A crença na positividade das leis é uma das características de nossas sociedades ocidentais contemporâneas. Associa-se lei com justiça. Ou seja, a justiça é resultante da aplicabilidade da lei. Tal percepção se expressa no imaginário popular diante de situações de agressão à vida de outrem. Contra a propriedade, ou outro fato litigioso qualquer que afronta a ordem social estabelecida, razão pela qual, ouvem-se expressões populares: “espero que se faça justiça”; “a única coisa que desejamos é justiça.” Mas, a crença na positividade da lei transcende os anseios expressos pelo senso comum e, se materializa na estrutura jurídica que regulamenta em mínimos detalhes a vida, as relações sociais em que o indivíduo em sua cotidianidade se circunscreve. Estamos diante do fenômeno da judicialização da vida em sua multiplicidade de relações. Multiplicam-se as leis com o intuito de afirmar direitos civis, políticos, sociais e individuais, de reparar injustiças sociais históricas.
Tal aposta na posititividade da lei, do ordenamento jurídico é uma das características marcantes da modernidade que teve na Declaração de Virginia (Estados Unidos) em 1776 e, na Declaração dos direitos do homem e do cidadão durante a Revolução Francesa em 1789 sua gênese imediata, apesar de já existir uma aposta na positivação com a criação, dentre outras, da Lei das XII tábuas e dos códigos de Hamurabi, Justiniano e Manu. Desde então, milhares de leis foram aprovadas e sancionadas, provavelmente em todos os países, e permanecem em plena vigência, como expressão da crença e necessidade contemporânea de justiça e segurança. Nesta direção, o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), em suas reflexões em torno dessa estrutura jurídica ocidental, chama atenção para as contradições inerentes à crença na positividade das leis. Nesse sentido, dois paradoxos se apresentam. O primeiro paradoxo que se circunscreve no imaginário social contemporâneo é o fato de que quanto mais garantias legais, jurídicas buscamos, ou até mesmo exigimos, menor é a nossa liberdade de livre uso de nossas potencialidades racionais e políticas em alcançar acordos, consensos em torno de problemas e situações vivenciadas socialmente. Abrimos mão da capacidade que cada ser humano é portador de fazer uso do bom senso, da capacidade de tolerância e, até mesmo do exercício da generosidade na resolução de questões cotidianas que envolvem os indivíduos. Ao transferirmos para o judiciário a resolução das questões sociais em que estamos inseridos, abrimos mão de assumirmos o uso público e livre da razão, transferindo para a esfera transcendente da “justiça do Direito” posicionamentos e decisões, crentes na garantia de alcance da verdade. O segundo paradoxo apontado por Agamben é que desconsideramos o fundamento ontológico da lei e, por extensão da justiça. Para o filósofo, o fundamento ontológico da lei reside na violência originária da passagem da physis para o nomos. Ou seja, ao nos tornamos humanos somos inseridos na estrutura das relações sociais, cerceadora de nosso direito natural. É nesse ato de violência originária que suprime o direito de natureza de que cada existente é portador, que nos inserimos na esfera do mundo humano, da lei, da justiça, do direito. Ao incluir um conjunto de relações humanas e sociais, justificando-a juridicamente, a lei o faz excluindo potencialidades humanas que poderiam se estabelecer no livre curso dos acontecimentos. Portanto, para Agamben, o fundamento ontológico da justiça e da lei reside na violência. A crença na positividade da lei reside na desconsideração desta violência originária que fundamenta a justiça e, que ao incluir exclui a vida de outras potencialidades. O filósofo italiano também demonstra que é a violência originária que constitui o fundamento ontológico da lei, que permite justificar em determinadas situações societárias, atrocidades e “injustiças” de toda ordem, a exemplo dos campos de concentração nazistas na segunda guerra mundial, a prisão de Guantánamo mantida pelos EUA após os atos terroristas de 2001, a chacina ocorrida em 1992 na Casa de Detenção, no bairro Carandiru em São Paulo, dos campos de refugiados espalhados mundo afora, de seres humanos deixados a própria sorte, desprovidos dos direitos declarados pelas estruturas jurídicas estatais e internacionais ao longo dos últimos três séculos. A violência como fundamento ontológico da lei, do ordenamento jurídico se expressou de forma clarividente no processo de impeachment da presidente Dilma V. Russef a partir de outras duas características constitutivas da lei, apontadas pelo filósofo e jurista Carl Schmitt (1888-1985) e, retomadas por Agamben em seus estudos sobre o conceito de estado de exceção. Ou seja, Schmitt aponta para o fato de que o direito e a aplicabilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas obedecem à lógica das decisões políticas. “A ordem jurídica, como toda ordem repousa em uma decisão e não em uma norma”. Ainda nessa direção, Schmitt argumenta que a existência da norma somente é possível a partir de uma determinada decisão que justifique o sentido do ordenamento jurídico, “o direito não possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos homens”. Sob tais pressupostos, o processo de impeachment da presidente Dilma findado em 25 de agosto de 2016 demonstrou de forma inequívoca a insegurança jurídica a que todos os “cidadãos” estão submetidos. A chefe do executivo brasileiro foi julgada e condenada à perda do mandato a revelia da presunção de inocência diante da ausência de provas em torno da materialidade do crime de responsabilidade fiscal, supostamente caracterizado nas suplementações orçamentárias para crédito agrícola, e das pedaladas fiscais (tornadas legais pelo congresso em fins de agosto de 2016). Foi julgada e condenada pelo “todo da obra”, na expressão de seus acusadores, descaracterizando e desconsiderando um dos princípios processuais, o ônus da prova que cabe a quem acusa, configurando a materialidade ao ato delituoso. Entre inúmeras barbaridades jurídicas, assistimos na cena final o acordo entre parte dos senadores que permitiu quebrar o artigo 52 da Constituição Federal (cláusula pétrea), garantindo a permanência dos direitos políticos da presidente que teve seu mandato interrompido. Esse fato e muitos outros que se apresentaram ao longo do processo para impeachment demonstram de forma inequívoca que a “Constituição” é aquilo que o poder soberano, composto por Ministros do Supremo Tribunal Federal e poder Legislativo, dentre outras instituições, diz que ela é. Confirma-se o argumento de Agamben de que nos encontramos em pleno estado de exceção e de que, neste contexto, somos todos homni sacri (homo sacer), vida nua, submetidos à violência soberana em pleno estado de exceção, de insegurança jurídica. Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas Mestre em Educação e Cultura Graduado em Filosofia Professor titular de filosofia da Universidade do Contestado Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional Luiz Eduardo Cani Professor na Universidade do Contestado Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado Advogado e consultor jurídico Comments are closed.
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