Artigo da colunista Paula Yurie Abiko sobre a violência contra às mulheres, crianças e adolescentes, demonstrando algumas complexidades dos temas, vale a leitura! ''Outro dado posteriormente divulgado fora um choque de realidade, os abortos realizados em crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a cada hora no país, quatro meninas de até 13 anos de idade sofrem violência sexual, e só no ano e 2020 foram 642 internações com esses casos''. Por Paula Yurie Abiko ‘’(...) De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Co'os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni(...)’’. Chico Buarque, ‘’Geni e o Zepelim’’. Eis o potencial magnífico da arte, possibilitar a reflexão de temas tão sensíveis e dolorosos, nos fazendo refletir sobre a realidade atual das mulheres, refletir sobre a sociedade, o machismo e o patriarcado. Recentemente, um caso de grande repercussão nos saltou aos olhos, uma criança de apenas 10 anos engravidou em decorrência de um estupro, este, realizado por seu tio, pessoa próxima que deveria tutelar os seus direitos e prezar pelo bem estar. Infelizmente, o cenário no país é muito grave, pois os abusos e casos de violência sexual ocorrem em demasia dentro de casa, no local onde deveria ser o porto seguro dessas crianças, o que já denota o problema complexo exposto. Conforme dados do Ministério da Saúde e estudos realizados entre 2011 a 2017, o Brasil teve um aumento de 83% nas notificações sobre violências e abusos sexuais contra crianças e adolescentes. Foram notificados 184.524 mil casos de violência sexual, no qual 31, 5% eram contra crianças (mais de 58.037 mil casos) e 45% contra adolescentes (mais de 83.068 mil casos). Outro dado posteriormente divulgado fora um choque de realidade, os abortos realizados em crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a cada hora no país, quatro meninas de até 13 anos de idade sofrem violência sexual, e só no ano e 2020 foram 642 internações com esses casos. Ainda, o país registra 6 abortos por dia em meninas vítimas de violência sexual entre 10 e 14 anos de idade, o gráfico elaborado pelo Ministério da Saúde denota o preocupante cenário: . O mundo ainda é demasiado doloroso para as mulheres, e esses abusos em idades tão precoces só ressaltam a importância de discutirmos sobre esses temas, buscando alternativas e iniciativas do poder público aptos a tutelar a vida dessas crianças e adolescentes, prezando pelo seu bem estar social e digno desenvolvimento.
Nesses casos, o aborto é previsto no Código Penal e é possível legalmente para salvar a vida das vítimas, ressalta o artigo 128 in verbis: ‘’Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal’’. Mesmo com a expressa previsão legislativa, o caso gerou polêmica e repercussão nas redes sociais, os dados da criança foram indevidamente divulgados, o que culminou com manifestações contra a realização do procedimento na porta do hospital. A criança, já sofrendo com toda a situação, teve que viajar para um segundo hospital para realizar o procedimento, pois o primeiro hospital por motivos não divulgados negou-se a realizar o aborto no caso concreto. Posteriormente, e penso que diante da repercussão do referido caso, fora editada a Portaria nº 2282/ 2020, colocando ainda mais óbices no procedimento de aborto em crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. O artigo 4º, §2º ressalta: ‘’A segunda fase se dará com a intervenção do médico responsável que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver, § 2º Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico’’. Deve-se ressaltar que o artigo 128 do Código Penal não prevê números específicos de médicos e profissionais da saúde para a realização do procedimento, já a referida portaria aduz a necessidade de no mínimo 3 profissionais, não podendo haver divergência nos pareceres técnicos, o que já denota a clara intenção de dificultar o procedimento. Outro aspecto demasiado delicado da referida portaria, é o disposto no artigo 8º, aduzindo que a criança ou adolescente deverá visualizar o ultrassom do feto, em um tentativa de fazê-la refletir sobre a situação, o que é ainda mais controverso em um momento de fragilidade e dor, ressalta o referido artigo: ‘’Art. 8º Na segunda fase procedimental, descrita no art. 4º desta Portaria, a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada’’. De fato, essas situações só demonstram a necessidade do debate sobre o tema, pois é inconcebível que em pleno século XXI o estado queira tutelar o corpo feminino como algo à disposição, assemelhando-se a distopia de Margaret Atwood em ‘’O conto da Aia’’, no qual aduz em um trecho da distopia: ‘’Mas quem pode se lembrar da dor, uma vez que passa? Tudo o que dela resta é uma sombra, não na mente nem isso sequer, na carne. A dor marca você, mas de maneira profunda demais para que se possa ver. Longe dos olhos, longe do pensamento’’. A dor marca, eis um dos trechos mais profundos da obra, a dor marca assim como marcará a vida dessas milhares de crianças e adolescentes que tiveram à infância roubada por quem deveria ser o porto seguro, por àqueles que deveriam garantir o seu desenvolvimento e bem estar social. A dor marca, pois este mês fora a pequena de 10 anos de idade que precisou realizar esse procedimento, viajar para outro estado, lidar com toda a repercussão. A dor marca, pois poderia ser qualquer uma de nós, e quando uma mulher tem a sua dignidade violada, todas nós temos, é um laço de fragilidade feminina que nos une e nos deixa sempre perplexas em casos como esses. A dor marca, pois sabemos o peso de sermos mulheres, de ter que lidar com esses medos e angústias, sempre necessitando ter o devido cuidado ao andar nas ruas, ao tomar um bebida em uma festa, ao estar na companhia de homens não tão conhecidos, ou pior, ao estar ao lado de homens conhecidos e da própria família, que conforme os dados são os responsáveis por marcar de forma tão dolorosa a vida dessas crianças e adolescentes. A dor marca, pois ser mulher é ter que provar o tempo inteiro a competência, como se a vida feminina fosse um eterno estágio probatório. Não é possível aceitar viver em uma sociedade que esmaga e dilui tantos sonhos de crianças e adolescentes, precisamos lutar e ser uma rede de apoio à esses jovens e a todas as mulheres que já sofreram ou sofrem algum tipo de violência, tanto física, quanto psicológica ou emocional. A luta pela igualdade de gênero é como a utopia de Fernando Birri, citada por Eduardo Galeano na obra ‘’As palavras andantes’’, a utopia está lá no horizonte, e para que serva a utopia? Serve para isso, para caminhar... Paula Yurie Abiko Pós graduanda em direito penal e processual penal - ABDCONST. Pós graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Membro do Grupo de Pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do grupo de pesquisas: Trial By Jury e Literatura Shakesperiana. Membro do GEA - grupo de estudos avançados - teoria do delito, (IBCCRIM). Membro do Neurolaw (grupo de pesquisas de Direito Penal e Neurociências – Cnpq). Integrante da comissão de criminologia crítica do canal ciências criminais. Integrante da comissão de Direito & literatura do Canal ciências criminais. REFERÊNCIAS: ATWOOD, Margaret. O conto da Aia, The handmaid’s Tale, Tradução: Ana Deiró, Rio de Janeiro, Rocco, 2017. NOTAS: [1] Maioria dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre em casa, notificações aumentaram 83%. <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/maioria-dos-casos-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-ocorre-em-casa-notificacao-aumentou-83.ghtml>, acesso em 01 de setembro de 2020. [2] Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53807076, acesso em 01 de setembro de 2020. [3] <http://crianca.mppr.mp.br/2020/03/231/ESTATISTICAS-Tres-criancas-ou-adolescentes-sao-abusadas-sexualmente-no-Brasil-a-cada-hora.html>, acesso em 01 de setembro de 2020.
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