Não é mais novidade falar que nossas prisões não atendem o mínimo necessário para que a dignidade da pessoa humana seja respeitada enquanto princípio basilar constitucional. Não que as denúncias contra as violações de direitos no sistema carcerário devam cessar. Pelo contrário, pois é graças às poucas vozes que se insurgem contra o tratamento indigno que é conferido aos presos pelo Estado, que acabamos tomando conhecimento do caos que se encontra inserido no cárcere brasileiro, possibilitando-se assim ações que visam minimizar a barbárie imperante no cenário da execução da pena. Conforme diz João Marcos Buch, notório magistrado de Santa Catarina que luta e acredita num sistema penitenciário que respeita os princípios penais constitucionais e os direitos humanos, “se há crise na execução penal, é porque os poderes constituídos não têm feito sua lição de casa, no investimento sério e numa política de estado para o sistema prisional, independente das mudanças de governo e dos agentes políticos”[1]. E essa crise é notória em nosso sistema. O sistema carcerário é degradante em vários sentidos. Não há o mínimo de respeito a qualquer direito do recluso, tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana. O sistema é bruto, cruel e indigno. Por mais que tenhamos elencados direitos e garantias que visam proteger e efetivar aqueles princípios que se encontram em nossa Constituição Federal, o que se vê na prática são diversas violações dessas previsões. Marcelo Semer explica que “a ideia de que a Constituição é suficiente para impedir o tratamento degradante e desumano nas detenções, prisões provisórias ou cumprimentos de pena [...] é nada mais do que simbólica”[2]. Essas violações são praticadas diariamente em todo o sistema prisional, podendo ser observadas tanto em posturas estatais passivas (o não cumprimento das condições mínimas das instalações carcerárias previstas na Lei de Execução Penal, por exemplo) como em ativas (tratamentos degradantes que são conferidos aos presos). Se o Estado é mínimo em sua altivez necessária na efetivação da dignidade da pessoa humana num aspecto geral, no sistema carcerário ele sequer existe. A denúncia contra a indignidade do sistema carcerário também é encontrada na literatura. Mesmo nos romances que não se passam no sistema penal brasileiro, onde as instalações carcerárias, por exemplo, geralmente não são tão precárias quanto as nossas, o tratamento indigno conferido ao preso acaba sendo demonstrado. Em “Deuses Americanos”, de Neil Gaiman, há uma rápida passagem onde essa ausência de dignidade, que é traduzida na total falta de respeito ao detido, pode ser percebida. Shadow, o protagonista da história, está para ser liberto. Finalmente o cumprimento de sua pena está chegando ao fim. Em breve sua liberdade será restituída. Novos ares. Novo rumo. Sua esposa anseia pelo seu retorno. O “lá fora” o aguarda cheio de possibilidades. Há esperança, e Shadow pretende aproveitá-la. Pouco antes do dia de sua liberdade chegar, Shadow é chamado até a sala do diretor do presídio. Lá chegando, recebe a notícia de que sairá alguns dias mais cedo, antes do previsto, naquele mesmo dia, pois sua esposa havia morrido num acidente de carro. Dada a notícia, Wilson, um carcereiro, acompanha Shadow para que possa juntar seus pertences: Wilson o acompanhou de volta à cela sem dizer uma palavra. Ele destrancou a porta e deixou Shadow entrar. Então, comentou: -Parece aquelas piadas do tipo notícia boa e notícia ruim, não é? A notícia boa é que a gente vai soltar você antes da hora, a ruim é que sua esposa morreu. Ele riu, como se fosse realmente engraçado. Shadow não falou nada.[3] Uma “piada” está longe de poder ser comparada aos diversos infortúnios, desrespeito e tratamentos degradantes sofridos pelos presos. Mas a breve reflexão que aqui trago visa apontar que o detido visto como alguém indigno de respeito legitima esse tipo de situação (uma piada de tremendo mau gosto) como fosse algo normal. É uma cultura que está inserida no meio carcerário. “Nós” e “eles”. “Nós”, dignos e merecedores de respeito. “Eles”, indignos e merecedores do desprezo. Dificilmente esse tipo de comentário dito pelo carcereiro Wilson seria feito caso não fosse Shadow um apenado. É aí que se aponta para o desprezo pelo indesejado como algo inserido culturalmente em nosso sistema. A ausência de respeito ao outro (visto desde sempre como outro, mais de maneira ainda mais significativa quando este outro se insere no sistema carcerário) é algo que está enraizado nas instituições, nos sistemas, em nós. A inexistência da dignidade da pessoa humana no sistema carcerário é algo notório. E as violações existem em todas as proporções. Estão aí, tanto na literatura como nas denúncias feitas por vozes na nossa sociedade, exemplos que entoam a necessidade de algo ser feito para que esse cenário mude. Mas enquanto a penitenciária não funcionar como um hospital, tal como na ilustração de Francesco Carnelutti, dificilmente alguma mudança ocorrerá. A penitenciária é, verdadeiramente, um hospital, cheio de enfermos de espírito, ao invés que do corpo. e, alguma vez também do como; mas que singular hospital! No hospital, a priori, o médico, quando percebe que a diagnose está errada, corrige-a e retifica a terapia. Na penitenciária, ao contrário, é proibido assim fazer.[4] Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] [1] BUCH, João Marcos. Execução Penal e Dignidade da Pessoa Humana. 1ª Ed. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014 [2] SEMER, Marcelo. Princípios Penais no Estado Democrático. 1ª Ed. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014 [3]GAIMAN, Neil. Deuses Americanos.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. p. 27 [4] CARNELUTTI, Franceso. As Misérias do Processo Penal. 3ª Ed. Lume: CL EDIJUR, 2015. p. 73 Comments are closed.
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