Se por um lado o objetivo primordial da Lei n. 9.099/1.995 é combater a sufocante demanda judicial e descongestionar os tribunais brasileiros, o que é extremamente louvável, de outro há uma flagrante incompatibilidades com ideais (inegociáveis) do já vilipendiado processo penal.
Parece lógico que casos de menor potencial ofensivo, leia-se: penas inferiores a 2 (dois) anos, não necessitam de todo o aparato estatal dispensado para os crimes julgados pelo rito comum ordinário. Porém, tal raciocínio deve ser levado com a máxima cautela, parafraseando o ilustre professor e advogado ADRIANO BRETAS[1]: “Não é porque o caso é pequeno que o acusado decai de suas garantias”. Destaque-se que tal máxima não vale apenas ao acusado, mas também deve ser à todos os envolvidos na relação jurídica. Por óbvio, ter como ideais norteadores a celeridade, informalidade, oralidade e efetividade não demonstra incompatibilidade com os princípios da lei processual penal, pelo contrário, são ideais que só têm a contribuir no desenvolvimento do “penoso” processo criminal. Ocorre que a sobreposição de alguns destes princípios têm causado consideráveis violações às prerrogativas dos sujeitos de um processo criminal. Exemplifico a questão com um caso que me deparei na prática. Suponha-se que a(s) vítima(s) de crime contra a honra (seja calúnia, difamação ou injúria) proponha(m) uma queixa-crime contra o ofensor perante o juizado especial criminal. Vencidas as etapas de conciliação, oferecimento de proposta de transação penal e não havendo suspensão condicional, a queixa é encaminhada para que o órgão jurisdicional faça o juízo de admissibilidade da peça acusatória (queixa-crime), oportunidade em que irá analisar as formalidades processuais, recebendo a queixa ou rejeitando-a. Pois bem, nessa oportunidade, deve o juiz analisar todos os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, ou seja, a exposição detalhada do fato criminoso, a qualificação do acusado (ou esclarecimento pelos quais se possa identifica-lo), classificação e tipificação do crime e, se necessário, um rol de testemunhas. Ocorre que o caso em questão abarcava uma extensa discussão doutrinária sobre tipicidade do delito e a possibilidade de uma coletividade (grupo) figurar como vítima de crimes contra a honra (difamação, como foi o caso). Após uma breve (para não falar brevíssima!) análise do caso, o magistrado decidiu pela rejeição da queixa-crime ao entender que as ofensas não foram direcionadas à pessoas específicas, mas sim à uma coletividade genérica, um grupo considerável de pessoas, o que tornaria a conduta, em tese, atípica. Sendo assim, como forma natural de impugnação da decisão, foi interposto o recurso à Turma Recursal, a qual confirmou, por unanimidade, a decisão pelos próprios fundamentos, restando a súmula do julgamento como acórdão, nos termos do art. 46 da Lei n. 9.099 de 1995[2]. A reprodução (muitas vezes integral!) da decisão impugnada não se sustenta nos casos em que a demanda reclama de mínimo exercício jurisdicional. Nesse sentido, há importante pontuação feita pelo do professor e magistrado JOÃO BATISTA LAZZARI[3] em sua obra de doutoramento, o qual levanta uma linha de raciocínio baseado em DWORKIN e a lógica dedutiva. Segundo o magistrado, “A solução dos casos difíceis exige uma justificação externa com identificação da norma, interpretação da norma, prova e qualificação, ou seja, a justificação das premissas, que exige algo mais do que a lógica dedutiva”. Ressalte-se que somente em casos de mínima complexidade seria razoável, ainda que com ressalvas, o não enfrentamento de uma tese no standard decisório. Um simples exemplo pode ser extraído em casos em que se reconhece a decadência do direito de queixa pelo transcurso de mais de 06 (seis) meses após a descoberta da autoria do delito (Art. 103, CP). É absolutamente compreensível que tal decisão não demanda maiores discussões doutrinárias e limita-se à cálculos temporais. Apenas um desastre aritmético seria capaz de justificar eventual revisão da decisão que reconhece a decadência. Assim, considerando que há uma limitação natural do campo recursal dos juizados especiais, mostra-se que somente seriam cabíveis eventuais Embargos de Declaração (para sanar obscuridades, contradições e ambiguidades), para uma posterior interposição de Recurso Extraordinário. Lembre-se da existência da Súmula n. 203, do Superior Tribunal de Justiça: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. Ou seja, tal súmula veda a possibilidade da insurgência das partes mesmo que a decisão da turma recursal viole um dispositivo infraconstitucional (o Código de Processo Penal, como exemplo mais próximo). Tal limitação recursal decorre do ideal de celeridade e efetividade, inerentes aos casos julgados pelos juizados especiais. Pode parecer absurdo, mas após a oposição de Embargos Declaratórios da decisão da Turma Recursal, ou melhor, da reprodução integral da decisão inicial, a relatora negou provimento ao embargo fazendo referência ao Art. 489, §1º, inciso IV do Código de Processo Civil[4], ao justificar que, pasmem, não seria necessária a análise da totalidade de argumentos do recurso para fundamentar a decisão! Escancara-se aqui o entendimento por uma teoria processual única, ignorando conquistas do âmbito processual penal. Pois bem, seguindo a rota recursal, o objeto do Recurso Extraordinário fica limitado à violação do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, bem como da necessidade de fundamentação das decisões judiciais (Art. 5º, incisos LIV, LV e Art. 93, inciso IX, ambos da Constituição Federal) ante a (im)possibilidade da confirmação da sentença que rejeitou a queixa pelos próprios fundamentos. Mesmo que seja o momento propício para discutir se tal dispositivo estaria em conformidade com o texto constitucional (inclusive com uma análise principiológica), muitas vezes a linha argumentativa esbarra em sedimentado entendimento do Supremo Tribunal Federal. Explico: considerando as peculiaridades do processo penal, a reprodução integral da sentença pelos seus próprios fundamentos pode não violar diretamente o art. 5º, incisos LV, LIV, bem como o Art. 93, inciso IX, da Constituição, mas sim o Art. 381 do Código de Processo Penal, o qual elenca os requisitos da sentença criminal. Portanto, somente seriam vislumbradas tais violações ao texto constitucional após “reexame prévio de normas infraconstitucionais”, no caso o Código de Processo Penal, o que não desafiaria (em tese) a instância extraordinária! Ora, se tal violação depende de “reexame de normas infraconstitucionais”, a via adequada para impugnar a questão seria o Recurso Especial, o qual é vedado pela súmula já citada. Neste ponto, saliente-se que o Superior Tribunal de Justiça alterou o entendimento sumulado com base no julgamento pela Corte Especial do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento N. 400.076/BA, oportunidade em que os ministros firmaram o entendimento de que o Art. 105, inciso III, da Constituição Federal[5] é claro ao estabelecer a competência daquele tribunal no julgamento dos Recursos Especiais. Apesar de criticar a decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça, é digno de destaque o posicionamento do Min. Vicente Leal, o qual alerta que “o entendimento firmado pela súmula limita o acesso à justiça do cidadão[6]”. Em síntese, segundo o ministro, a posição do Superior Tribunal de Justiça freia um direito da parte e não controla o poder decisório das Turmas Recursais. Tal ressalva do ministro só reforça a afirmação inicial de BRETAS, pois a estrutura recursal atual enfraquece consideravelmente as garantias processuais conquistadas. Portanto, considerando tal panorama, têm-se que discussões, em tese, infraconstitucionais decorrentes de incompatibilidades entre a Lei n. 9.099/1995 e o Código de Processo Penal são extremamente limitadas por um pensamento fundado, predominantemente, pela Teoria Geral do Processo[7]. Finalmente, verifica-se o ponto central do debate: há uma “teoria geral” capaz de dirimir incompatibilidades do processo civil e criminal? Primeiramente, deve-se reconhecer que contribuição histórica é inegável (CHOIVENDA e CARNELUTTI como exemplos máximos), mas muitas peculiaridades do processo penal não são respeitadas com posicionamentos (predominantemente) civilistas! Nesse ponto, feliz é o a analogia feita por AURY LOPES JR. quando aborda as incompatibilidades entre os processos: “Quando Cinderela terá suas próprias roupas?”[8]. Ou seja, as “roupas” do processo civil até podem servir, mas não foram criadas para o processo penal. Objetivamente, seguindo os ensinamentos de JUAREZ CIRINO DOS SANTOS[9], o processo penal não se constitui de partes livres e iguais (como ocorre no processo civil), nem é dominado pela liberdade das partes, mas sim de uma relação de poder instituída pelo estado. Essa razão já é suficientemente apta para justificar a superação da teoria geral. Por tais situações, muitas vezes vividas apenas na prática, que o processo civil (bem como seus ideais e princípios próprios) deve limitar-se apenas aos raríssimos casos de interpretação e aplicabilidade analógica prevista no art. 3º do Código de Processo Penal. Sendo assim, conclui-se que nenhum ideal defendido pela lei dos juizados especiais é antagônico à estrutura do processo penal, porém, a flagrante sobreposição daqueles ideais fundada em uma teoria geral do processo macula o já penoso processo criminal. Portanto, parafraseando AURY LOPES JR, cada irmã (processo) tem e deve usar seu próprio armário, e só pode emprestar uma ou outra peça de roupa em raríssimas ocasiões! GUILHERME RAMOS JUSTUS Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Centro de Estudos Luiz Carlos Especialista em Direito Latu Sensu pela Escola da Magistratura do Paraná Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Faculdade de Direito de Curitiba) Advogado Criminal BIBLIOGRAFIA BRETAS, Adriano. Apontamentos de processo penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017. LAZZARI, João Batista. Juizados Especiais Federais: uma análise crítico-propositiva para maior efetividade no acesso à justiça e para a obtenção de um processo justo. Disponível em <https://www.univali.br/Lists/.../Attachments/55/Tese%20João%20Batista%20Lazzari.pdf> LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. ______________, Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 7ª ed. revisada, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. [1] BRETAS, Adriano. Apontamentos de processo penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017. p. 344 [2] Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão [3]LAZZARI, João Batista. Juizados Especiais Federais: uma análise crítico-propositiva para maior efetividade no acesso à justiça e para a obtenção de um processo justo. Disponível em <https://www.univali.br/Lists/.../Attachments/55/Tese%20João%20Batista%20Lazzari.pdf> Acessado em 01/03/2018. [4] “Art. 489. São elementos essenciais da sentença:§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;” [5] “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.” [6]“Se assim não se decidir, os juizados especiais e as turmas recursais ficarão livres de qualquer controle, por que não haverá debate sobre questão constitucional. Ora, se o tribunal próprio para apreciar o controle da dignidade da lei federal não toma conhecimento da matéria por uma exegese restritiva, o cidadão ficará sem Justiça. Transcrição do voto vencido do Min. Vicente Lea no julgamento do Agravo Regimental no Ag 400.076/BA, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, julgado em 23/05/2002, DJ 07/04/2003, p. 209.” [7] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 7ª ed. revisada, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. [8] “Voltando ao início carneluttiano, Cinderela é uma boa irmã e não aspira uma superioridade em relação às outras, senão, unicamente, uma afirmação de paridade. O processo civil, ao contrário do que sempre se fez, não serve para compreender o que é o processo penal: serve para compreender o que não é. Daí por que, com todo o respeito, basta de Teoria Geral do Processo”. LOPES JR. Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015 p. 78 [9] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 655 Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |