1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
Superior Tribunal de Justiça. REsp 1674198/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 12/12/2017. REsp 1444372/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/02/2016, DJe 25/02/2016. REsp 1373356/BA, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2017, DJe 28/04/2017. Ementa do julgado: RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM BOATOS E TESTEMUNHA DE OUVIR DIZER. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO. 1. A decisão de pronúncia é um mero juízo de admissibilidade da acusação, sem exigência, neste momento processual, de prova incontroversa da autoria do delito - bastam indícios suficientes de que o réu seja seu autor e a certeza quanto à materialidade do crime. 2. Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir dizer) como prova idônea, de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal Popular. 3. A norma segundo a qual a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas - como o norte-americano -, o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). No Brasil, ainda que não haja impedimento legal a esse tipo de depoimento, "não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica. Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta" (Helio Tornaghi). 4. A primeira etapa do procedimento bifásico do Tribunal do Júri tem o objetivo de avaliar a suficiência ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação (iudicium accusationis) funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis, idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae). A instrução preliminar realizada na primeira fase do procedimento do Júri, leciona Mendes de Almeida, é indispensável para evitar imputações temerárias e levianas. Ao proteger o inocente, "dá à defesa a faculdade de dissipar as suspeitas, de combater os indícios, de explicar os atos e de destruir a prevenção no nascedouro; propicia-lhe meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a escandalosa publicidade do julgamento". 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido, para reformar o acórdão recorrido de modo a despronunciar os recorrentes nos autos do Processo n. 0702.08.432189-3, em trâmite no Juízo de Direito da Vara de Crimes contra a Pessoa da Comarca de Uberlândia, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia em eventual superveniência de provas. 2 O CASO[1] M.M.P. e seu sogro M.R.S. Foram denunciados pela prática de um homicídio qualificado por motivo torpe. No decorrer da instrução processual nenhuma testemunha presencial compareceu para prestar depoimento, mas foi prestado depoimento por uma testemunha, R.N.F., que disse ter ouvido que os acusados teriam sido os autores do crime, constando dos autos:
Com base em tal depoimento, o juiz singular optou por pronunciar os acusados, sob fundamento de que: “Entendo, pois, que se constata facilmente dos elementos de prova transcritos acima, colhidos sob o contraditório, dentre outros elementos constantes nos autos, que há lastro probatório suficiente para o juízo de pronúncia dos recorrentes.”. Os acusados interpuseram recurso em sentido estrito, o qual foi desprovido, sob os mesmos fundamentos expostos pelo juízo singular. Por fim, os acusados recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, alegando que o acórdão contrariou os artigos 414 e 415, inc. II do Código de Processo Penal, bem como deu interpretação divergente ao Resp 1444372/RS. O Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para despronunciar os acusados. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO Na fundamentação do recurso, os acusados alegaram que boatos, ou testemunhos de ouvir dizer, não deveriam ser considerados como prova suficiente para caracterizar certeza jurídica a fim de pronunciar alguém, sendo que o relator condutor do voto se ateve a dois fatos para fins de despronunciar os mesmos. O primeiro dizia respeito ao procedimento do júri, que como se sabe é bifásico. Destacou que a primeira fase do Tribunal do Júri, o juízo de acusação, existe para que sejam evitados erros judiciários, seja para condenar, seja para absolver um acusado. Sendo que o contraditório e ampla defesa perante o juiz togado visam a comprovar da materialidade e apontar indícios suficientes de autoria. Assim, esta primeira fase “funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis, idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae )”. O segundo dizia respeito a hearsay evidence, i.e., se uma “prova” de ouvir dizer seria o suficiente para apontar os indícios de autoria para fins de pronúncia. Quanto a este ponto, foi consignado no voto que: Vale observar que a norma segundo a qual a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas – como o norte-americano –, o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). No Brasil, embora não haja impedimento legal a esse tipo de depoimento, “não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica . Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada emconta.” (TORNAGHI, Helio. Instituições de processo penal. v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 461). A razão do repúdio a esse tipo de testemunho se deve ao fato de que, além de ser um depoimento pouco confiável, visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca, o acusado não tem como refutar, com eficácia, o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo. Com base em tais fundamentos, o Recurso Especial foi provido. 4 PROBLEMATIZAÇÃO Quando pesquisado nos Tribunais Superiores julgados referentes ao direito ao confronto, pode-se constatar que só existe um julgado afeito a matéria penal que tramitou no Superior Tribunal de Justiça. Já quando se pesquisa a palavra-chave “hearsay” verifica-se a existência de quatro acórdãos e 28 decisões monocráticas no Superior Tribunal de Justiça e um julgado no Supremo Tribunal Federal. Tal constatação demonstra que quando se cuida da hearsay evidence os Tribunais acabam por ignorar o direito ao confronto como uma condição necessária para verificar a validade da prova, tal qual discutiu a Suprema Corte Americana[2], fato que causa perplexidade. Nesta coluna, optou-se por cuidar de três julgados referências, pois todos estão diretamente relacionados, tem votos semelhantes e foram citados como parte de suas fundamentações, muito embora a fundamentação com relação a validade da hearsay evidence tenha sido feita de modo muito sucinto, sem que se procurasse avaliar as diversas possibilidades práticas da mesma. Os três julgados avaliaram a possibilidade de uma prova de ouvir dizer poder ser considerada como indício suficiente de autoria para remeter algum acusado a júri, sendo que em todos os julgados a resposta foi a mesma, qual seja: não é possível pronunciar alguém com base exclusiva numa prova de ouvir dizer, por mais que existam depoimentos prestados em fase inquisitiva por supostas testemunhas diretas. A grande preocupação dos Ministros foi com relação ao possível erro judiciário que tal espécie de prova poderia acarretar tendo em vista que os jurados julgam pela sua íntima convicção. Inclusive, no julgamento do Resp 1.444.372/RS, foi destacado trecho da fundamentação do recurso do Ministério Público, o qual procurava reformar decisão do Tribunal de Justiça gaúcho que despronunciou um acusado. Afirmou-se: Esclarece, ainda, que "se o Juiz de Direito não pode se valer da prova policial exclusivamente para a emissão da sentença condenatória, o mesmo não se aplica aos jurados, porquanto estes poderão decidir a causa com base em sua íntima convicção, sem explicitar os motivos de seu convencimento. Assim, poderá o Tribunal popular julgar com base apenas na prova policial, garantindo-se a sua competência constitucional e a soberania de seus veredictos" (fl. 743). Justamente por conta deste tipo de fundamento, que enfatiza a íntima convicção dos jurados e jamais deveria ser utilizado pelo Ministério Público (órgão que se pretende democrático), o Superior Tribunal de Justiça entendeu por não aceitar a validade da decisão de pronúncia fundada em prova de ouvir dizer. Não se quer entrar na discussão acerca das nuances do Tribunal do Júri, mas há de se enfatizar o que foi afirmado anteriormente, i.e., que o júri é uma garantia individual:
Justamente por ser uma garantia individual, não se pode tolerar que os processos sejam submetidos a júri sem que haja ao menos uma prova feita sobre o controle dialético. A respeito da prova de ouvir dizer e sua validade no Tribunal do Júri, BADARÓ leciona que:
O referido autor destaca que o contraditório sobre a produção da prova tem um valor heurístico que se potencializa na possibilidade de contraditar e verificar os contrários, ampliando os limites de conhecimento dos julgadores e limitando a possibilidade de erros. Sem que se possa conhecer os fundamentos de uma decisão, fica absolutamente impossível as partes realizar um devido recurso ante a decisão dos jurados. Não obstante o aparente acerto da decisão do Superior Tribunal de Justiça, é de se destacar o seguinte trecho: “a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas – como o norte-americano –, o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer”. Conforme foi tratado nas colunas anteriores, a hearsay evidence não é totalmente rechaçada pelas Cortes Americanas, sendo que não foi abordado o direito ao confronto, o qual excluiu a possibilidade de se utilizar a hearsay evidence quando existia confiabilidade no que foi afirmado. Nem mesmo, foi abordado o principal método de avaliar a exclusão ou não de uma prova de ouvir dizer, qual seja, o primary purpose test. Tal teste poderia ser utilizado nos casos analisados pelo Superior Tribunal de Justiça, mas em nenhum momento foram exploradas as várias possibilidades de utilização da hearsay evidence, prova que pode vir a ser utilizada tanto pela acusação, quanto pela defesa. Assim, fica a ressalva quanto ao afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça e, desde já, o convite para leitura da próxima coluna, na qual será avaliado julgado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual avaliou recentemente a prova de ouvir dizer. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Especialista em Ciências Criminais e práticas de advocacia criminal. Pós graduando em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. REFERÊNCIAS BADARÓ, Gustavo. A utilização da hearsay witness na Corte Penal Internacional Estudo sobre sua admissibilidade e valoração. Disponível em: http://badaroadvogados.com.br/a-utilizacao-da-hearsay-witness-na-corte-penal-internacional-estudo-sobre-sua-admissibilidade-e-valoracao-1.html. Acesso em 04 mar.2018. [1] Muito embora tenhamos três julgados referências, o resumo do caso e a fundamentação da decisão cuidará unicamente do Resp 16744198/MG. Os demais serão debatidos na problematização. [2] O assunto foi tratado em coluna anterior: http://www.salacriminal.com/home/hearsay-evidence-e-o-direito-ao-confronto. [3] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26645/uma-breve-analise-sobre-a-decisao-de-pronuncia. Acesso em 04 mar. 2018. [4] BADARÓ, Gustavo. A utilização da hearsay witness na Corte Penal Internacional Estudo sobre sua admissibilidade e valoração. Disponível em: http://badaroadvogados.com.br/a-utilizacao-da-hearsay-witness-na-corte-penal-internacional-estudo-sobre-sua-admissibilidade-e-valoracao-1.html. Acesso em 04 mar.2018. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |