi médicos defenderem o fim da medicina. Mas pude ver “juristas” defendendo o fim do direito. Eu realmente gostaria de escrever esta coluna para atender o objetivo original, debater a advocacia criminal. Mas diante de tanta arbitrariedade do Estado e conivência da classe jurídica – muito, talvez, da completa deficiência do estudo jurídico –, não sei mais se advocacia criminal ainda se presta a algum papel neste simulacro de democracia. Douglas Rodrigues da Silva Especialista em Direito Penal e Processo Penal Advogado Criminal [i] Voto do Ministro Eros Grau, relator do Habeas Corpus n. 95.009/SP, julgado em 06.11.2008 pelo Supremo Tribunal Federal. Comments are closed.
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