Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, tratando sobre o habeas corpus, CNJ e a Corte Interamericana de direitos humanos, vale a leitura! ''Se as garantias constitucionais não podem ser suspensas mesmo em situações de anormalidade do estado democrático, se o habeas corpus não pode ser restringido como recurso apto a discutir a liberdade de uma pessoa, poderia um ato de arbitrariedade suspender sua eficácia? O ministro Luiz Fux, ignorando toda jurisprudência da Corte IDH (que ele recomendou seguir, conforme visto no início deste artigo), ao que parece, entendeu que pode, em completa supressão de instâncias, em recurso que não é próprio ao processo penal, suspender a garantia constitucional do habeas corpus''. Por Iuri Machado No decorrer desta semana, o Conselho Nacional de Justiça, em sessão extraordinária (realizada em 14/12/2021), presidida pelo Ministro Luiz Fux, decidiu recomendar aos Tribunais que sigam a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Segundo consta da matéria divulgada pelo CNJ: “O presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, lembrou que, em recente encontro ocorrido por convite da Organização dos Estados Americanos (OEA), o monitoramento do cumprimento das decisões da Corte Interamericana e das práticas do Judiciário brasileiro foram muito debatidos. “Esse é um ato pertinente ao Conselho e de grande valia para os desígnios da nossa instituição”. A recomendação é louvável. O Ato Normativo, votado à unanimidade (com participação da presidência), resultou com o seguinte texto: Art. 1° Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário: I - a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas. II - a priorização do julgamento dos processos em tramitação relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenações envolvendo o Estado brasileiro e que estejam pendentes de cumprimento integral. Art. 2º Esta Recomendação entra em vigor na data da sua publicação. A doutrina que se debruça sobre o estudo do direito internacional dos direitos humanos alerta que “toda a atuação dos poderes públicos estatais está submetida a um duplo controle de compatibilidade. As emanações estatais devem ser materialmente compatíveis não apenas com a norma constitucional, mas também com os tratados e convenções internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil” (PEREIRA, 2021, p. 86). A Corte IDH há muito tempo tem jurisprudência no sentido de que “o Poder Judiciário deve levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação que a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana, fez do mesmo” (Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile). Importante, ainda, anotar que a Corte IDH considera ser um falso dilema opor a interpretação constitucional à convencional, afirmando que “88. [...] el control de constitucionalidad implica necesariamente un control de convencionalidad, ejercidos de forma complementaria” (Caso Gelman Vs. Uruguay). Em outro caso, a Corte mais uma vez explicitou que no controle de convencionalidade “es necesario que las interpretaciones judiciales y administrativas y las garantías judiciales se apliquen adecuándose a los principios establecidos en la jurisprudencia de este Tribunal” Assim, percebe-se que a iniciativa do CNJ é de extrema importância, pois apesar de o Brasil ter alcançado o marco de 10 condenações pela Corte IDH (com inúmeros casos tramitando na Comissão Interamericana), raros são os diálogos feitos pelos juízes, tribunais, membros do Ministério Público e advogados com os julgados daquela Corte. Pouco se conhece ou se debate sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Feita esta breve introdução, necessário apontar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos trata da garantia do habeas corpus no artigo 7.6, in verbis: “Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.” A Corte IDH possui julgados afirmando que mesmo em situações excepcionais a garantia do habeas corpus não pode ser suspensa: “128. La Corte ha considerado que “los procedimientos de habeas corpus y de amparo son aquellas garantías judiciales indispensables para la protección de varios derechos cuya suspensión está vedada por el artículo 27.2 [de la Convención] y sirven, además, para preservar la legalidad en una sociedad democrática” (Caso Tibi Vs. Ecuador). O posicionamento do Caso Tibi não é algo recente, senão entendimento reiterado da Corte ao longo dos anos. Na opinião consultiva nº 08/87, quando inquirida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a possibilidade de a garantia do habeas corpus ser suspenso (“es una de las garantías judiciales que, de acuerdo a la parte final del párrafo 2 del artículo 27 de esa Convención, no puede suspenderse por un Estado Parte de la citada Convención Americana?”), a Corte IDH afirmou expressamente que não pode ocorrer a suspensão, que disposições internas no sentido da possibilidade são inconvencionais: 42. Los razonamientos anteriores llevan a la conclusión de que los procedimientos de hábeas corpus y de amparo son de aquellas garantías judiciales indispensables para la protección de varios derechos cuya suspensión está vedada por el artículo 27.2 y sirven, además, para preservar la legalidad en una sociedad democrática. 43. Por otra parte debe advertirse que aquellos ordenamientos constitucionales y legales de los Estados Partes que autoricen, explícita o implícitamente, la suspensión de los procedimientos de hábeas corpus o de amparo en situaciones de emergencia, deben considerarse incompatibles con las obligaciones internacionales que a esos Estados impone la Convención. Tem-se, então, que a Corte IDH é clara em afirmar que, por mais excepcional que seja a situação do Estado Parte, a garantia constitucional do habeas corpus não pode ser suspensa, tendo em vista a finalidade do mesmo. Na opinião consultiva nº 09/87, a Corte IDH analisou não somente a garantia do habeas corpus, como também outras garantias inerentes ao devido processo legal, em especial ao instituto do amparo: 30. Relacionado el artículo 8 con los artículos 7.6, 25 y 27.2 de la Convención, se concluye que los principios del debido proceso legal no pueden suspenderse con motivo de las situaciones de excepción en cuanto constituyen condiciones necesarias para que los instrumentos procesales, regulados por la Convención, puedan considerarse como garantías judiciales. Esta conclusión es aún más evidente respecto del hábeas corpus y del amparo, a los que la Corte se referirá en seguida y que tienen el carácter de indispensables para tutelar los derechos humanos que no pueden ser objeto de suspensión. Se as garantias constitucionais não podem ser suspensas mesmo em situações de anormalidade do estado democrático, se o habeas corpus não pode ser restringido como recurso apto a discutir a liberdade de uma pessoa, poderia um ato de arbitrariedade suspender sua eficácia? O ministro Luiz Fux, ignorando toda jurisprudência da Corte IDH (que ele recomendou seguir, conforme visto no início deste artigo), ao que parece, entendeu que pode, em completa supressão de instâncias, em recurso que não é próprio ao processo penal, suspender a garantia constitucional do habeas corpus: Em 14.12.2021, deferi pedido liminar, com fundamento no §7º do art. 4º da Lei 8.437/92, para suspender os efeitos de decisão monocrática proferida nos autos do Habeas Corpus nº 70085490795 (0062632- 23.2021.8.21.7000), determinando-se, assim, o cumprimento imediato das penas atribuídas aos réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, pelo Tribunal do Júri. ... Ex positis, nos termos do art. 4º, §§ 8º e 9º, da Lei nº 8.437/1992, e ratificando a liminar anteriormente proferida nestes autos, DEFIRO o pedido formulado pelo Ministério Público, para sustar os efeitos de eventual concessão do Habeas Corpus nº 70085490795 pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reiterando a determinação de cumprimento imediato das penas atribuídas aos réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão. Como poderia um Ministro do Supremo Tribunal Federal “sustar efeitos de eventual concessão de Habeas Corpus” fora das hipóteses recursais? O Brasil vive o pior momento de sua democracia (negacionismo científico, desmatamento, fome, ataques à comunidade indígenas, etc.), mas nada parece ser tão odioso quanto um ataque a mais importante das garantias constitucionais. Urge que as instituições tomem providências. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Ig: @iuri_vrmachado REFERÊNCIAS: CNJ. CNJ recomenda a tribunais seguir decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-recomenda-a-tribunais-seguir-decisoes-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos/. Acesso em 17 dez. 2021. PEREIRA, Frederico Valdez. Fundamentos do justo: processo penal convencional: as garantias processuais e o valor instrumental do processo. 1. Ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |