Nem direito penal, nem criminologia. Nem sociologia, nem filosofia política. O breve texto de hoje toca no assunto do papel do intelectual e da ciência.
Primeira questão: que papel deve ser desempenhado pelo pesquisador, independente de sua área de estudo específica, na luta por melhores condições sociais? Foucault (2016: 131) percebe que o intelectual ocupou posição exacerbadamente paternalista durante muito tempo no ocidente. Figurava como consciência coletiva e oráculo. Dizia às massas a verdade, delimitava seu papel nas lutas e seus valores a serem compartilhados como “classe”. Hoje, em alguma medida ao menos, o intelectual percebe que as massas não precisam dele para descobrir o seu papel. Percebe também que ele próprio faz parte de um sistema de poder que atua limitando discursos, classificando manifestações, restringindo a própria massa em suas reivindicações. Quando Foucault, nos trabalhos que desenvolveu junto ao GIP (Groupe d'Information sur les Prisons), procurou dar voz aos encarceirados, percebeu que estes tinham uma teoria própria sobre os fundamentos, funções e funcionamento do sistema carcerário. Não precisavam que o discurso criminológico falasse por eles. Precisavam apenas que se estabelecessem as condições de possibilidade para que fossem ouvidos. Quem sabe Pierre Bourdieu tenha sido um dos sociólogos que melhor trabalhou esta noção de sequestração do discurso político-social por parte da acadêmica. De qualquer forma, resta a questão: de que modo o pesquisador, em especial na seara das ciências humanas e sociais, pode exercer um papel de construção efetiva do diálogo e do avanço dos direitos sociais? Deleuze usa uma metáfora interessante. Diz que a teoria é como uma caixa de ferramentas. Deve funcionar, deve ser útil. Deve se refrear de patinar em tautologias e diletantismos. Precisa cuidar em não reproduzir mecanicamente o que disseram os “deuses do oráculo” (os “doutrinadores” na esfera do jurídico). Parte-se deles, sem dúvida. Não se menospreza o que ensinaram, nem se diminui sua contribuição. Apenas não se deve revestir suas lições de cores definitivas, tornando-as dogmas irrevogáveis. Marcel Proust fala de sua obra de uma forma que define com maestria para que servem os bons trabalhos de pesquisa: “tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e, se não lhes servem, consigam outros.” Diria Lenio Streck: bingo! Quanto a segunda questão: para que deve servir a ciência? Diversas respostas foram dadas desde o apogeu do renascimento. Não se pode olvidar que a ciência operou efeitos antagônicos na história da humanidade. O uso bélico de suas descobertas não nos deixa esquecer sua capacidade destrutiva. A noção de sociedade de risco, de U. Beck, não nos permite continuar fingindo que não enxergamos os efeitos perniciosos do uso desenfreado de algumas de suas consecuções. Ainda assim, ninguém questiona os benefícios colhidos com o enorme avanço proporcionado pelos diversos “braços” da pesquisa científica. Medicina e comunicação são áreas de menção corriqueira neste sentido. No próprio âmbito das ciências jurídicas, quem dirá que o exercício cuidadoso de pesquisadores como Kelsen, Hart, Bobbio, Dworkin, Perelman, para citar um rol minúsculo daqueles que procuram dotar o direito de cientificidade, não contribuiu para o debate acerca de temas de extrema relevância, como a efetividade da democracia, o fundamento da norma jurídica, o papel a ser desempenhado pelas constituições e pelo poder judiciário, os meios de proteção das garantias fundamentais e tantos outros? Se fosse requisitado uma resposta direta sobre o atual papel primordial da pesquisa científica, o que poderia ser dito? Dentre muitas respostas possíveis e razoáveis: a pesquisa científica deve servir para desconstruir generalizações, em especial dicotomias redutoras em matérias de elevada complexidade. Explico: uma tendência sempre presente nos debates acadêmicos, políticos, sociais, enfim, sempre que se propõe a análise de um assunto relevante, é a universalização de conceitos e a redução de possibilidades de ação a uma escolha dual. Entender como se forma essa tendência exige algum estudo. Estudar a genealogia dos sistemas de pensamento proposta por Foucault é bastante útil. O método cartesiano parece ter sido um dos principais responsáveis pela ânsia por generalizações. A pesquisa científica hoje, com enfoque para as áreas das ciências humanas e sociais, precisa cumprir a tarefa de colocar em pauta universalizações que servem de ponto de partida para discussões superficiais e inúteis, cuidando em não operar mero debate vazio sobre palavras, mas não despercebendo o papel “violento” (Bourdieu) e segregante (Foucault) que as definições possuem. Categorias gerais, oferecidas como marco de muitas discussões, sem a cuidadosa reflexão sobre sua origem, concretizam um dos principais obstáculos para o diálogo racional e superação de “dogmas” e “superstições” (tarefa para qual a ciência, afinal, se propôs desde o início). Tanto é assim que não é difícil identificar quando estamos diante de um interlocutor com limitada capacidade de reflexão: ele se servirá amplamente de conceitos universais acríticos (generalizações), como “bandido”, “estado”, “democracia”, “povo”. Estes serão usados sem a mínima contextualização ou apreciação espaço-temporal apropriada. Da mesma forma, é bem possível que argumentos de autoridade ou estatísticas jogadas a esmo sejam amplamente “sacados” da bagagem de senso comum. Diante disso, cumpre àqueles que decidiram utilizar seu tempo, recursos e energia para o trabalho intelectual, oferecer resistência a essas pulsões generalizantes, bem como a dicotomias infrutíferas a que muitos parecem ter ficado reduzidos: “coxinhas/petralhas”, “bandido/cidadão de bem”, “teoria/prática”, “acadêmicos/militantes”, etc. “Dogma não significa ausência de pensamento, mas sim o fim do pensamento” G. H. Chesterston Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa, Portugal: Edições 70, LDA, 2016 Comments are closed.
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