O objetivo me resigna, me compele a enfrentar o perigo, a desbravar o cauteloso, a encarar medo enquanto o ignoro – assim como desconsidero a grande chance da derrota que me espera. Sei que a dizem como certa, a derrota, mas ainda não cheguei ao momento em que ela surge, de modo que não posso confirmar algo que ainda está por vir, ou seja, que não aconteceu. Não posso confirmar, ninguém pode, o que dizem sobre o futuro. Então há esperança. A minha esperança. É por isso que minha resignação deve ser compreendida enquanto o entregar-se ao destino que por mim será traçado. Não tomo o perder como certo. O que está em meu caminho e não posso fugir é o enfrentamento e não a derrota. A consequência do embate só saberei após o travar da luta. É isso que tenho como destino, a necessidade do enfrentar, a satisfação certa do querer que é posto em prática independente das adversidades. Da luta não fujo. Há algo que me chama, que seduz o meu espírito singelo e ao mesmo tempo altivo, conduzindo-o ao som que atrai. A rendição a esse canto que clama pelo meu enfrentamento - isso, e apenas isso, tomo como noção de destino. São as circunstâncias da ocasião e o meu agir que selarão o desfecho. Nada além. Não há como estar escrito previamente algo que ainda não foi. A caneta dessa história está em minhas mãos e na de mais ninguém. É por isso que opto por ir em frente. A imensidão azul me aguarda. Sou eu, e apenas eu, que avançará rumo ao difícil e quase intransponível. Minhas ingênuas alegrias constituem o meu combustível. É o suficiente, até mesmo porque não posso contar com qualquer outro propulsor. Há um rapaz de tenra idade que ainda acredita na potência interior desse velho, é verdade. Talvez essa amizade peculiar seja uma fonte da chama que acalenta minha alma e me faz continuar de cabeça erguida. Sou grato, ao meu modo, por isso. Talvez também resida aí a motivação da minha esperança, vendo em outro, alguém com muito pela frente daquilo que para mim constitui o passado, o meu de outrora. Não sei dizer. Mas as minhas tristezas ficam sempre num nível abaixo dos meus sonhos alegres. Qualquer seja o motivo que impulsiona o meu viver, é certo que sigo com meus pensamentos. Guardo-os para mim alguns, compartilho com o menino outros. Os conhecidos, que agora me enxergam sempre com um olhar de pesar e de perplexidade, ficam sabendo pelas bocas uns dos outros. Não acreditam, é claro. São eles que dizem que já fui, mas não sou mais. Os meus retornos do mundo azul aguado são lamentados pelos que aqui estão. A comiseração é um sentimento comum por aqui. Mas eu vejo apenas como mais um dia que não foi e ainda será. Ainda mais agora em que o grande desafio me espera. Embarco ciente das dificuldades, pois sei que a luta será penosa. Mas lutarei com honestidade, temperança e esperançoso em poder retornar, desta vez, com olhares efusivos de orgulho me cercando assim que eu tocar a terra firme.
Ernest Hemingway foi o responsável pela grande obra-prima da literatura “O Velho e o Mar”. O livro é um clássico que faz jus ao lugar que ocupa na literatura mundial. O enredo é cativante, tocante, emocionante, fantástico. Com uma narrativa coesa, simples e ao mesmo tempo brilhante, A leitura acaba por ensejar no arrebatar da atenção do leitor da primeira até a última linha do livro. Uma obra esplêndida. Provavelmente um dos principais fatores que leva "O Velho e o Mar" a figurar como uma das grandes obras da literatura mundial é a luz que irradia de toda a sua simplicidade. É um livro curto, mas que diz muito. É uma história singela, mas que laça e contagia o espírito do leitor. Enfim, há muito no que aparenta pouco. O livro conta a história de um sofrido pescador que se vê numa "maré de azar". Já faz várias semanas que retorna de seu barco sem que tenha pescado um único peixe. Os dias de não êxito são contados, um após o outro. A fama de azarão se espalha pela comunidade, resultando em burburinhos sobre o velho. Já não é o mesmo pescador de outrora. Até mesmo um garoto, amigo do velho que costuma o acompanhar nas pescarias no mar, acaba tendo de se afastar por determinação de seus pais. Mesmo a contragosto, o garoto, um fiel companheiro, deixa de acompanhar o velho naquela que será a maior pescaria da qual já se ouviu falar. Assim, parcimonioso e estoicamente, mesmo perdendo seu ajudante de pescaria, o velho se lança com seu barco ao mar para tentar novamente a sorte. E eis que nessa nova empreitada o resultado se apresenta de maneira estrondosa: um grandioso peixe fisga a isca, ocasionando uma longa e árdua batalha na solidão do mar. Resta saber se o velho terá força e disposição o suficiente para enfrentar aquela grande fera do mar. E é disso que a coisa toda se trata. A história é bela e trágica. “O Velho e o Mar” é uma história de grandes feitos, de superação de limites, da grandeza na simplicidade, de luta contra as adversidades - mesmo quando em situações que geram pouca confiança e quando o oponente é de impor respeito. É um livro que fascina e ensina. E no campo do Direito, temos situações em que aquela humilde grandeza do velho se faz presente? O mar, com todos os desafios que traz, é o próprio cotidiano do jurídico. Principalmente quando considerado o contexto situacional das coisas atuais, repleto de ingentes lutas a serem enfrentadas por aqueles que buscam dar voz aos esquecidos, aos outros, aos não aceitos e aos ignorados, estas que se travam por meio da busca da efetivação dos direitos e garantias a todos inerentes, a leitura de “O Velho e o Mar” nos permite refletir sobre a necessidade de seguir em frente, sejas quais forem as circunstâncias. Nesse sentido, conforme costuma aqui se expor na coluna, as intersecções propostas são salutares, pois “a Literatura, assim como o Direito, também espelha valores e imagens, expressa realidades as quais se comunicam com o intérprete de maneira aproximada nas duas áreas”[1]. Mas de qual se Direito estaria a se dizer? A pergunta funciona como sua própria resposta, pois a partir do momento em que há Direitos e Direitos – não em seu aspecto “conceitual”, mas no sentido de não ser possível se falar em uma “forma” específica de se enxergar esse fenômeno jurídico -, tem-se que a noção de identidade se perde. Vive-se em tempos líquidos, tal como a análise elaborada por Bauman[2]. E essa liquidez, que impossibilita concretudes que na realidade assim são, mas que ganham diversos novos e indevidos contornos criados a partir dos próprios juízos subjetivos daqueles responsáveis por dizer o Direito (que acabam assim fazendo de modo errôneo), reduzindo-se o esperado constante ao pernicioso volátil, é que transforma o próprio Direito em algo líquido, tendo-se assim um Direito líquido[3]. O mar, azul e imenso, no qual se estabelece o Direito atual, é um mar de tormenta, tempestuoso e agitado. Poucas chances existem para aquele que busca desbravá-lo. Mas é preciso enfrentar o perigo. É como se o jurista bem-intencionado fosse lançado ao mar raivoso num pequeno bote - apenas ele, sem bússola, sem remos, sem suprimentos. Tudo aquilo que aprendeu sobre o mar – como se orientar, para onde remar, de que modo sobreviver -, esvai-se com a primeira grande onda que acaba por virar o bote, transformando-o em náufrago. Isso no caso de conseguir sobreviver. As ondas, a tormenta, a tempestade, são as decisões que não correspondem ao respeito às garantias constitucionais, as prisões arbitrárias, as punições desmedidas, a moral que se assoberba o Direito, enfim, as inobservâncias dos critérios de base que erigem o Direito. Esse mar talvez seja aquele mesmo oceano que foi enfrentado pelo personagem de Hemingway. O mar que constituía um desafio próprio apenas no contexto em que se situava o velho, uma vez que os outros pescadores de “O Velho e o Mar” obtinham êxito em suas pescarias, ou seja, o desafio estava longe de ser o mesmo. Talvez fossem como aqueles que se resignam, que fazem parte da coisa toda, que articulam as tempestades, que produzem as ondas, que dirigem o jogo sujo. Para estes, o problema não há. Há apenas para o velho, que com toda a sua altivez, escondida pela sua simplicidade, retornava para casa de mãos vazias e com a sensação de que o mar não estava para peixe. O velho é como o jurista que não se cala diante de arbitrariedades. Que luta pela efetivação daqueles direitos previstos na Constituição e por suas garantias. Que, conforme ensina Lenio Streck, constrange epistemologicamente ao denunciar os abusos com os quais se depara no meio jurídico. Que julga de acordo com o Direito. Que escreve criticamente. Que pesquisa verdadeiramente. Que aprende e ensina com seriedade. Que atua com destemor mesmo sabendo dos riscos de voltar para casa sem peixe. As dificuldades de um agir democrático são inerentes do ato de se enfrentar qualquer perigo. O velho de Hemingway lutou bravamente mesmo quando, sozinho em meio ao mar, encontrou o peixe gigante, possuindo poucas condições de vencer o embate. Não deu ouvidos aos burburinhos dos pescadores. Não se importou com o fato de que aquela poderia ser a sua última pesca. Segurou fortemente a linha que afligia suas mãos. O seu papel era o de pescar. E assim fez – pescou, mesmo tendo sido uma vitória de Pirro. O ganho foi outro, de outro nível. Já o papel do jurista é, antes de tudo, acreditar – mesmo considerando todas as diversas intempéries que assolam o Direito dia após dia. Por isso é que se concorda com Jefferson Gomes e Thiago Minagé quando dizem ser “possível consertar o quadro caótico que está posto [...]. Alguns poderão dizer que é um delírio, que delírio seja então e que ao fim, ainda sonhemos como Galeano um dia sonhou, antes que seja tarde e o judiciário nos casse até o direito de sonhar”[4]. Hemingway assim descreve o protagonista de “O Velho e o Mar”: “tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis”[5]. Que os juristas assim sejam – como o velho que continuou enfrentando o mar. Por mais que cansados, sofridos e abatidos com as dificuldades do tumultuado e desleal cotidiano forense, mantenham sempre os olhos com a cor do oceano. Que não baixemos a cabeça e tenhamos aquela humilde grandeza do velho para permanecer seguindo sempre! Paulo Silas Filho Professor de Processo Penal – Universidade do Contestado (UnC) Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER) Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Advogado Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] [1]SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. p. 64 [2]BAUMAN, Zygmunt.Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. [3]TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. Direito Líquido: um pouco de Bauman para o Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/direito-liquido-um-pouco-de-bauman-para-o-direito-por-paulo-silas-taporosky-filho>. ISSN: 2446-7405. Acesso em: 31/07/2018. [4]GOMES, Jefferson de Carvalho; MINAGÉ, Thiago M. O uso da linguagem com instrumento de resistência. In: GOSTINSKI, Aline; PRAZERES, Deivid Willian dos; MINAGÉ, Thiago M. Tempo de Resistência.Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 167-168 [5]HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar. 93ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017. p. 14 Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |