Artigo do colunista Paulo Silas Filho sobre o flagrante presumido na obra literária O Conde de Monte Cristo, vale muito a leitura! ''A mencionada obra figura como um dos grandes clássicos da literatura. É estonteante, única, profunda, densa, arrebatando o espírito do leitor e agrilhoando toda a atenção para as tantas páginas que a compõem. O enredo, que conta com diversos desdobramentos, convence, agrada e tem seu êxito demonstrado pela satisfação que é sentida por aquele que lê a história do conde de Monte Cristo. Um clássico como poucos''. Por Paulo Silas Filho “Fui preso; sequer tentei opor resistência, não era mais senhor dos meus sentidos. Tentei falar, emiti uns gritos desarticulados, foi só” – assim Bertuccio narra ao Conde sobre o estado pasmódico que ficou quando fora preso por um crime que não cometeu. Situação de flagrante típico a em que foi preso – tanto no sentido clássico do termo, como enquanto ancorado nas espécies classificadas pela doutrina processual penal. Dentre as diversas contribuições para o mundo que proporciona o romance “O Conde de Monde Cristo”, de Alexandre Dumas, a questão do flagrante pode ser refletida através de um exemplo extraído da obra.
"O Conde de Monte Cristo" conta a história de Edmond Dantès, um marinheiro que é vítima de um complô entre amigos e conhecidos que acarreta na sua prisão. A acusação que recai contra si é falsa. Não cometeu crime algum. Pelo contrário. Havia acabado de retornar de uma exitosa navegação, cujo bom feito nos mares que navegou ensejaram em promissores olhos voltados para si que resultariam em uma bem aventurada vida como navegador. Dantès, porém, estava ávido para antes ver seu amado pai, deixando-lhe o dinheiro que ganhara para a manutenção de seu pobre genitor. De igual modo, precisava ver sua amada Mercedés e com ela assumir seu compromisso antes de rumar para novas viagens em prol de seu ofício. O protagonista é impedido de realizar suas projeções futuras por conta do complô do qual foi vítima. A acusação mentirosa era de que Dantès teria, durante sua viagem, ido até a ilha de Elba a fim de receber uma carta de Napoleão - que estava em exílio. Os responsáveis pela farsa eram pessoas próximas: Danglars, seu amigo que almejava o posto de capitão que fora assumido por Dantès; Ferdnand, que era apaixonado por Mercedés e via em Dantès um empecilho para que pudesse estabelecer matrimônio com a pretendida (o que faz após a prisão do protagonista); Villefort, Procurador do Rei substituto que toma conhecimento da inocência de Dantès, mas silencia ao almejar um posto maior suas atribuições estatais, o que de fato consegue ao enviar o protagonista para a prisão do Castelo de If. Quando preso, Dantès vive a maior de suas atribulações, pois é totalmente esquecido e relegado ao cárcere, sem que tenha qualquer perspectiva concreta. É ali, porém, na prisão, que acaba conhecendo um vizinho de cela, o abade Faria, com quem muito aprende. O abade é tido pelos carcereiros e visitantes oficiais como louco fosse, pois alega possuir uma fortuna incalculável da qual compartilharia parte com aquele que o ajudasse a dali sair. Dantès se torna amigo do abade, quando juntos passam a planejar e por em prática um ousado plano de fuga. E esse é apenas o começo de toda a história daquele que viria a ser o conde de Monte Cristo. A mencionada obra figura como um dos grandes clássicos da literatura. É estonteante, única, profunda, densa, arrebatando o espírito do leitor e agrilhoando toda a atenção para as tantas páginas que a compõem. O enredo, que conta com diversos desdobramentos, convence, agrada e tem seu êxito demonstrado pela satisfação que é sentida por aquele que lê a história do conde de Monte Cristo. Um clássico como poucos. Os desdobramentos, como dito, são vários. As muito mais de mil páginas que formam a história contada por Dumas narram diversos episódios e causos das tantas personagens presentes na história. No âmbito daquilo que se propõe no presente breve escrito, elenca-se a passagem referida no início do texto como uma das tantas que ensejam numa reflexão também para o direito. No capítulo 7 da parte III da obra, “A chuva de sangue”, há o relato da prisão de uma personagem por um crime que não foi por essa cometido. Flagrante presumido. Bertuccio estava em um profundo sono quando despertou após ouvir um disparo de pistola seguido de um terrível grito. Estava numa estalagem, tendo ouvido de onde estava deitado alguns passos cambaleantes logo após o disparo com o grito, o que foi seguido de murmúrios e outros gritos. No escuro em que estava, nada enxergava, restando ouvir numa tentativa de compreensão sobre o que ali próximo acontecia. Passos desceram a escada até chegarem à sala do andar térreo, onde da lareira foi acesa uma vela. Bertuccio percebe nesse momento que o responsável pelos sons dos passos é Caderousse – que naquele momento estava pálido e com a camisa toda ensanguentada. Caderousse torna a subir e a descer as escadas – dessa vez com um diamante, até então pertencente à vítima, que estava num estojo preto e foi escondido no lenço do agressor. Após pegar outras pertenças, Caderousse se lança à porta e foge em meio a escuridão. Foi então que a consciência de Bertuccio se sobrepôs à sonolência, possibilitando que tomasse ciência do que acabara de ocorrer. Após a fuga do autor do crime, Bertuccio ouve gemidos da provável vítima, lançando-se em direção ao som agonizante. Ao subir as escadas, depara-se com um corpo já inerte. Havia mais de uma vítima. Estando essa, Carconte, já morta, Bertuccio segue em direção ao som daquela que ainda pulsava um respingo de vida – um joalheiro, que tivera o diamante roubado por Caderousse, que estava envolto “numa onda de sangue que escorria de três grandes ferimentos recebidos no peito”. O joalheiro morre antes que consiga falar qualquer coisa para Bertuccio. Nesse momento, o desespero entra em cena, resultando no imbróglio do equívoco com relação a autoria do crime: “[...] sentia apenas uma necessidade, a de fugir. Precipitei-me pela escada, enfiando as mãos no cabelo e soltando um rugido de terror.” “Na sala de baixo havia cinco ou seis agentes da alfândega e dois ou três policiais, um exército inteiro armado”. É nesse momento que Bertuccio é preso como sendo o autor do crime em questão. O leitor da obra tem plena noção de que Bertuccio acaba preso por um crime que não cometeu. O mesmo, porém, não pode se dizer com relação às personagens que presentes estavam na cena – dado o contexto da situação toda: Bertuccio estava coberto de sangue e no local do crime. Ao ser preso, tenta explicar sua versão dos fatos, ao que é interrompido pelos policiais: “Conte sua historinha para os juízes de Nîmes [...]. Enquanto isso, siga-nos; e, se quiser ouvir um conselho, não resista”. Enquanto é conduzido preso, Bertuccio repassa os últimos instantes em sua mente, inclusive pela perspectiva da polícia, compreendendo ali, naquele instante, que teria enorme dificuldade para provar sua inocência. A passagem em questão conclama à reflexão a questão do flagrante. Ser “encontrado, logo depois, com instrumentos armas, objetos ou papéis que façam presumir” ser o flagranteado o autor do crime é situação típica de flagrante que encontra amparo legal. É justamente nesse sentido que se dá a redação do inciso IV do artigo 302 do Código de Processo Penal, legitimando a autoridade estatal a proceder com a prisão do indivíduo que nessas circunstâncias se encontre. É o que é definido pela doutrina como flagrante presumido. Os agentes estatais da narrativa de Dumas ouviram os disparos, correram até a estalagem e deram com Bertuccio descendo as escadas todo ensanguentado, estando as duas vítimas logo atrás do suspeito já desfalecidas, não estado mais ninguém no local. A situação em que se encontrava Bertuccio justifica a suspeita que recaiu sobre si, tendo legitimidade a ação policial da prisão por conta do estado de flagrante. Fosse o caso à luz da legislação atual brasileira, amparo jurídico teria o ato prisional. O porém que cabe apontar se dá para o fato de que Bertuccio não foi o autor do crime. Não matou Carconte. Não roubou e matou o joalheiro. Sabia que foi o autor do delito, mas não tinha como fazer prova disso, até mesmo porque toda a suspeita recaia sobre si. O desdobramento da situação da personagem se dá de forma um tanto quanto própria da narrativa típica de “O Conde de Monte Cristo”, mas o que se busca evidenciar aqui é a problemática que paira sobre a modalidade do flagrante presumido. Sabe-se que “tendo em vista o dinamismo e a complexidade das relações humanas, certos casos, necessitam, obviamente de uma resposta estatal imediata” (MINAGÉ, 2017, p. 211). A prisão em flagrante possui seu amparo de legitimidade, portanto. O problema, porém, se dá quando da análise das formas possíveis que caracterizam o flagrante. No caso como o de Bertuccio, poderia se dizer que se tratou de caso de flagrante presumido, sendo esse aquele no qual o agente é encontrado numa situação em que se faça presumir ser tal o autor do crime. E assim foi feito: Bertuccio preso por crime que não cometeu e, razão do contexto em que se fez presumir ter sido o autor do delito. Poderia se dizer que, em tendo a prisão em flagrante natureza pré-cautelar, quando da análise da situação prisional para se estipular a liberdade provisória, conversão em prisão preventiva ou relaxamento dessa, o caso seria analisado com mais amplitude, podendo Bertuccio explicar o que realmente aconteceu. Também se poderia dizer que o receio de Bertuccio em não conseguir provar sua inocência é indevido, pois o ônus da prova incumbe à acusação, de modo que a inocência da personagem seria presumida até que o Estado conseguisse provar em sentido contrário – e não conseguiria, dado o fato de não ter sido Bertuccio o autor do crime. Entretanto, na perspectiva proposta por Alexandre Morais da Rosa, lendo o processo em sua prática pela ótica da teoria dos jogos, esse tipo de esperança em um processo penal que se guie “por conta própria” de forma democrática, é estratégia dominada. Dificilmente o destino de Bertuccio seria diverso da prisão e condenação pelo crime que não cometeu. Diante disso, razão assiste à doutrina crítica quando aponta para problemáticas com relação a algumas modalidades do flagrante. O flagrante presumido é exemplo disso – apontando aqui para um exemplo literário a fim de entoar a reflexão doutrinária que se faz sobre o tema. O cenário, o contexto, enfim, as provas estavam contra Bertuccio, não podendo se apostar nisso como elemento de onde se extrairiam razões para ser demonstrada sua inocência. Como muito bem pontua TRINDADE (2017), “se o Direito é linguagem [...], então contra fatos só há argumentos” – argumentos esses que, no caso da narrativa ilustrativa do presente texto, ainda seriam insuficientes para dar crédito à versão de Bertuccio (“conte sua historinha para os juízes” – conforme destacou o policial que o prendeu). De todo modo, para a fase processual, era o que Bertuccio tinha, sua versão narrativa, que poderia ser corroborada por um elemento outro para fosse dado crédito à sua inocência. STRECK e KARAM (2013, p. 3) indagam: “quanta realidade se encontra nas ficções? E quanta ficção conforma nossa realidade?”. No caso do flagrante presumido, ficção e realidade se confundem, uma vez que, a partir dessa ficção jurídica, legitima-se tomar o duvidoso como certo. Que essa parte da narrativa de Alexandre Dumas possa servir como uma das ficções possíveis para se refletir os vários Bertuccios da realidade nas situações de supostos flagrantes. REFERÊNCIAS DUMAS, Alexandre. O Conde de Monte Cristo. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 686-693 MINAGÉ, Thiago Miranda. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição: o contraditório como significante estruturante do processo penal. 4ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 6ª Ed. Florianópolis: EMais, 2020. STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013. TRINDADE, André Karam. Se direito é linguagem, então contra fatos só há argumentos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jul-15/diario-classe-direito-linguagem-entao-fatos-argumentos. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 22/07/2020. Paulo Silas Taporosky Filho Mestre em Direito (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica; Professor de Processo Penal, Direito Penal e Criminologia (UNINTER e UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI); E-mail: [email protected]
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