Artigo do colunista Iuri Machado e Maria Vitória Bittar Daher da Costa Ferreira, no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Conforme denúncia feita em recente artigo de FACHIN e outros, há um "padrão de violação de direitos", que gera efeitos desproporcionais às mulheres e que "adotar políticas de gênero "neutras" alimenta a desigualdade e a exclusão". O Brasil deve "punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais". Por Iuri Machado e Maria Vitória Bittar Daher da Costa Ferreira Marc O’Leary fez um acordo com a acusação e se declarou culpado de 28 estupros e outros crimes conexos (como invasão ao domicílio, furto, etc.). Sua pena foi a máxima permitida pelo Estado do Colorado, de 327 anos. Quando ouviu sua sentença, O’Leary falou, ainda na corte, que era um predador sexual violento, que estava fora de controle há algum tempo[1].
Na execução de seus crimes, O’Leary tomava todos os cuidados possíveis para não deixar rastros de DNA, pois, por ter servido ao exército estadunidense, sabia que este possuía suas amostras. Gabava-se de suas medidas de precaução, dentre elas, observação e escolha das vítimas, obrigá-las a tomar banho, cometer os crimes em condados diferentes (pois sabia que dificilmente os policiais se comunicariam). Questionado sobre os crimes, foi enfático: “se Washington tivesse prestado um pouco mais de atenção, eu provavelmente teria me tornado uma pessoa de interesse um pouco mais cedo”. O’Leary foi descoberto devido ao trabalho incessante de duas policiais, Stacy Galbraith e Edna Hendershot, que investigavam casos de estupro em Condados próximos e acabaram por ter seus caminhos cruzados. O que ambas tinha em comum para além da perseverança? Não confrontaram as vítimas, não apontaram seu modo de ser ou seus problemas pessoais como indícios de falsidade na comunicação dos crimes, por mais que as provas das práticas dos estupros fossem demasiadas fracas (ou quase inexistentes, como ocorreu em diversos dos casos apurados). O que poderia ser pior que ser uma vítima de estupro? (talvez) Não tantas coisas, mas, certamente, se ver atacada de forma veemente numa oitiva, ver seu modo de vida sendo questionado. Marie (nome fictício adotado para o livro), quando tinha 18 anos, foi vítima de estupro. Seu relato era de que estava dormindo quando um homem teria entrado em seu quarto, a amarrado com o cadarço de seu tênis, feito ameças com uma faca de cozinha e, ao final, afirmado que não era o que ela esperava, tendo afirmado que ela poderia se soltar após ele ir embora. O homem estava de capuz, Marie não tinha certeza de suas características físicas, não tinha certeza de quanto tempo durou o ato, não tinha certeza se ele havia ou não usado preservativo, não tinha certeza do que fez após os fatos, nem como o fez. Ela era uma vítima diferente de muitas outras, demandava mais atenção. Foi abandonada pela mãe, abusada física e sexualmente pelo pai quando ainda era muito criança. Passou a viver em lares adotivos, separada de seus irmãos. Usava diversas drogas prescritas (dentre elas, Zoloft, um antidepressivo). Alguns adotantes perderam sua licença, então passou a viver em lares de acolhimento. Sua vida parecia “tranquila”, apesar dos inúmeros problemas que tinha passado. Aos 18 anos, descobriu o Projeto Ladder, voltado ao auxílio de jovens que cresceram em lares de acolhimento. Segundo Marie: “era tão legal viver na minha e não ter que seguir todas essas regras que eu tinha que seguir no sistema de acolhimento”. No apartamento do Projeto que sua vida passaria pela maior reviravolta. No dia do estupro, policiais foram até o local e não encontraram nada que pudesse auxiliar nas investigações, porém seu exame médico apontou contusões nos pulsos e a prática de ato sexual. Ao relatar o estupro a uma de suas mães adotivas (Shannon), esta sentiu que Marie agia “diferente”, não havia emoção, histeria, sentimentos perceptíveis. Marie, inclusive, queria comprar os mesmos lençóis que estavam na cama quando ocorreu o estupro, pois aqueles haviam sido apreendidos para perícia. Peggy, outra acolhedora, compartilhou do sentimento de Shannon, acabou por lembrar de uma tarde em que Marie queria (muito) chamar atenção numa confraternização com diversas crianças. Um dia após o crime, o policial Mason recebeu uma ligação, uma “dica” de que Marie gostava de chamar a atenção. Mason e seu parceiro, em vez de aprofundar a investigação de estupro, mudaram o foco, duvidaram da credibilidade das declarações. Passaram a reinquirir Marie, que teve sua versão confrontada por inúmeras vezes, tanto com seus relatos posteriores, quanto com a versão apresentadas por testemunhas. Seus relatos eram diferentes, todos tinham peculiaridades que não batiam. Três dias após o crime, os policiais ligaram para Marie e pediram que ela comparecesse na delegacia, ao que ela respondeu: “eu me meti em algum problema?”. Para os policiais, se alguém pergunta isso, é porque (certamente) se meteu em algum problema. O policial contou a Marie que sua história não batia, que as evidências não apontavam a existência de crime nenhum, viu-se confrontada com seu passado de abandono, de carência por atenção. Exigiram que Marie escrevesse a verdadeira história numa folha, que admitisse que estava mentindo, que não havia sido estuprada. Segundo ela, seu interrogatório pareceu ter durado horas, ao final, sob forte estresse, confessou que inventou tudo. Um dia após, levada à delegacia pelos gerentes do Projeto Ladder, pois estes não acreditaram que ela pudesse ter mudado a versão, se viu mais uma vez confrontada pelos policiais. Eles afirmaram que ela poderia ser presa em flagrante, perder benefícios legais. Marie desistiu. Um mês após, recebeu uma notificação para comparecer em juízo, havia sido denunciada pela prática de falsa comunicação de crime. Pediu um defensor público e acabou por fazer acordo com a acusação, confessou que havia feito uma falsa comunicação de crime e cumpriu sua “pena”. Anos após, as policiais Stacy e Edna, em busca domiciliar na casa de O’Leary, encontraram fotos do estupro de Marie. Comunicaram o fato às autoridades do Condado de Lynnwood (local onde ela morava). Na investigação externa solicitada pelo Chefe de Polícia de Lynnwood para apurar os erros cometidos na investigação do caso, o policial supervisor afirmou que: “o que ocorreu foi nada comparado ao fato de a vítima ter sido coagida a admitir que ela havia mentido sobre o estupro” e que “essas declarações são coercivas, cruéis e antiprofissionais”. Após o caso Marie, os departamentos policiais mudaram as práticas investigativas nos crimes sexuais. O caso de Marie (disponível no Netflix e em livro) é deveras angustiante, seus repetidos interrogatórios (não é possível chamar de tomada de declarações), o vasculhamento de sua vida privada (seu passado de abusos, abandono, etc.) fazem com que se pergunte se há limites a atuação do Estado na busca pelo acertamento do caso penal. Pode uma vítima de crime sexual ser perguntada sobre sua vida sexual, fotos privadas (“posições ginecológicas”), pode uma parte inquirir a vítima afirmando que: “jamais teria uma filha do seu nível. Graças a Deus. E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você"? Quais são as obrigações do Juiz e Ministério Público diante de questionamentos que nada podem trazer de contribuição para o julgamento do caso, mas que podem trazer inúmeros transtornos psicológicos à vítima? O Brasil não tem uma legislação minudente no que diz respeito à inquirição de vítimas, pelo contrário, possui apenas um artigo (201 e parágrafos do Código de Processo Penal) que trata da inquirição da vítima, dispondo que: “§ 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido”. Ao juiz incumbe prover a regularidade do processo e a manutenção da ordem (art. 251), enquanto ao Ministério Público cabe fiscalizar a execução da lei (art. 257). Nada obstante o trato do legislador, a Convenção de Belém do Pará, que tem abrangência maior do que a Lei Maria da Penha, dispõe em seus artigos primeiro e segundo que entende-se por violência contra mulher: Artigo 1 Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. Artigo 2 Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica. […] c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. Dentre as obrigações dos Estados Partes está: Artigo 8 Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas especificas, inclusive programas destinados a: [...] b) modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher; c) promover a educação e treinamento de todo pessoal judiciário e policial e demais funcionários responsáveis pela aplicação da lei, bem como do pessoal encarregado da implementação de políticas de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher; Nas regras sobre procedimento e prova da Corte Penal Internacional, temos a seguinte: Regla 70 Principios de la prueba en casos de violencia sexual. En casos de violencia sexual, la Corte se guiará por los siguientes principios y, cuando proceda, los aplicará d) La credibilidad, la honorabilidad o la disponibilidad sexual de la víctima o de un testigo no podrán inferirse de la naturaleza sexual del comportamiento anterior o posterior de la víctima o de un testigo. Assim, percebe-se que a legislação internacional protege vítimas de crimes sexuais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui diversos julgados que tratam da inquirição de vítimas mulheres, obtendo um entendimento consolidado sobre o tema. No Caso Gutiérrez Hernández e outros v. Guatemala, deixou claro que provas sobre os antecedentes sexuais da vítima são inadmissíveis, que as linhas de investigação sobre o comportamento social ou sexual da vítima representam manifestações políticas baseadas em estereótipos de gênero: 170. La influencia de patrones socioculturales discriminatorios puede dar como resultado una descalificación de la credibilidad de la víctima durante el proceso penal en casos de violencia y una asunción tácita de responsabilidad de ella por los hechos, ya sea por su forma de vestir, por su ocupación laboral, conducta sexual, relación o parentesco con el agresor, lo cual se traduce en inacción por parte de los fiscales, policías y jueces ante denuncias de hechos violentos. Esta influencia también puede afectar en forma negativa la investigación de los casos y la valoración de la prueba subsiguiente, que puede verse marcada por nociones estereotipadas sobre cuál debe ser el comportamiento de las mujeres en sus relaciones interpersonales. Es así que según determinadas pautas internacionales en materia de violencia contra la mujer y violencia sexual, las pruebas relativas a los antecedentes sexuales de la víctima son en principio inadmisibles, por lo que la apertura de líneas de investigación sobre el comportamiento social o sexual previo de las víctimas en casos de violencia de género no es más que la manifestación de políticas o actitudes basadas en estereotipos de género. [...] 172. A este respecto cabe insistir en general en la necesidad de descalificar la práctica de devaluación de la víctima en función de cualquier estereotipo negativo, idónea para culpabilizar a una víctima, y neutralizar la desvaloración de eventuales responsables. 173. La Corte reconoce que los prejuicios personales y los estereotipos de género afectan la objetividad de los funcionarios estatales encargados de investigar las denuncias que se les presentan, influyendo en su percepción para determinar si ocurrió́ o no un hecho de violencia, en su evaluación de la credibilidad de los testigos y de la propia víctima. A afirmação relativa a inadmissibilidade de provas relativas à vida social e sexual da mulher foi repetida no Caso Veliz Franco e outros vs. Guatemala, ressaltando-a no parágrafo 208 "la ineficacia judicial frente a casos individuales de violencia contra las mujeres propicia un ambiente de impunidad que facilita y promueve la repetición de los hechos de violencia en general y envía un mensaje según el cual la violencia contra las mujeres puede ser tolerada y aceptada". Já no Caso Velásquez Paiz e outros vs. Guatemala, a Corte deixou claro que "rechaza toda práctica estatal mediante la cual se justifica la violencia contra la mujer y se le culpabiliza de esta, toda vez que valoraciones de esta naturaleza muestran un criterio discrecional y discriminatorio con base en el origen, condición y/o comportamiento de la víctima por el solo hecho de ser mujer". No Caso Campo Algodonero vs. México, afirmou que o Estado tem a obrigação de criar normas que sigam os estandartes internacionais, os parâmetros para investigar, realizar análises forenses e julgar. Determinou também a criação de programas de capacitação (com matérias relativas a direitos humanos e gênero; perspectiva de gênero na condução de processos com discriminação, violência e homicídios; superação de estereótipos) direcionados aos funcionários da persecução penal (policiais, promotores, juízes, militares e demais funcionários encarregados de atuar na área). Percebe-se, portanto, que uma mulher vítima de violência não pode ser confrontada sobre sua vida social e/ou sexual em uma inquirição. Não cabe ao Judiciário, tampouco ao Ministério Público permitir que perguntas dessa natureza sejam realizadas. Conforme denúncia feita em recente artigo de FACHIN e outros, há um "padrão de violação de direitos", que gera efeitos desproporcionais às mulheres e que "adotar políticas de gênero "neutras" alimenta a desigualdade e a exclusão". O Brasil deve "punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais". É inconvencional qualquer tentativa de causar humilhação às vítimas que prestem depoimentos, razão pela qual não é possível ao Juiz e Ministério Público serem meros observadores da violação de direitos humanos. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @advogado_iurimachado Maria Vitória Bittar Daher da Costa Ferreira Acadêmica de Direito REFERÊNCIAS Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Gutiérrez Hernández Y Otros Vs. Guatemala. Sentencia se 24 se Agosto de 2017. _____. Caso Veliz Franco y Otros vs. Guatemala. Sentencia de 19 de mayo de 2014. _____. Caso Velásquez Paiz y otros vs. Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre de 2015. _____. Caso González e outras (“Campo Algodoeiro”) vs. México. Sentença de 16 de Novembro De 2009. Corte Penal Internacional. Reglas de Procedimiento y Prueba. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/resource-library/documents/rulesprocedureevidencespa.pdf>. Acesso em 10.11.2020. FACHIN, Melina Girardi; SOARES, Inês Virgínia P.; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/opiniao-dia-dura-decadas>. Acesso em 10.11.2020. Uma história inacreditável de estupro. Disponível em: <https://medium.com/@corpolivredefato/uma-inacredit%C3%A1vel-hist%C3%B3ria-de-estupro-fab60c92d2c8>. Acesso em 10.11.2020. MILLER, Christian; ARMSTRONG, Ken. Unbelievable story of rape. Disponível em: <https://www.propublica.org/article/false-rape-accusations-an-unbelievable-story.>. Acesso em 10/11/2020. NOTAS: [1] Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/48-hours-hunted-the-search-for-colorado-serial-rapist-marc-o-leary/>. Acesso em 10.11.2020.
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