Faça o que eu digo, não faça o que eu faço: Shakespeare e o Direito em “Medida por Medida”4/25/2017
Shakespeare é um autor muito benquisto em diversas áreas. Dramaturgo e poeta renomado, suas obras alcançaram a contemporaneidade, tendo permanecido atuais. No (e para o) Direito não é diferente, vez que suas peças ganham destaque nas abordagens do movimento “Direito & Literatura”. O tema inclusive do V Colóquio Internacional de Direito e Literatura (“Justiça, Poder e Corrupção”), promovido pela Rede Brasileira de Direito e Literatura que aconteceu no ano passado em Uberaba/MG, teve Shakespeare, ao lado de Dom Quixote, como destaque.
Das diversas obras shakespearianas que merecem a análise pelo viés jurídico, tomemos “Medida por Medida” no presente escrito para tecer breves comentários. “Medida por Medida” é uma peça que escancara a hipocrisia, que aborda o vil do ser humano, que apresenta dubiedade que reside mesmo naqueles que aparentam uma altivez resoluta. A história apresenta a figura Ângelo, o qual é chamado para substituir o duque de Viena. Conhecido por ser um cumpridor frio da lei, Ângelo se exacerba enquanto possuidor do cargo transitório. Sua imoralidade se apresenta quando propõe a realização de um mesmo ato pelo qual condenara um homem à morte. Cláudio é preso por dormir com Julieta sem que casados fossem. A legislação não permitia tal tipo de relação, de modo que por assim ter procedido é que Cláudio acabou preso. Sua sentença, dada por Ângelo, foi a condenação à morte. Fosse num período em que o legítimo duque estivesse governando, a sentença seria amenizada. Mas Ângelo, conforme descrito pelo personagem Lúcio para a irmã de Cláudio, é: [...] homem cujo sangue É de pura neve; homem que não sente Ferroadas ou oscilações dos sentidos; Que nega e anestesia a natureza, E se aprimora com estudo e jejum. Para assustar o abuso e a liberdade Que têm andado ao largo do que é lei, Qual rato do leão, tomou uma atitude Sob cujo peso a vida de seu mano Fica perdida: ele o prende por isso, E interpreta o estatuto com rigor Pra fazê-lo de exemplo. Nada o salva A não ser pela graça de suas preces Aplacando Ângelo. É o que me coube No caso entre você e o seu pobre irmão. Ângelo, portanto, é um resoluto e fiel cumpridor da lei. É famoso por isso. Não existem exceções ou interpretações. Dura lex sed lex. Isabela, irmã de Cláudio, procura por Ângelo, a fim de interceder pela vida de seu irmão. Suplica para que a pena de morte não seja aplicada, mas Ângelo se mantém firme: “A lei, não eu, condena o seu irmão”. Diante da insistência e súplicas de Isabela, Ângelo pede para que seja procurado no dia seguinte. E assim procede Isabela. Nesse novo encontro, Ângelo faz uma inusitada proposta: caso Isabela durma com ele, o irmão será liberto. Eis a imoralidade, a hipocrisia, a insensatez de Ângelo. Condenara à morte Cláudio pelo crime de praticar relação sexual com pessoa que não era casada, mas pediu à irmã de Cláudio como moeda de troca justamente que fosse feita a prática daquele mesmo ato criminoso. A mesma lei que condenou Cláudio à morte, não valia também para Ângelo? A exceção foi ali instaurada em decorrência da corrupção proporcionada pelo poder assumido naquele período? A ousadia de Ângelo se deu por ter feito tal proposta às escuras? A lei deve ser aplicada de modo diverso para desiguais (governante e governado)? Ângelo é um personagem da literatura shakespeariana que enseja muito debate. Pelo viés do Direito, é um excelente exemplo para se trabalhar uma análise de alguém que apresenta ao mesmo tempo dois lados de uma moeda. Comentando sobre Ângelo, Lenio Streck diz que “ele vai do positivismo exegético ao positivismo-axiologista-normativista”, dado as suas posturas díspares quando sentencia Cláudio à morte e quando faz a proposta à Isabela. Vale fazer esse tipo de análise, trazendo as reflexões literárias possíveis também para o campo do Direito. Voltaremos a tratar ainda aqui na coluna “Direito & Literatura” outras breves abordagens em cima dessa e de outras obras de Shakespeare. Fiquemos, por enquanto, com a indagação a fim de ser refletida: quantos Ângelos podem ser encontrados no meio jurídico? Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Referências: SHAKESPEARE, William. Medida por Medida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 27-28 STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam. (Organizadores). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 228 Comments are closed.
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