Há uma certa relutância em olhar para uma criança e percebê-la como um ser frio, cruel e calculista. Parece algo irreal conceber que alguém tão inocente e com tão pouca idade tenha comportamentos vis. Entretanto, não é impossível de nos depararmos com meninas ou meninos que também acabam por manifestar certas tendências não aceitas socialmente e que não fazem parte de seu desenvolvimento normal.
Alguns casos desse tipo são cobertos pela mídia e também conquistam a literatura ou o cinema. Um dos mais famosos dentre eles, conta, no filme “A Ira de um Anjo” (“Child of Rage”, de Larry Peerce, de 1992), a história de um casal que adota dois irmãos: Catherine, de 7 anos, e Eric, mais novo. Apesar dos esforços dos pais adotivos para acostumar e fazer com que as crianças se sintam amadas e parte da família, começam a notar certas situações difíceis de explicar. Quando tomada por raiva, a menina costumava maltratar seu irmão, mantinha comportamentos violentos com animais, conseguia manipular os adultos e mentia com facilidade. Além disso, não demonstrava nenhum senso de empatia ou remorso, chegando a afirmar que gostaria de matar seus pais. Esse é o retrato do início da nova vida de Beth Thomas, a garota em que é baseado o personagem de Catherine. Assim como posteriormente é identificado no filme, os dois irmãos sofreram sérios maus tratos antes de serem retirados pelo serviço social e postos para adoção. A mãe biológica havia morrido quando a menina ainda tinha um ano e os dois foram deixados com pai, um homem cruel que, além de não prestar auxílio adequado para os filhos, abusou sexualmente de Beth desde cedo. Descobrindo o passado das crianças, os pais adotivos tentaram de tudo para reverter o fato. E foi com isso que ela iniciou uma terapia que consistia em levar a paciente a expor sua raiva, deixando a dor transparecer; a cada vez que era provocada dessa forma, recebia manifestações de seus pais e do terapeuta de algo que nunca havia tido antes: aceitação e amor (MOTERANI, 2012). Assim, com muito esforço, tempo e dedicação, o avanço no tratamento foi apresentando resultados positivos e a melhora no cotidiano da família como um todo foi visível. Atualmente, não há muitos dados confiáveis sobre a vida de Beth Thomas, mas especula-se que se formou em enfermagem e escreveu um livro, intitulado “Mais que uma linha de esperança”. Mesmo que sua idade não permita um diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, ou psicopatia, são visíveis os sintomas desta condição, assim como é fácil hipotetizar uma situação em que os pais adotivos, não aguentando o peso da responsabilidade, “devolvessem” a menina e ela acabasse por ser mais uma que pularia de lar em lar até completar a maioridade. Ou seja, muito possivelmente, nunca pudesse entrar em contato com qualquer tipo de ajuda psicológica, tendo mais chances de adentrar o sistema jurídico antes, por algum delito. Nesse sentido, Albuquerque (2013) aponta que a literatura internacional traz o transtorno da conduta e o comportamento antissocial sob duas óticas: a criminológica e a psiquiátrica. Assim, “no que tange à legalidade, a delinquência implica em comportamentos que transgridem as leis (...) No aspecto psiquiátrico, são mais abrangentes e pautam-se à comportamentos condenados pela sociedade, com ou sem transgressão das leis do Estado”. Já há estudos que relacionam o desenvolvimento de transtornos da personalidade com a exposição às experiências traumáticas em baixa idade, como negligência, abuso físico e psicológico, punição excessiva e doença mental parental (DAVOGLIO et.al., 2012). Sabendo que são necessários estímulos e interações positivas com o meio em que a criança vive, é fácil perceber que, se há a ausência disso, não é possível desenvolver empatia. Após, outros sintomas podem ficar cristalizados, dando espaço para diversas condições psicopatológicas. A privação emocional, nos primeiros momentos em que começa a ter contato com o ambiente, fez com que ela reagisse exatamente da mesma forma: sem emoção. Apenas simulando situações, dentro de um espaço terapêutico, que foi possível, aos poucos, fazer com que ela sentisse e internalizasse as emoções tardiamente, para que, um dia, isso já estivesse intrínseco em seu ser. Apesar do difícil diagnóstico e da existência de diversos outros fatores que podem influenciar o surgimento de uma psicopatia, com o caso descrito, vê-se possível uma identificação e um tratamento que visa não apenas suprimir os comportamentos apresentados, mas entendê-los e trabalhar para que haja uma ressignificação das situações que os motivaram. Mesmo assim, é necessário atentar para o valor de um velho dito: "cada caso é um caso" e procurar, realmente, conhecer o caso e as pessoas envolvidas nele. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS: ALBUQUERQUE, Rosangela N. Transtorno de conduta... A difícil convivência no ambiente familiar e social. In. Revista Síndrome. Ano 3. Nº1, 2013. Disponível em: <http://www.academia.edu/download/50903203/REVISTA-Sindromes_2013.pdf#page=7>. Acesso em: 09 jul. 2017. DAVOGLIO, Tárcia Rita; CHITTÓ GAUER, Gabriel José; HAEBERLE JAEGER, João Vitor; DAVOGLIO TOLOTTI, Marina. Personalidade e psicopatia: implicações diagnósticas na infância e adolescência. Estudos de Psicologia. 2012. Acesso em 08 jul 2017. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/261/26125519014/> Os comentários estão fechados.
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