1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
Ementa do julgado:
2 O CASO E.R.S. foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo 157, caput, do Código Penal. Em audiência de instrução e julgamento, o MM. Juiz singular, além de ignorar a disposição do artigo 212 do Código de Processo Penal, iniciando a inquirição das testemunhas no lugar das partes, leu os depoimentos prestados na fase inquisitorial e perguntou aos depoentes se ratificavam seus teores. O defensor suscitou questão de ordem, a qual foi negada. Em suas alegações finais, o Defensor requereu a nulidade da audiência de instrução, com a seguinte fundamentação:
O Juiz singular não acolheu a preliminar arguida, afirmando que:
Contra a sentença, foi interposta apelação criminal ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde se requereu fosse declarada a nulidade da audiência de instrução, recurso que foi desprovido:
Após, foi impetrado habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça, que foi distribuído à Sexta Turma, a qual, por maioria concedeu a ordem de habeas corpus para anular a oitiva das testemunhas, determinando que outra fosse realizada, sem a mera ratificação dos depoimentos prestados no inquérito policial. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO A Ministra Maria Thereza consignou que, muito embora existissem precedentes permitindo a prática do ato, seria hora de repensar a temática, inclusive porque o Supremo Tribunal Federal teria proferido decisão na qual reconheceu o erro em tal forma de proceder, só não tendo anulado o ato porque o defensor não teria arguido a questão. Como constatou a Ministra, o artigo 203 do Código de Processo Penal disciplina a forma como a prova testemunhal deve ingressar ao processo (relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar sua credibilidade). Face ao artigo, a Ministra consignou em seu voto que:
Após, a Ministra citou excerto doutrinário de Antônio Magalhães Gomes Filho, no qual ele relata que no ordenamento federal alemão não é possível a substituição do depoimento pela leitura de um anterior. Assim, foi concedida a ordem “para anular ação penal a fim de que seja refeita a colheita da prova testemunhal, mediante a regular realização das oitivas, com a efetiva tomada de depoimento, sem a mera reiteração das declarações prestadas perante a autoridade policial”. 4 PROBLEMATIZAÇÃO Como bem ressalta ROSA em sua obra baseada na teoria dos jogos, existem muitas formas de realizar um doping processual. Uma das mais corriqueiras é a leitura dos depoimentos prestados na fase inquisitorial e a solicitação de sua ratificação ou a confirmação de seu conteúdo e assinatura. Raríssimas exceções, não se vê a testemunha afirmar ao juízo que o que consta do depoimento seja mentira ou que a assinatura não seja de sua autoria. ROSA nomeia a prática de jogo de memória, uma tentativa de esquentar depoimentos frios:
Sabe-se que o inquérito policial é um procedimento administrativo inquisitório que visa a produzir elementos de informação e provas que, em regra, devem servir de base para o autor da ação penal, i.e., servir de justa causa. Muito embora o artigo 155 do Código de Processo Penal possibilite que o juiz se utilize dos elementos do inquérito para proferir uma sentença condenatória, tal prática é reprovável, pois, como sabido de todos, não existe contraditório na produção dos elementos de informação. Quando se requer à testemunha que corrobore ou ratifique o seu depoimento prestado na fase inquisitorial, está se ignorando o contraditório e o direito ao confronto pelas partes. Além disso, ignora-se as disposições do Código de Processo Penal e, consequentemente, o devido processo legal. Isso porque, à despeito da decisão ter feito referência tão somente ao artigo 203, há ofensa a outros. Vejamos os dispositivos aplicáveis:
Os três artigos devem ser lidos em conjunto para que se perceba mais claramente a ofensa ao devido processo legal quanto à mera ratificação dos depoimentos prestados na fase inquisitória. Como bem destacado pela Ministra, com relação ao artigo 203, a testemunha deve depor sobre o que souber. Caso não saiba nada sobre os fatos ou não se lembre, não se pode requentar os depoimentos do inquérito. Não há credibilidade em tal "prova". Quanto ao artigo 204, bem destacam PACELLI e FISCHER que o legislador procurou evitar uma "programação do depoimento", impedindo sua tomada espontânea. Deve-se impedir uma memória prévia de sua narrativa. Ou seja, quando a testemunha lê "depoimento" prestado anteriormente, impede-se que as partes possam explorar as diversas nuances da situação fática. Ignora-se a necessária espontaneidade do depoimento, o qual deve ser sujeito de falsificação. Já o artigo 212 é inequívoco quanto à perguntas que possam induzir a resposta. Quando se pergunta a testemunha se ela corrobora o que foi dito na fase inquisitorial já se sabe da resposta, como bem aponta ROSA, "os agentes sabem o que é preciso dizer para corroborar os depoimentos pela prática e, para qualquer pergunta além do que está dito, soltam um “não me recordo/lembro, são muitas ocorrências... faz tempo". Quando se lê o conteúdo do inquérito se está antecipando a resposta e sugerindo (induzindo) a versão correta. O objetivo do processo penal é a reconstrução de um fato histórico sobre o crivo do contraditório, os fatos não podem ser tido como comprovados, esperando-se das testemunhas que apenas ratifiquem sua existência. O julgador deveria ser o primeiro a impedir a prática do doping processual mediante a indução por meio da leitura. Como destacou-se em outra coluna “por mais que o acusado possa realizar alguma impugnação com relação ao que foi afirmado em sede inquisitorial, acaba por se ignorar que o contraditório deve ser sobre as provas e não para as 'provas'". Outrossim, já vimos que depoimentos prestados ante órgãos policiais e que não tenham sido submetidos ao contraditório são considerados hearsay evidence. Como esperar o devido contraditório de uma ratificação? Tem-se, então, que o pedido de ratificação do depoimento prestado no inquérito policial é uma farsa probatória que deve ser plenamente rechaçada vez que ignora princípios processuais e disposições legais. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Especialista em Ciências Criminais e práticas de advocacia criminal. Pós graduando em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. REFERÊNCIAS LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ªed. Salvador: Juspodivm, 2016. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2017. ROSA, Alexandre Morais da. Qual a cor do cavalo branco de Napoleão? Disponível em https://www.conjur.com.br/2014-fev-22/diario-classe-qual-cor-cavalo-branco-napoleao. Acesso em 17. jun. 2018. [1] ROSA, Alexandre Morais da. Disponível em https://www.conjur.com.br/2014-fev-22/diario-classe-qual-cor-cavalo-branco-napoleao. Acesso em 17. jun. 2018. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |